4 Outubro 2017

A comunidade internacional tem de ajudar a garantir que nenhum refugiado rohingya é forçado a regressar do Bangladesh para Myanmar (Birmânia) enquanto permanecer o risco de graves violações de direitos humanos na esteira da perversa campanha de limpeza étnica feita pelo Exército birmanês, insta a Amnistia Internacional.

Os governos de Myanmar e do Bangladesh anunciaram esta semana que criaram um grupo de trabalho para discutir o repatriamento dos refugiados rohingya que se encontram em território bengali. Mais de meio milhão de mulheres, homens e crianças rohingya fugiram, em pouco mais de um mês, de uma operação militar no estado birmanês de Rakhine.

“Apesar de ser positivo que Myanmar e o Bangladesh estejam a debater alternativas para o regresso seguro dos rohingya às suas casas, tal retorno tem de ser um processo voluntário e não pode resultar num esforço apressado e imprudente para empurrar as pessoas de volta contra a sua vontade. Ninguém deve ser forçado a regressar a uma situação em que continue a enfrentar graves violações de direitos humanos e de discriminação e segregação sistemáticas”, explica a diretora da Amnistia Internacional para os Assuntos Globais, Audrey Gaughran.

Esta perita da organização de direitos humanos avança que “a horrível operação do Exército de Myanmar contra os rohingya no estado de Rakhine constitui crimes contra a humanidade”. “O primeiro requisito que tem de se verificar antes de tornar qualquer plano de repatriamento numa realidade é que exista um fim incondicional da violência. Mas isso não chega – o Governo birmanês tem também de acabar com a discriminação enraizada que há décadas aprisiona os rohingya num ciclo de privações e de abusos”, descreve ainda.

a horrível operação do Exército de Myanmar contra os rohingya no estado de Rakhine constitui crimes contra a humanidade!

Audrey Gaughran, diretora da Amnistia Internacional para os Assuntos Globais

Nesta segunda-feira, 2 de outubro, o ministro dos Negócios Estrangeiros do Bangladesh, Abul Hassan Mahmood Ali, declarou, em Daca, a capital bengali, que Myanmar “mostrou interesse” em receber de volta os refugiados rohingya, após uma reunião entre responsáveis governamentais dos dois países. Não são ainda conhecidos publicamente os pormenores da proposta discutida, e não é claro se a mesma cobre apenas os fluxos recentes de refugiados ou também aqueles que vivem há décadas no Bangladesh.

Violação flagrante do princípio de non-refoulement

Ao longo da década de 1990 e nos primeiros anos de 2000, dezenas de milhares de refugiados rohingya foram forçados a voltar do Bangladesh a Myanmar numa operação de repatriamento em larga escala, com a assistência do gabinete do Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR, UNHCR na sigla em inglês). As pessoas obrigadas a voltar continuaram a ser confrontadas com uma discriminação sistemática e com o aval do Estado, assim como com vagas de violência no estado de Rakhine.

Nessa altura, grupos e organizações de direitos humanos, incluindo a Amnistia Internacional, expressaram preocupações sérias sobre o retorno forçado das pessoas contra a sua vontade e sem um mínimo de consultas. Acresce que as agências internacionais – incluindo as das Nações Unidas – foram totalmente postas à margem durante o processo.

O retorno forçado de refugiados viola o princípio de non-refoulement – a proibição absoluta e expressa, tanto na legislação internacional como no direito consuetudinário, de forçar as pessoas a retornarem a um território onde fiquem em risco real de vida ou de outras graves violações de direitos humanos. Para um processo de regresso ser verdadeiramente voluntário, têm de ser providenciadas aos rohingya alternativas ao retorno, incluindo a opção de procurarem obter proteção internacional.

“Tem de ser permitido aos refugiados rohingya voltarem às suas casas de forma voluntária e em segurança e dignidade. O Governo de Myanmar tem de fazer todos os esforços para reconstruir as comunidades e povoações que foram destruídas e para pôr fim à discriminação e segregação enraizadas dos rohingya, que estão no cerne desta crise”, reitera Audrey Gaughran.

