11 Janeiro 2016

 

Novos testemunhos prestados por habitantes de vilas cercadas na Síria à Amnistia Internacional dão conta de um desespero total na busca por alimentos, especialmente com a chegada do inverno, dando renovado ênfase à necessidade imperativa de que seja permitido o acesso de ajuda humanitária sem nenhumas restrições a todos os civis que carecem de assistência, assim como ao fim dos cercos das populações em todo o país.

A organização de direitos humanos ouviu residentes da cidade de Madaya, nos arredores de Damasco, e recolheu relatos também das condições em que se encontram as populações em Foua e em Kefraya (no Norte da Síria). Os civis esfomeados descrevem que as famílias estão a sobreviver com pouco mais do que folhas das árvores e arbustos e água fervida. As cidades e vilas sob cerco deverão começar a receber ajuda humanitária depois de ter sido firmado um acordo que envolveu o Governo sírio, na passada quinta-feira, 7 de janeiro.

“Estes angustiantes testemunhos da fome pela qual as pessoas estão a passar representam apenas a ponta do icebergue. Os sírios estão a sofrer e a morrer por todo o país porque a fome está a ser usada como arma de guerra, tanto pelas forças do Governo sírio como pelos grupos armados. Ao continuarem a impor cercos sobre as áreas civis e só muito esporadicamente e a seu bel-prazer permitindo a entrada de assistência humanitária, estão a agravar a crise e a brincar com as vidas de centenas de milhares de pessoas”, critica o director da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África, Philip Luther.

O perito da organização de direitos humanos frisa que “o uso da inanição de civis como método de guerra é um crime de guerra”. “Todas as partes envolvidas no conflito que estão a cercar áreas civis – o Governo e grupos armados não ligados ao Estado – têm de parar imediatamente de impedir a chegada de fornecimentos de emergência às populações e permitir um acesso sem nenhumas restrições à ajuda humanitária”, insta ainda.

As Nações Unidas estimam que 400.000 pessoas estão a subsistir sem nenhum acesso a ajuda crucial de sobrevivência em pelo menos 15 localidades que estão sob cerco por todo o país.

O Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou duas resoluções em que todas as partes envolvidas no conflito são exortadas a levantar os cercos e abrir caminho para o acesso da assistência humanitária. Até à data todas as partes continuaram a não cumprir estas resoluções que visam aliviar o sofrimento dos civis na Síria.

Esqueletos andantes em Madaya e em Boukein

As cidades adjacentes de Madaya e Boukein, para oeste de Damasco, a capital síria, estão sob cerco desde julho de 2015 por forças governamentais. Cerca de 40.000 pessoas estão encurraladas nestas duas cidades, sem fornecimentos de eletricidade nem água canalizada.

A ajuda humanitária foi entregue pela última vez em outubro de 2015 e entretanto já há muito que se esgotou. Um cessar-fogo acordado em setembro do ano passado visava garantir um acesso sem limitações à assistência e a deslocação de civis feridos – mas nada disto foi concretizado.

As famílias estão sem acesso aos mais básicos bens alimentares. Alguns fornecimentos ainda vão furando as linhas de cerco, mas chegam a preços exorbitantes. Os civis têm vindo a procurar com que se alimentar nos bosques em volta, onde se arriscam a ser alvejados por atiradores furtivos ou a pisar minas.

Residente em Madaya, Mohammad, contou aos investigadores da Amnistia Internacional, a 7 de janeiro, que “todos os dias se acorda para ir à procura de comida”. “Perdi muito peso, pareço um esqueleto, apenas com a pele em cima. Todos os dias sinto que vou desmaiar e não volto a acordar… Tenho mulher e três filhos. Comemos uma vez a cada dois dias e temos sempre o cuidado de que aquilo que compramos não se esgote. Nos outros dias bebemos água com sal e, às vezes, algumas folhas das árvores. Por vezes, as organizações distribuem alimentos que compraram a abastecedores, mas não conseguem dar resposta às necessidades de todas as pessoas”.

