31 Março 2016

Trabalhadores migrantes que estão a remodelar o Estádio Internacional Califa, em Doha, capital do Qatar, para o Campeonato do Mundo de Futebol de 2022, têm sofrido abusos e exploração sistemática – em alguns casos mesmo sendo vítimas de trabalhos forçados – revela a Amnistia Internacional.

O relatório “The ugly side of the beautiful game: Exploitation on a Qatar 2022 World Cup site” (O lado feio do jogo bonito: exploração num estádio do Mundial de 2022 no Qatar) critica a chocante indiferença da FIFA perante o tratamento terrível que é dado aos trabalhadores migrantes. O número de pessoas que nos próximos dois anos estarão a trabalhar em estruturas do Campeonato do Mundo de Futebol de 2022 deverá aumentar em umas dez vezes mais do que o atual, para cerca de 36 mil.

“O abuso de trabalhadores migrantes é uma mancha na consciência do futebol mundial. Tanto para jogadores como adeptos, um estádio de um Mundial é um lugar de sonhos. Mas para alguns dos trabalhadores que a Amnistia Internacional entrevistou, é como se estivessem a viver um pesadelo”, frisa o secretário-geral da organização de direitos humanos, Salil Shetty. “Apesar das promessas feitas ao longo dos últimos cinco anos, a FIFA falhou quase totalmente em impedir que o Mundial seja construído sobre abusos de direitos humanos”.

Abusos muito graves incluindo trabalho forçado

Este relatório assenta em entrevistas feitas pelos investigadores da Amnistia Internacional a 132 trabalhadores migrantes envolvidos na reconstrução do Estádio Califa, o qual deverá ser o primeiro a ficar pronto para o campeonato de futebol e que acolherá uma das semifinais do Mundial de 2022. Outros 99 migrantes também ouvidos pela organização de direitos humanos trabalhavam na construção das zonas ajardinadas do complexo desportivo Aspire Zone, em redor do Estádio Califa, e onde as equipas do Bayern Munique, do Everton e do Paris Saint-Germain treinaram no inverno.

Todos os jardineiros e trabalhadores de construção que foram entrevistados pela Amnistia Internacional reportaram terem sido alvo de algum tipo de abuso, incluindo:

  • alojamentos sujos e muito pequenos

  • pagamentos elevadíssimos a recrutadores nos seus países de origem para obterem trabalho no Qatar, com valores que vão de 500 a 4.300 dólares (cerca de 440 a 3 800 euros)

  • serem enganados sobre o montante do salário ou o tipo de trabalho oferecido (apenas seis dos trabalhadores ouvidos nesta investigação recebiam o pagamento que lhes fora prometido ao chegarem ao Qatar; todos os outros recebiam menos, em alguns casos metade do prometido)

  • falta de pagamento dos salários durante vários meses, criando assim pesadas pressões financeira e emocional sobre os trabalhadores que se encontram já onerados com elevadas dívidas

  • recusa dos empregadores em darem ou renovarem as autorizações de residência, o que deixa os trabalhadores migrantes em risco de detenção e deportação, sendo tidos como trabalhadores “clandestinos”

  • empregadores que lhes confiscam os passaportes e se negam a emitir as autorizações de saída, deixando-os impedidos de deixar o país

  • serem ameaçados por fazerem queixas sobre as condições a que estão sujeitos

A Amnistia Internacional apurou provas de que uma empresa intermediária na contratação de trabalhadores migrantes fez ameaças de penalizações como reter os salários, entregar os trabalhadores à polícia ou impedi-los de saírem do Qatar. Tal constitui trabalho forçado ao abrigo da lei internacional.

Os trabalhadores, na maioria oriundos do Bangladesh, da Índia e do Nepal, foram inicialmente entrevistados pela equipa da Amnistia Internacional no Qatar entre fevereiro e maio de 2015. Quando os investigadores da organização de direitos humanos regressaram ao Qatar em fevereiro de 2016, alguns dos trabalhadores tinham sido mudados para melhores alojamentos e os passaportes devolvidos por empresas que reagiram ao que a Amnistia Internacional descobrira no terreno. Outros abusos, porém, permaneciam sem qualquer resposta.

“Endividados, a viverem em acampamentos miseráveis no deserto, a receberem salários baixíssimos, os trabalhadores migrantes são um contraste claro com os futebolistas de alta categoria que vão jogar no estádio. Todos os trabalhadores querem o gozo dos seus direitos: serem pagos no tempo devido, deixar o país se precisarem de o fazer e serem tratados com dignidade e respeito”, avança Salil Shetty.

Sistema de patrocínio de trabalho põe trabalhadores a viver no medo

O sistema de patrocínio de trabalho (conhecido como kafala), ao abrigo do qual os trabalhadores migrantes não podem mudar de trabalho nem sair do Qatar sem a autorização do seu empregador (ou “patrocinador”), está no cerne das ameaças que forçam as pessoas a trabalhar em condições miseráveis. Uma muito louvada reforma do sistema de patrocínio, anunciada pelas autoridades do país em finais de 2015, pouco fará para alterar a dinâmica de poder que existe entre os trabalhadores migrantes e os seus empregadores.

