10 Julho 2014

As identidades de alguns dos suspeitos de terem ordenado ou cometido atrocidades e brutais violações de direitos humanos na República Centro Africana são agora tornadas públicas pela Amnistia Internacional, com a organização a lançar um apelo global para que seja feita justiça às populações civis daquele país.

Em novo relatório, publicado esta quinta-feira, 10 de julho, são documentados crimes cometidos em violação das leis internacionais em toda a República Centro Africana em 2013 e 2014. O documento – intitulado “Central African Republic: Time for Accountability” (República Centro Africana: É tempo de responsabilização) e fruto de três missões de investigação no terreno – identifica pelos nomes membros e aliados das milícias anti-balaka (maioritariamente cristãs) e dos Séléka (coligação de grupos armados, maioritariamente muçulmanos, que depôs o Presidente François Bozizé em março de 2013), todos suspeitos de envolvimento em gravíssimos abusos de direitos humanos.

É aqui detalhado o papel daqueles suspeitos nos grupos armados e determinadas as suas prováveis responsabilidades criminais nas atrocidades cometidas – sendo instada a investigação, julgamento e punição de todos quantos são responsáveis.

“Para que a República Centro Africana possa recuperar das matanças que ocorreram no país desde dezembro de 2013, é crucial que aqueles que planearam, cometeram e participaram nos crimes de guerra, crimes contra a humanidade e outras graves violações dos direitos humanos sejam responsabilizados perante a justiça”, sustenta o investigador da Amnistia Internacional para a República Centro Africana, Christian Mukosa.

Centenas de milhares de pessoas inocentes “ficaram sem ter onde se esconderem dos atos de violência sanguínea praticados”, e aqueles que “são responsáveis por isso não podem ter onde se esconderem da justiça”. Este perito não tem dúvidas: “Só pondo fim à impunidade se poderá conter o ciclo de violência em que a República Centro Africana caiu”.

Time for Accountability” documenta relatos prestados em primeira mão à Amnistia Internacional de vítimas e testemunhas de crimes consagrados nas leis internacionais e graves violações de direitos humanos cometidos durante o conflito, do qual resultaram milhares de mortos e quase um milhão de pessoas se viram obrigadas a abandonar as suas casas, além de pôr o país à beira de uma calamidade humanitária.

Este documento identifica uma série de líderes dos grupos armados pelo seu envolvimento nas atrocidades – e neles incluem-se os ex-chefes de Estado François Bozizé e Michel Djotodia, e ainda líderes das anti-balaka como Levy Yakété, e dos Séléka como Noureddine Adam.

Ataques cometidos em frente a todos sem medos de punições

A maior parte dos ataques violentos na República Centro Africana são levados a cabo de forma aberta, com os responsáveis pelos mesmos a mostrarem não recear nenhuma sanção. Em muitos dos casos são caras bem conhecidas das suas vítimas e também das autoridades em exercício.

Testemunhas descreveram à Amnistia Internacional os ataques a que assistiram em Bangui, a capital do país, reportando que os mesmos foram liderados no terreno por comandantes dos Séléka: nestes relatos foram positivamente identificados os coronéis Bishara, Aba Tom e Yussuf Hamad. Uma destas testemunhas descreve como aquele último liderou um grupo de Séléka numa busca a um hospital para encontrar combatentes anti-balaka.

“[Hamad] ameaçou matar toda a gente no hospital se não lhe mostrássemos onde estavam os anti-balaka”, foi contado aos investigadores da Amnistia Internacional. Esta mesma testemunha relatou que um homem, arrastado para fora do hospital por Yussuf Hamad, acabou por ser encontrado morto nas proximidades.

Por seu lado, comandantes das milícias anti-balaka que são identificados neste relatório incluem Richard Bejouane e os coronéis Dieudonné e “Força 12” (este último conhecido apenas pela alcunha de guerra) – todos tão confiantes na impunidade pelos crimes cometidos que falam abertamente sobre os seus papéis nas violações de direitos humanos, e fizeram mesmo declarações públicas incitando à violência.