As autoridades birmanesas tinham indicado anteriormente que o regresso ao país de qualquer refugiado teria de ser “verificado” e que poderiam ser exigidas provas de cidadania ou de residência em Myanmar.

“Há anos que as autoridades birmanesas negam a cidadania aos rohingya e os privam de outras formas de provarem a sua identidade. Não é razoável esperar que pessoas que fogem para salvar as suas vidas garantam ter os documentos necessários num processo de ‘verificação’”, critica a diretora da Amnistia Internacional para os Assuntos Globais.

Audrey Gaughran sublinha ainda que “há também uma necessidade real de supervisão internacional e das Nações Unidas em qualquer processo de repatriamento”. “O Bangladesh mostrou uma generosidade excecional ao abrir as suas fronteiras e acolher centenas de milhares de pessoas em fuga desesperada durante o último mês. A comunidade internacional tem de fazer a sua parte a ajudar Daca a lidar com a atual crise e o que se lhe seguir”, exorta.

“Zonas seguras” falharam no passado recente

Nas semanas recentes, responsáveis governamentais do Bangladesh prestaram declarações públicas também sobre a necessidade de criar “zonas seguras” dentro de Myanmar. Tais “zonas seguras” têm, porém, uma história acidentada em outros conflitos. Por exemplo, tanto na Bósnia-Herzegovina em 1993 como no Sri Lanka em 2009, essas “zonas seguras” fracassaram redondamente em evitar mortes em larga escala e outros abusos de direitos humanos cometidos contra pessoas em fuga.

“Propostas de criação de zonas seguras, por muito bem-intencionadas que sejam, devem ser tratadas com extrema cautela. As experiências do passado mostram que tais áreas podem não apenas facilitar a ocorrência de violações contra quem se escapou da sua casa como também podem impedir que as pessoas consigam fugir para local seguro. E no estado de Rakhine, essas zonas podem enraizar ainda mais profundamente o isolamento e a segregação da comunidade rohingya”, sustenta Audrey Gaughran.

O anúncio feito no início de setembro passado pelas autoridades birmanesas, de que criariam campos de deslocados internos e zonas de instalação no Norte do estado de Rakhine, é também preocupante.

Os campos de deslocados internos que foram construídos em Myanmar para pessoas na maioria rohingya, na sequência das vagas de violência em 2012, têm sido pouco mais do que prisões a céu aberto, onde mulheres, homens e crianças vivem em condições deploráveis, e com o Governo a restringir o acesso das agências de ajuda humanitária a esses locais. Os campos têm cimentado o isolamento de dezenas de milhares de pessoas rohingya em relação ao mundo exterior.

A comunidade internacional tem de enviar uma mensagem clara de que não permitirá que se repita o que aconteceu em 2012. E os doadores têm de traçar uma linha vermelha e deixar bem claro que não irão financiar nenhumas ‘soluções’ propostas que conduzam a retornos forçados do Bangladesh ou à deslocação e continuada segregação dos rohingya. Fracassar nisto não só permitirá a continuidade das violações de direitos humanos, tornará a comunidade internacional cúmplice”, remata a diretora da Amnistia Internacional para os Assuntos Globais.

  • 80 milhões

    80 milhões

    Em 2020, existiam mais de 80 milhões de pessoas que foram forçadas a sair do seu local de origem devido a perseguição, violência, conflito armado ou outras violações de direitos humanos.
  • 26 milhões

    26 milhões

    No final de 2020 estimava-se a existência de 26 milhões de refugiados no mundo.
  • 45 milhões

    45 milhões

    Mais de 45 milhões de pessoas foram forçadas a deixar as suas casas permanecendo dentro do seu próprio país (deslocados internos).
  • 4 milhões

    4 milhões

    Estima-se que existam mais de 4 milhões de pessoas em todo o mundo consideradas "apátridas" – nenhum país as reconhece como nacional.

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