Alguns dos trabalhadores nepaleses contaram à Amnistia Internacional que nem sequer lhes foi permitido visitar os familiares depois do terramoto de abril de 2015, que devastou o Nepal causando milhares de mortos e milhões de deslocados.

Nabeel (nome fictício para proteção de identidade), operário metalúrgico oriundo da Índia e que trabalhou na remodelação do Estádio Califa, testemunhou que não foi pago durante vários meses; só recebeu constantes ameaças do empregador: “Gritava comigo o tempo todo, insultos e ameaças de que se eu me queixasse outra vez jamais conseguiria sair do país. Desde então tenho tido sempre muito cuidado em não me queixar do meu salário nem de coisa nenhuma. Claro que se eu pudesse mudava de trabalho ou deixava o Qatar”, desabafou.

E Deepak (também nome fictício), metalúrgico nepalês, contou que a sua vida no Qatar é “como uma prisão”. “O trabalho é difícil, trabalhamos muitas horas sob o sol escaldante. Quando me queixei pela primeira vez, pouco após ter chegado ao Qatar, o capataz da obra disse-me que se eu quisesse queixar-me podia fazê-lo, mas teria consequências, e que se quisesse continuar no Qatar calar-me-ia e continuava a trabalhar”.

Padrões do Mundial não são feitos cumprir

O Comité Supremo de Legados do Qatar – organismo que tutela a organização do Mundial de 2022 e, nessa qualidade, responsável pela construção dos estádios – publicou em 2014 os Padrões de Segurança e Bem-estar dos Trabalhadores. Este documento determina que as empresas que trabalham em projetos do Mundial de Futebol têm de observar padrões de tratamento dos trabalhadores melhores do que aqueles que estão previstos nas leis do Qatar.

“O Comité Supremo mostrou que o empenho e compromisso nos direitos dos trabalhadores e nos seus padrões de bem-estar têm o potencial de ajudar à melhoria das condições. Mas, ao mesmo tempo, está a deparar-se com enormes dificuldades para fazer cumprir esses mesmos padrões. Num contexto em que o Governo do Qatar se revela apático e a FIFA indiferente, será praticamente impossível que o Mundial de Futebol se realize sem abusos”, avalia o secretário-geral da Amnistia Internacional.

FIFA e marcas patrocinadoras têm de aumentar a pressão

A Amnistia Internacional exorta as grandes marcas patrocinadoras do Mundial de Futebol, como a Adidas, a Coca-Cola e a McDonald’s, a pressionarem a FIFA a avaliar a exploração de trabalhadores no Estádio Califa e a tornar públicos os planos que tem para impedir que ocorram mais abusos em projetos do Mundial.

A FIFA tem de pressionar o Qatar a publicar um plano abrangente de reformas antes de os trabalhos de construção para o Mundial de 2022 atinjam o seu pico, por meados de 2017.

Passos essenciais incluem a remoção do poder dos empregadores de impedirem que trabalhadores de outros países consigam mudar de trabalho ou saiam do Qatar, a par de investigações adequadas às condições dos trabalhadores e sanções mais severas a aplicar às empresas que cometam abusos. A própria FIFA, órgão máximo do futebol mundial, tem de fazer e tornar públicas inspeções independentes e regulares às condições de trabalho no Qatar.

“Ser país anfitrião do Mundial de Futebol ajudou o Qatar a autopromover-se como um destino de elite para alguns dos maiores clubes do mundo. Mas o futebol mundial não pode ignorar os abusos que estão nos alicerces das estruturas e estádios onde se vai jogar”, sublinha Salil Shetty. “Se a nova liderança da FIFA quer mesmo virar a página, não pode continuar a permitir que o seu maior evento global ocorra em estádios construídos sobre o abuso de trabalhadores migrantes”, prossegue.

Estruturas no centro do futebol mundial

O Estádio Califa faz parte do complexo desportivo Aspire Zone, onde também se localiza o centro de treinos Aspire Academy e as instalações médicas Aspetar, as quais foram já usadas por alguns dos maiores clubes de futebol do mundo.

“Algumas das maiores estrelas do futebol mundial podem ter já treinado em campos cuja construção e manutenção é feita por trabalhadores migrantes explorados. E podem também em breve jogar em estádios que foram construídos por esses trabalhadores”, nota o secretário-geral da Amnistia Internacional.

E remata: “É mais do que chegada a hora de os líderes do futebol se fazerem ouvir, ou ficarem maculados por associação – sejam eles grandes clubes globais como o Bayern Munique e o Paris Saint-Germain ou grandes marcas patrocinadoras como a Adidas e a Coca-Cola”.

 

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