6 Julho 2016

 

Grupos armados que operam em Alepo e em Idleb e nas zonas em redor destas cidades sírias têm levado a cabo uma horrível vaga de raptos, tortura e execuções sumárias, alerta a Amnistia Internacional num novo briefing fruto de investigação ao conflito armado no país.

O briefing – intitulado ‘Torture was my punishment’: Abductions, torture and summary killings under armed group rule in Aleppo and Idleb, Syria” (“A tortura foi o meu castigo: raptos, tortura e execuções sumárias às mãos de grupos armados em Alepo e em Idleb, na Síria”) e publicado esta terça-feira, 5 de julho –, dá um raro vislumbre da realidade do que é a vida nas zonas que estão sob o controlo dos grupos armados da oposição na Síria.

Crê-se que alguns destes grupos gozam do apoio de governos de outros países como o Qatar, a Arábia Saudita, a Turquia e os Estados Unidos, apesar dos repetidos indícios de estarem a cometer graves violações da lei internacional humanitária (as leis da guerra). Este briefing da organização de direitos humanos demonstra também como estão a operar as instituições administrativas e quase-judiciais criadas pelos grupos armados para governar nestas regiões.

“Esta investigação expõe a perturbadora realidade dos civis que vivem sob o controlo de alguns dos grupos armados da oposição em Alepo, em Idleb e zonas circundantes. Muitos civis vivem com o medo permanente de serem raptados se fizerem ouvir quaisquer críticas à conduta dos grupos armados que detêm o poder ou não cumprirem as regras rígidas que alguns impuseram na região”, avança o diretor da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África, Philip Luther.

O perito explica que “atualmente, em Alepo e em Idleb, os grupos armados têm rédea livre para cometer crimes de guerra e outras violações da lei internacional humanitária com total impunidade”. “E, de forma profundamente chocante, documentámos também que há grupos armados a recorrerem aos mesmos métodos de tortura que são, por rotina, usados pelo Governo sírio”, prossegue.

“Países que são membros do Grupo Internacional de Apoio à Síria, incluindo os Estados Unidos, o Qatar, a Turquia e a Arábia Saudita, e que estão envolvidos em negociações sobre a situação na Síria, têm de exercer pressão sobre os grupos armados para acabarem com estes abusos e cumprirem as leis da guerra. Têm também de pôr fim a todas as transferências de armas ou qualquer outra assistência que estejam a prestar a grupos envolvidos em crimes de guerra e outras graves violações”, exorta Philip Luther.

O briefing Torture was my punishment” descreve abusos cometidos por cinco grupos armadas que exerceram controlo territorial de zonas nas províncias de Alepo e de Idleb desde 2012. São eles: as brigadas Nour-Din al-Zinki, a Frente Al-Shamia e a Divisão 16, que se juntaram em 2015 à coligação de grupos armados Fatah Halab (conhecida também como “Conquista de Alepo”), e ainda os grupos Jabhat al-Nusra (“Al-Qaeda da Síria”) e Ahrar al-Sham, em Idleb, os quais integraram a chamada coligação “Conquista Militar” também em 2015.

Alguns grupos armados não-estatais como o Jabhat al-Nusra, a Frente Al-Shamia e o Ahrar al-Sham impuseram os seus próprios “sistemas judiciais” da sharia (lei islâmica) nas regiões sob o seu controlo e criaram os seus próprios organismos não oficiais de procuradoria, forças policiais e centros de detenção. O Jabhat al-Nusra e o Ahrar al-Sham, entre outros grupos armados, aplicaram uma interpretação rígida da sharia, estabelecendo castigos para o que entendem como infrações e os quais constituem tortura e outros maus-tratos.

Este novo briefing da Amnistia Internacional documenta 24 casos de raptos perpetrados por grupos armados nas regiões de Alepo e de Idleb entre 2012 e 2016. Entre as vítimas estão ativistas pacíficos e até mesmo crianças, assim como membros de minorias que foram alvo deste abuso de direitos humanos apenas devido à sua confissão religiosa. A investigação dá conta também de cinco casos concretos – ocorridos entre 2014 e 2015 – de pessoas que alegadamente foram torturadas às mãos do grupo Jabhat al-Nusra e das brigadas Nour-Din al-Zinki após terem sido raptadas.

