28 Outubro 2016

As operações militares da ofensiva para retomar Mossul e zonas circundantes no Iraque do controlo do grupo armado autoproclamado Estado Islâmico (EI) estão a pôr em grave risco as populações civis apanhadas no fogo-cruzado dos combates e, em alguns casos, a serem usadas como escudos humanos pelos combatentes do EI, alerta a Amnistia Internacional que tem em curso uma missão no Norte do Iraque.

Os investigadores da organização de direitos humanos entrevistaram no terreno civis deslocados das suas casas em aldeias para norte de Mossul nos dias recentes e os quais se encontram agora nos campos de Zelikan e de Khazer, em regiões controladas pelo Governo Regional do Curdistão. Foram também feitas entrevistas por telefone com civis que estão encurralados em território sob controlo do EI, recolhendo novas provas que apontam que civis foram mortos e feridos nos dias recentes.

“Com mais de um milhão de pessoas que se estima estarem sem conseguir sair de Mossul e arredores, os riscos para os civis são elevadíssimos. O desrespeito total do EI pela segurança das populações e o seu aparente uso deliberado dos civis como escudos humanos estão a pôr as pessoas encurraladas em áreas de conflito ativo em ainda maior perigo, conforme as forças militares iraquianas avançam no terreno”, descreve a vice-diretora de Investigação do escritório regional em Beirute da Amnistia Internacional, Lynn Maalouf. “Para evitar que as populações sejam apanhadas num banho de sangue, todas as partes envolvidas no conflito têm de tomar todas as precauções possíveis para poupar os civis”, insta a perita da organização de direitos humanos.

Até esta quarta-feira, 26 de outubro, mais de 10 500 pessoas tinham já sido forçadas a fugir das suas casas desde o início da ofensiva lançada pela coligação militar para recuperar Mossul; estima-se ainda que mais de 1,5 milhões de pessoas permaneçam sitiadas em Mossul e áreas periféricas.

EI está a usar escudos humanos

Alguns dos civis que conseguiram escapar-se aos combates ou cujas aldeias e vilas foram já retomadas pelas forças governamentais iraquianas reportaram à Amnistia Internacional que combatentes do EI os tinham deliberadamente impedido de fugir das zonas do conflito. Guerrilheiros do grupo armado infiltraram-se nas populações civis, tomando posições em áreas residenciais e, em alguns casos, obrigando os civis a deslocarem-se para zonas sob as quais mantêm controlo.

“Usar civis para se escudarem de ataques é um crime de guerra. E mesmo nos casos em que combatentes do EI estejam a usar civis como escudos humanos, tal não isenta as forças iraquianas e a coligação aliada da obrigação de tomarem todas as precauções exequíveis para minimizarem os danos nas populações civis e evitarem lançar ataques que possam causar danos desproporcionados aos civis”, frisa Lynn Maalouf.

Civis apanhados no fogo-cruzado

Familiares de um agricultor com oito filhos contaram aos investigadores da Amnistia Internacional que aquela família se encontrava em casa, na aldeia de Tab Zawa, distrito de Bashiqa, no governorado de Ninewa, para nordeste de Mossul, quando eclodiram combates entre o EI e forças governamentais iraquianas a 24 de outubro. O agricultor foi apanhado no fogo-cruzado e morto.

Desde então, aquela aldeia foi reconquistada pelas forças iraquianas, incluindo a unidade militar de elite Brigada Dourada, do Serviço de Antiterrorismo, que transferiu os civis da zona e os entregou à tutela das forças do Governo Regional do Curdistão.

No mesmo dia em que o agricultor de Tab Zawa foi morto no fogo-cruzado dos combates, dois irmãos, de seis e de cinco anos, foram feridos por estilhaços quando estavam em casa na mesma aldeia. O pai das duas crianças descreveu à equipa de investigação da Amnistia Internacional que uma cerca, atingida pelo que crê ter sido um rocket, caiu em cima dele e dos filhos quando saíram a correr de casa para se protegerem num abrigo que tinham cavado no jardim.

“Os meus dois filhos foram atingidos e nem sequer os conseguimos levar para o hospital ou a uma clínica porque os combates continuavam. Tentámos estancar as hemorragias e limpar as feridas. Na manhã seguinte, levaram-nos em ambulâncias para o hospital em Erbil, e o meu filho mais velho teve de ser operado às costas”, contou este homem.

Lynn Maalouf sublinha que “todas as partes devem evitar o uso de armamento pouco preciso como rockets, artilharia e morteiros e outras armas explosivas que produzem efeitos numa extensa área em zonas onde estão próximas concentrações de civis”. “Quaisquer ataques que se perfilam como provavelmente desproporcionados ou indiscriminados têm de ser adiados ou mesmo cancelados”, exorta a perita da Amnistia Internacional.