A maioria dos suspeitos identificados nesta investigação da Amnistia Internacional vivem na República Centro Africana, mas outros estão em países como o Chade e a França. “Nenhum país deveria dar abrigo a indivíduos suspeitos de cometer ou apoiar crimes de guerra ou crimes contra a humanidade na República Centro Africana. Há mesmo a obrigação de investigarem as denúncias feitas e, se as provas forem suficientes, julgar ou extraditar esses suspeitos para que possam ser julgados em tribunal”, defende Christian Mukosa.

A falta de investigações e de justiça na República Centro Africana em relação a atrocidades no passado tem contribuído para a ausência de um sistema de justiça independente e eficaz e para a incapacidade das forças de segurança em protegerem da violência e ataques retaliatórios as vítimas, testemunhas e funcionários judiciais, ou até mesmo a população em termos gerais. Simultaneamente, a falta de centros de detenção resulta em que, mesmo sendo detidos, os suspeitos de cometerem crimes consagrados na legislação internacional e outros abusos de direitos humanos acabam frequentemente por se escaparem à justiça.

A presença de forças internacionais de manutenção de paz falhou, por seu lado, em pôr fim ao conflito. Estas tropas, em que se incluem soldados do Chade, têm de resto estado envolvidas em flagrantes e sérias violações de direitos humanos. O incidente mais grave ocorreu a 29 de março passado, quando soldados do Chade abriram fogo contra civis num mercado de Bangui, e, segundo as Nações Unidas, mataram pelo menos 30 pessoas e deixaram outras 300 feridas.

A batalha contra a impunidade tem de se estender à investigação de denúncias de abusos de direitos humanos cometidos por soldados e oficiais do Exército do Chade neste e em outros incidentes reportados na República Centro Africana.

Ação no país e da comunidade internacional para julgar os crimes de guerra 

A Amnistia Internacional insta a uma ação urgente a nível local, regional e internacional com o propósito de reconstruir o sistema judicial e das forças de segurança naquele país. As provas dos abusos de direitos humanos cometidos têm de preservadas e as testemunhas e sobreviventes devem ser identificadas e protegidas.

Tem ainda de ser dado um fortalecimento significativo à Comissão Especial de Investigações, organismo criado pelas autoridades interinas da República Centro Africana para investigar os crimes no país, e o mesmo deve também alargar o seu âmbito de ação para lá de Bangui. Igualmente, a comissão de inquérito das Nações Unidas às violações de direitos humanos deve ser reforçada.

Para a organização de direitos humanos é ainda crucial que as autoridades da República Centro Africana ponderem a criação de um tribunal composto por peritos do país e internacionais para julgarem os crimes consagrados nas leis internacionais e ajudar ao próprio fortalecimento do sistema nacional de justiça. Uma tal instância não substituiria, porém, o Tribunal Penal Internacional, onde foi já aberta uma investigação preliminar à República Centro Africana.

“A criação da Comissão Especial de Investigações, a par da comissão de inquérito da ONU e do facto de estar já em curso uma avaliação preliminar pelo TPI envia a mensagem clara de que a impunidade não será tolerada. Mas há muito mais que tem de ser feito para garantir que a responsabilização dos autores destes crimes é eficaz”, frisa o investigador da Amnistia Internacional.

Christian Mukosa defende que “a justiça em relação aos crimes cometidos na República Centro Africana só será alcançada através de um esforço coordenado da comunidade internacional, que goze ao mesmo tempo de uma clara vontade política das autoridades de transição no país”. “O cerco está a apertar em volta daqueles que são responsáveis pelas violações de direitos humanos. Os seus nomes e paradeiros são agora conhecidos. Os crimes que cometeram estão documentados. E eles serão julgados”, remata o perito.

 

Artigos Relacionados