“Ibrahim” (nome fictício para proteção de identidade), ativista político sírio que foi raptado pelo Jabhat al-Nusra em Alepo em abril de 2015, relatou aos investigadores da Amnistia Internacional que foi continuamente torturado durante os três dias em que o mantiveram preso. Este sírio crê que foi alvo de tais abusos por ter organizado manifestações pacíficas a favor do movimento de rebelião em 2011.

“Levaram-me para a sala de tortura. Puseram na posição de shabeh [imobilização postural prolongada], atando-me com os pulsos ao teto de forma aos meus dedos dos pés não tocarem no chão. Então começaram a bater-me com cabos, no corpo todo… Depois da shabeh, usaram a técnica de dulab [pneu, em árabe]: forçaram-me a dobrar-me todo, a cabeça contra os joelhos, e enfiaram-me num pneu, e voltaram a espancar-me, então com paus”, contou. “Ibrahim” acabou por ser liberto, largado na berma de uma estrada.

Num outro caso chocante, “Halim” (também nome fictício), trabalhador humanitário, foi raptado pelas brigadas Nour-Din al-Zinki em julho de 2014 quando supervisionava um projeto num hospital de Alepo. Foi mantido sem possibilidade de comunicação durante cerca de dois meses antes de o forçarem a assinar sob tortura uma “confissão”.

“Quando me recusei a assinar os papéis da ‘confissão’, o interrogador mandou um dos guardas torturar-me. O guarda usou a técnica de bisat al-rih [tapete voador, em árabe]. Pôs-me as mãos sobre a cabeça e obrigou-me a levantar as pernas numa posição perpendicular ao tronco. E então começou a bater-me com cabos nas solas dos pés. Não consegui aguentar a dor… por isso assinei o papel”, contou.

Ativistas de direitos humanos, minorias e crianças são alvos

Vários jornalistas e ativistas que trabalham para reportar nos media os abusos que são cometidos contaram à Amnistia Internacional que foram raptados porque criticaram a conduta dos grupos armados no poder. Muitos foram posteriormente libertos, aparentemente devido à pressão pública exercida sobre o grupo armado que os raptara.

“Issa”, ativista nos media, de 24 anos, reportou que deixou de publicar no Facebook tudo o que pudesse pô-lo em risco, depois de ter recebido ameaças do Jabhat al-Nusra. “Eles controlam o que podemos e não podemos dizer. Ou concordamos com as regras sociais e políticas deles ou desaparecemos. Nos últimos dois anos, foi ameaçado três vezes pelo Jabhat al-Nusra por criticar o regime deles no Facebook”.

Outro ativista media, “Imad”, descreveu que combatentes do Jabhat al-Nusra invadiram os estúdios da Radio Fresh, na zona Norte de Idleb, em janeiro de 2016, e raptaram dois dos locutores que mantiveram em cativeiro durante dois dias apenas por terem posto a tocar música que o grupo armado considera ofensiva para o Islão.

Ativistas das redes sociais em Alepo contaram que lhes foram feitas ameaças verbais e escritas pela Frente Al-Shamia e pelas brigadas Nour-Din al-Zinki por os terem criticado ou acusado de corrupção em posts no Facebook.

Advogados, ativistas políticos e outros também têm sido alvo de represálias por parte da Frente Al-Shamia, do Jabhat al-Nusra e do Ahrar al-Sham, devido às atividades que exercem, à interpretação que aqueles grupos fazem das suas crenças religiosas e às suas opiniões políticas.

“Bassel”, advogado de Idleb, foi raptado de casa, em Ma’rat al-Nu’man, em novembro de 2015, por ter criticado o grupo armado Jabhat al-Nusra. “Fiquei feliz por ter sido liberto do regime injusto do Governo sírio, mas agora a situação é pior. Critiquei publicamente o Jabhat al-Nusra no Facebook… e na manhã seguinte vieram buscar-me a casa”, recordou.

Este advogado foi mantido numa casa abandonada durante dez dias e os captores só o libertaram depois de o forçarem a deixar de exercer a sua profissão, ameaçando-o com o aviso de que caso não o fizesse nunca mais veria a família.

Uma ativista política que foi raptada num posto de controlo do Ahrar al-Sham, e mantida num centro de detenção controlado por este grupo armado, contou aos investigadores da Amnistia Internacional que foi abordada e raptada por não envergar o véu islâmico e prontamente dada como suspeita de ser apoiante do Governo sírio.

