4 Fevereiro 2016

As duras medidas de estado de emergência que estão a ser praticadas em França, incluindo buscas a altas horas da noite e ordens de detenção domiciliária, têm vindo a lesar os direitos de centenas de homens, mulheres e crianças, causando traumas e estigma social, é documentado em nova investigação da Amnistia Internacional, nas vésperas do debate no Parlamento francês que poderá levar aquelas regras a serem enraizadas na Constituição do país.

O briefing – intitulado Upturned lives: The disproportionate impact of France’s state of emergency” (Vidas viradas do avesso: o impacto desproporcionado do estado de emergência em França) e publicado esta quinta-feira, 4 de fevereiro – detalha a forma como, desde que o estado de emergência foi declarado no país pouco após os ataques de Paris, a 13 de novembro de 2015, foram feitas mais de 3 242 buscas a residências e mais de 400 pessoas sujeitas a detenção domiciliária.

A maior parte das 60 pessoas que a Amnistia Internacional entrevistou nesta investigação declararam que foram aplicadas medidas de extrema dureza sem praticamente nenhuma explicação e, em alguns casos, foi reportado o uso excessivo de força por parte da polícia. Uma mulher descreveu que agentes armados entraram de rompante na casa dela a horas tardias, quando estava a tratar do filho de três anos. Outras testemunhas contaram aos investigadores da organização de direitos humanos que o estigma de serem alvo de buscas pelas autoridades os fez perder os seus empregos.

“Os governos podem recorrer a medidas excecionais em circunstâncias excecionais, mas têm de o fazer com precaução. A realidade a que temos estado a assistir em França é que alargados poderes executivos, com muito pouca monitorização sobre o seu exercício, geraram uma série de abusos e violações de direitos humanos. É muito difícil entender como é que as autoridades francesas conseguem justificar que aquelas medidas são uma resposta proporcional às ameaças que enfrentam”, critica o diretor da Amnistia Internacional para a Europa e Ásia Central, John Dalhuisen.

Muitas das pessoas entrevistadas pela Amnistia Internacional, desde que a organização começou a documentar casos pouco após a declaração dos três meses de estado de emergência em França, garantiram que não recebem praticamente nenhuma informação por parte das autoridades que demonstre que estejam envolvidos em ameaças à segurança. Os documentos dos serviços secretos que são apresentados em tribunal contêm pouca informação para substanciar as suspeitas de que as pessoas levadas perante os juízes representem alguma ameaça à ordem pública. Muitas destas pessoas têm-se visto em enormes dificuldades para contestarem as restrições que lhes são impostas em resultado daqueles procedimentos.

Ivan contou à Amnistia Internacional que 40 agentes da polícia fizeram uma busca em novembro ao seu restaurante, nos subúrbios de Paris, quando os clientes – homens, mulheres e crianças – estavam a jantar. Descreveu que a conduta da polícia foi desnecessariamente dura: “Disseram às pessoas para porem as mãos em cima das mesas e então fizeram buscas por todo o lado durante uns 35 minutos. Arrombaram três portas. Disse-lhes que tinha as chaves comigo e que podia perfeitamente abrir-lhes as portas, mas ignoraram-me”.

“O que mais me chocou naquilo é que, com base na ordem de buscas, eles pensavam que iriam encontrar no meu restaurante pessoas que seriam uma ameaça pública. Porém, não verificaram os documentos de identificação de nenhum dos 60 clientes que lá estavam”, prosseguiu esta testemunha. Nenhuma outra ação foi tomada pelas autoridades contra Ivan.

As medidas do estado de emergência têm tido um impacto mito significativo nos direitos humanos das pessoas por elas visadas. Algumas perderam os empregos. Quase todas ficaram marcadas pela ansiedade e stress.

Outro exemplo está na busca que foi feita à casa onde Issa vive com a mulher Samira, a 4 de dezembro, assente em razões não especificadas de que ele era suspeito de ser um “radical islamita”. A polícia nunca abriu formalmente investigações criminais contra o casal, mas os agentes copiaram todos os dados contidos no computador de Issa, impuseram-lhe um recolher obrigatório e condicionaram-no a apresentar-se três vezes por dia numa esquadra e a não sair da vila onde reside. Issa teve de recusar uma oferta de trabalho num serviço de entregas devido àquelas condicionantes e gastou a maior parte das poupanças do casal em custos e taxas legais.

Vários entrevistados pela Amnistia Internacional contaram que as buscas às casas causaram medo, stress e outros problemas de saúde.

“Deixei de conseguir dormir bem e se alguém fala alto comigo fico a tremer”, contou Fahima aos investigadores da Amnistia Internacional, depois de a polícia ter entrado armada e de rompante em sua casa, a meio da noite, quando ela tratava do filho de três anos.

A maior parte das pessoas ouvidas nesta investigação reportaram que as atuais medidas de emergência são aplicadas de forma discriminatória, especificamente tomando os muçulmanos como alvo, com frequência tendo por base a sua fé e práticas religiosas em vez de provas concretas de algum comportamento criminoso.

Várias mesquitas e locais de oração foram encerrados pelas autoridades francesas desde os ataques em Paris. A mesquita de Lagny-sur-Marne, comuna nos subúrbios da capital francesa, foi fechada apesar de os relatórios policiais indicarem que “não foram encontrados elementos que justifiquem a abertura de uma investigação”.

“Se há alegações contra uma ou duas pessoas, porque é que não visam essas pessoas especificamente? Porque é que tomam toda a comunidade como alvo? Há cerca de 350 muçulmanos em Lagny que ficaram agora sem ter onde fazer as suas orações”, critica o presidente da mesquita e de três organizações que foram extintas pelas autoridades.

As medidas de emergência em França têm tido custos enormes para os direitos humanos dos indivíduos, e geraram poucos resultados tangíveis, o que faz questionar a proporcionalidade destas medidas. Segundo é reportado pelos meios de comunicação social, das 3 242 buscas que foram feitas entre 14 de novembro e 29 de janeiro resultaram apenas quatro investigações criminais por suspeitas de atos relacionados com terrorismo, e 21 outros inquéritos foram abertos com base em provisões vagas de “apologia do terrorismo”. Outras 488 investigações abertas em consequências destas buscas assentam em ofensas criminais não relacionadas com questões de segurança e de ordem pública.

“É muito fácil fazer afirmações generalizadas sobre ameaças relacionadas com o terrorismo que requerem a adoção de poderes de emergência. Mas, o Governo francês tem de demonstrar de forma inequívoca que o estado de emergência ainda persiste e se justifica, e os deputados no Parlamento têm de o examinar muito cuidadosamente. E mesmo que isso seja confirmado, salvaguardas significativas têm de ser repostas de forma a evitar o recurso a medidas de emergência abusivas, desproporcionadas e discriminatórias”, remata o diretor da Amnistia Internacional para a Europa e Ásia Central.

 

Artigos Relacionados