Residentes em Tab Zawa relataram aos investigadores da organização de direitos humanos que combatentes do Estado Islâmico usaram casas de aldeões, em alguns casos ainda ocupadas pelos moradores, assim como os telhados das residências, para levarem a cabo ataques contra as forças governamentais iraquianas.

Civis nas aldeias de Dirij e de Chanchi, igualmente localizadas no distrito de Bashiqa, foram também apanhados no fogo-cruzado dos combates. Um civil que fugiu de Dirij contou à Amnistia Internacional que o seu irmão, de 17 anos, foi alvejado numa perna quando estava em casa e os combatentes do EI travavam uma batalha com as Peshmerga (forças militares do aparelho de segurança do Governo Regional do Curdistão), a 22 de outubro passado.

“Os combatentes do EI tinham tomado posição na casa do nosso vizinho e estavam a disparar daí. Depois de o meu irmão ter sido alvejado, continuámos encurralados na nossa casa enquanto os combates prosseguiam e não podemos fazer mais do que tentar estancar a hemorragia… Ao fim de dois dias, o meu irmão estava já a perder a consciência e não conseguia controlar os movimentos do corpo. Aproveitámos o momento em que foi lançado um ataque aéreo contra os Daesh [o acrónimo árabe, usado localmente, em referência ao Estado Islâmico] para fugirmos, a carregá-lo, até que conseguimos chegar às Peshmerga. O meu irmão está agora no hospital em Dohuk”, reportou este civil iraquiano.

Mohamed (nome fictício para proteção de identidade da testemunha), agricultor na aldeia de Chanchi, descreveu por seu lado que perdeu a mulher e um outro familiar, uma criança de 13 anos, a 23 de outubro durante combates entre o EI e as Peshmerga. Este homem contou que os combatentes do EI os impediram de fugir da zona.

Um grupo de umas 70 pessoas tinha-se abrigado numa casa no extremo norte da aldeia quando os morteiros atingiram o local por volta das 13h daquele dia, recordaram várias testemunhas. O rapaz de 13 anos morreu imediatamente, em resultado de ferimentos na cabeça, e três outras crianças, entre os quatro e os 13 anos, foram feridas.

“A minha mulher foi atingida abaixo das costelas e, conforme o tempo foi passando, ela sentiu dores cada vez mais agudas e a hemorragia agravou-se, ao ponto de ficar com as roupas cobertas de sangue. Estávamos encurralados dentro da casa e os combates continuavam. Ela morreu ali mesmo e não pude fazer nada para a salvar. Tínhamos pedido aos Daesh para nos deixarem partir para Mossul, mas eles recusaram. E dispararam contra alguns dos nossos vizinhos que tentaram escapulir-se da aldeia”, reportou este agricultor de Chanchi.

Em alguns casos, combatentes do EI forçaram os civis residentes em aldeias a sul de Mossul a deslocarem-se para zonas do território sob o seu controlo conforme retiravam face aos ataques das forças governamentais iraquianas. Responsáveis das autoridades locais, ativistas e um residente do distrito de Al-Qayyara, que falou por telefone com os investigadores da Amnistia Internacional a partir de uma zona sob o controlo do EI, reportaram que havia civis mantidos em escolas, residências e outros locais próximos dos guerrilheiros do EI em Hamam al-Alil, os quais tinham sido forçados pelo grupo armado a abandonarem as suas casas e a deslocarem-se mais para sul no território.

Restrições austeras nos campos do Curdistão

Civis que conseguiram fugir para áreas sob o controlo das forças do Governo Regional do Curdistão desde o início das operações militares para retomar Mossul, e que se encontram atualmente em Zelikan e Khazer, não têm permissão para sair dos campos de deslocados, exceto para receberem tratamento médico em casos de emergências graves.

E mesmo nestes casos não é autorizado que familiares acompanhem as pessoas doentes ou feridas, incluindo quando são crianças. Estas restrições, a par da proibição do uso de telemóveis pelos recém-chegados aos campos, aplicam-se até a quem passou pelos rastreios de segurança das autoridades para determinar se essas pessoas têm alguma ligação ao EI.

As autoridades do Governo Regional do Curdistão justificam estas restrições com argumentos de segurança. A Amnistia Internacional exortou já as autoridades curdas em várias ocasiões a porem fim às proibições arbitrárias e discriminatórias à liberdade de movimento das pessoas deslocadas internamente no Iraque.

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