3 Outubro 2014

Só este ano pelo menos 2.500 pessoas morreram já na perigosa travessia do mar Mediterrâneo à procura de entrar na Fortaleza Europa. O mundo acordou para esta realidade há precisamente um ano, quando a 3 de outubro de 2013 um barco se afundou ao largo da ilha italiana de Lampedusa e centenas de pessoas perderam a vida. Uma semana depois um segundo barco virava no mesmo local. Nele seguia o médico sírio Hasan Wahid, a mulher e as quatro filhas. A sua história ilustra bem as escolhas impossíveis dos refugiados e migrantes.

Tudo aconteceu a 11 de outubro de 2013. Hasan Wahid e a mulher, Manal Hashash, sentiram que a sua única opção era a perigosa travessia do mar para chegar à Europa. A guerra estava intensa no seu país de origem, a Síria, e tinham recebido ameaças de morte na Líbia, onde Hasan trabalhava como médico. Por isso, em outubro do ano passado pagaram a um traficante 4.500 dólares americanos (cerca de 3.400 euros) para que os levassem, e às suas quatro filhas – Randa, de 10 anos, Sherihan, 8 anos, Nurhan, 6, e Kristina, 2 –, para aquela que esperavam vir a ser uma vida mais segura e pacífica. Hasan, que agora vive na Suíça, contou a história na primeira pessoa.

 

Recebi uma ameaça que dizia diretamente que se não deixasse a Líbia me arrependeria de ficar. Fui acusado de apoiar o regime [de Assad] e por isso fui espancado. Senti que tinha de sair [da Líbia, onde trabalhava].

Tentei ir para o Egito, mas fecharam as fronteiras aos sírios. Candidatei-me a um visto na Tunísia, mas foi recusado. Candidatei-me a um visto em Malta, mas também foi rejeitado. Por isso, perante aquela situação, a minha única opção era o mar.

Foi-nos dito [pelos traficantes] que iriamos num barco de passageiros. Quando vimos que era uma traineira de pesca era demasiado tarde para voltar atrás. A minha família sentou-se longe de mim. Tive de me sentar na parte traseira com os mais velhos e as pessoas com deficiência física, porque tenho uma deficiência de infância no meu pé esquerdo. A minha mulher e as minhas filhas sentaram-se à frente, no mesmo nível do barco. As 450 a 500 pessoas a bordo eram, na sua maioria, sírios.

Depois de algumas horas, um barco a motor apareceu com homens armados líbios. Dispararam para o ar. O nosso capitão não parou. Presumimos que eram piratas. A maioria de nós tinha vestido os coletes salva-vidas. Cerca das 2 horas da manhã dispararam contra o barco. Três pessoas ficaram feridas e o barco danificado. Eles entretanto fugiram.

A água dentro do barco começou a subir, por isso usámos bombas de água. As bombas funcionaram até depois do meio-dia, quando se avariaram. O capitão desligou os motores e as ondas altas abanavam o barco por todos os lados. Permanecemos assim até que o barco virou, fazendo com que todos caíssemos. Pouco antes, vimos um helicóptero a sobrevoar-nos. Uma hora depois chegaram os guardas costeiros de Itália e Malta.

Não sei como vir à superfície. Quando consegui, percebi que tínhamos sido lançados para longe do navio [de salvamento] e as ondas puxavam-nos ainda para mais longe. Demorou cerca de duas horas até eu ser retirado da água. Os guarda costeiros estavam primeiro a salvar as crianças. Fui resgatado pelas autoridades de Malta, já depois do pôr-do-sol. Não sabia se a minha mulher e as minhas filhas tinham sido salvas ou não.

Um homem que se sentou ao meu lado no navio maltês – que eu conhecia da Líbia já antes da travessia marítima – disse-me que tinha visto uma das minhas filhas num barco de resgate. Ela tem 8 anos, não tem os dentes da frente e tem a pele mais escura que as irmãs.

Ele contou-me: “Ela chamou-me e perguntou se tinha visto o pai. Disse-lhe para não se preocupar, que o pai iria ter com ela”. Ele estava a tentar acalmá-la, apesar de ainda estar na água e de ela estar no barco.

Em Malta, dei à Cruz Vermelha toda a informação sobre as minhas irmãs e a minha mulher – nomes, idades. A minha mulher [resgatada pelas autoridades italianas] também andava freneticamente à procura delas em Itália.

Estamos agarrados à esperança de que vamos encontrar as nossas crianças. Tudo o que queremos é encontrar as nossas filhas, mortas ou vivas.

 

Mais de 500 pessoas morreram nos dois naufrágios que ocorreram em outubro de 2013 perto da ilha de Lampedusa. Desde então a Marinha italiana já resgatou mais de 100.000 pessoas no Mediterrâneo. Mas os números relativos aos mortos continuam a aumentar! Itália não consegue alterar sozinha esta realidade. Os líderes europeus têm de deixar de olhar para o lado. Leia o mais recente relatório da Amnistia Internacional e assine a petição que exige ação por parte da Europa. Para que o que aconteceu em Lampedusa não volte a acontecer!

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