A organização de direitos humanos documentou também os raptos de pelo menos três menores – todos rapazes, de 14, 15 e 16 anos – por combatentes do Jabhat al-Nusra e do Ahrar al-Sham, em Idleb e em Alepo, entre 2012 e 2015. Dois deles continuavam desaparecidos a 28 de junho passado.

Membros da minoria síria curda residentes em Maqsoud, bairro de Alepo de população predominantemente curda, estão também entre as pessoas raptadas pelos grupos armados, assim como padres apenas por causa da sua confissão religiosa cristã.

“Todos os grupos armados, e, em particular, os de Alepo e Idleb, têm de libertar imediata e incondicionalmente todas as pessoas que detiveram devido tão só às suas opiniões políticas, etnia ou religião”, insta o diretor da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África.

Philip Luther avança ainda que “os líderes dos grupos armados no Norte da Síria têm o dever de pôr fim aos abusos de direitos humanos e às violações da lei internacional humanitária, incluindo crimes de guerra”. “E têm a obrigação de se fazer ouvir e condenar tais condutas, e enviar a mensagem clara aos seus subordinados de que estes crimes não serão tolerados”, prossegue o perito.

Execuções sumárias

O briefing Torture was my punishment” contem também provas da ocorrência de execuções sumárias cometidas pelo grupo armado Jabhat al-Nusra e pela Frente Al-Shamia e pelos seus “tribunais” – o chamado Conselho Judicial Supremo – organismo formado em Alepo que é reconhecido por vários grupos armados como a única autoridade judicial na região.

Entre os mortos estão civis, incluindo um adolescente de 17 anos que foi acusado de ser homossexual e uma mulher acusada de adultério, assim como combatentes das forças governamentais sírias, das milícias alauitas pró-Governo shabiha [fantasmas, em árabe] e de membros do grupo jihadista autoproclamado Estados Islâmico, e ainda de outros grupos rivais, que foram capturados pelos grupos armados rebeldes. Em alguns casos, as execuções sumárias foram feitas perante multidões. A morte deliberada de pessoas mantidas em cativeiro em conflitos armados é expressamente proibida pela lei internacional humanitária e constitui crime de guerra.

“Saleh”, que foi mantido cativo pelo Jabhat al-Nusra em dezembro de 2014, contou aos investigadores da Amnistia Internacional ter visto cinco mulheres serem acusadas de adultério e sobre as quais um dos guardas disse que “só serão perdoadas com a morte”. Mais tarde, esta testemunha viu um vídeo em que combatentes do Jabhat al-Nusra levavam a cabo a execução pública de uma dessas mulheres.

Segundo o Código Árabe Unificado, que reúne legislação baseada na sharia e é seguido pelo Conselho Judicial Supremo e pelo “tribunal” operado pela Frente Al-Shamia, alguns crimes – como o homicídio e a apostasia (renúncia da fé) – são punidos com a morte.

“Emitir sentenças e levar a cabo execuções sumárias sem julgamento conduzido num tribunal regularmente constituído, com a observação das devidas garantias judiciais, é uma grave violação da lei internacional e constitui crime de guerra”, avalia Philip Luther.

Ao longo dos últimos cinco anos, a Amnistia Internacional tem documentado extensamente crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos a uma escala maciça pelas forças governamentais sírias. A organização de direitos humanos tem documentado também a ocorrência de graves violações, incluindo crimes de guerra, pelo grupo jihadista que se autodesigna Estado Islâmico e outros grupos armados.

“Alguns civis que vivem nas áreas controladas pelos grupos armados da oposição podem, de início, ter acolhido bem terem ficado livres do brutal regime do Governo sírio, mas as esperanças de que estes grupos respeitariam os direitos humanos dissiparam-se conforme os grupos armados foram tomando a lei nas suas mãos e cometendo cada vez mais graves abusos”, frisa o diretor da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África.

Philip Luther sublinha ainda que “é crucial que a Rússia e os Estados Unidos, e, em especial o Enviado Especial das Nações Unidas à Síria, deem prioridade, nas negociações que prosseguem em Genebra, às detenções feitas pelas forças governamentais e aos raptos cometidos pelos grupos armados”. “E, pela sua parte, o Conselho de Segurança da ONU tem de impor sanções específicas aos líderes dos grupos armados que são responsáveis por crimes de guerra”, remata o perito.

 

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