Mohammad descreve que “em Madaya, vê-se esqueletos andantes, as crianças estão sempre a chorar, há muita gente com doenças crónicas”. “Algumas pessoas contaram-me que vão todos os dias aos postos de controlo e pedem para que os deixem partir, mas o Governo não os deixa sair. Só temos um hospital de campo, é apenas um quarto, e não têm nenhuns equipamentos clínicos nem medicamentos”.

Por seu lado, Um Sultan, igualmente habitante de Madaya e que foi ouvida pela Amnistia Internacional também a 7 de janeiro, conta que “o cerco foi ficando cada vez pior conforme a comida se esgotava”. “Todos os dias ouço contar que alguém está doente e já incapaz de sair da cama. O meu marido é agora uma dessas pessoas; ele não consegue levantar-se e quando tenta fazê-lo perde os sentidos. Já nem o reconheço, é só pele e osso. Tenho pedido ajuda para conseguir comida mas ninguém nos pode ajudar, estamos todos na mesma situação. As mulheres protestam: vamos aos postos de controlo e rogamos às forças de segurança sírias que nos deixem sair ou pelo menos que permitam a entrada de comida. Responderam-nos que ‘um cerco sobre Kefraya ou Foua significa que há cerco em Madaya’. Tenho três filhos e não tenho dinheiro para comprar comida para eles: um quilo de arroz ou de açúcar custa cem mil libras sírias [cerca de 413 euros]. Quem é que pode pagar isso?”

Louay, residente em Madaya, contou os investigadores da Amnistia Internacional, a 7 de janeiro, que a última vez que teve uma refeição foi há pelo menos um mês e meio. “Agora como basicamente água com folhas. O inverno já chegou aqui e as árvores estão sem folhas, por isso não sei muito bem como é que vamos sobreviver. Quem tiver dinheiro consegue comprar comida. Mas as pessoas já estão a ficar sem dinheiro porque a comida que cá chega é tão cara. Eu fiquei sem dinheiro há várias semanas, por isso dependo totalmente da ajuda, que não dá resposta às necessidades de todos”.

Execuções a quem tenta entrar com comida em Foua e Kefraya

As vilas de Foua e de Kefraya, para nordeste da cidade de Ibleb, estão totalmente cercadas por combatentes do grupo armado Jaysh al-Fateh (anti-Governo) desde março de 2015. Estima-se que estão sob cerco 30.000 pessoas nestas duas localidades; estão também sem energia, água canalizada e alimentos. Um cessar-fogo acordado em setembro de 2015 não foi totalmente concretizado.

Habitante de Foua, Mazen contou à Amnistia Internacional na passada quinta-feira que “ambas as cidades têm a eletricidade e a água cortadas desde março [do ano passado]”. “O acesso a alimentos é muito limitado, não temos vegetais nem farinha e, por isso, não há pão. Não temos açúcar nem arroz. Algumas pessoas subsistem graças à comida que guardaram para as emergências ou com alimentos que se podem preparar sem água ou com fornecimentos que foram lançados do ar pelas forças governamentais”.

Mazen recorda que “há três meses, o Jaysh al-Fateh executou dois homens que foram apanhados a contrabandear alimentos para as duas vilas; as mesquitas anunciaram as execuções e avisaram que quem quer que tente entrar nem que seja com um pão terá o mesmo destino”. “Os grupos armados bombardearam o principal tanque de água há alguns meses, pelo que já não temos nenhuma água. Não recebemos combustível das Nações Unidas e, assim, temos vindo a usar madeira para nos mantermos quentes”.

Outro habitante de Foua, Fadi, relatou aos investigadores da organização de direitos humanos, também a 7 de janeiro, que “há duas semanas os grupos armados que cercam a vila deixaram que o Crescente Vermelho saísse com 336 civis e feridos; isto deveria ter acontecido meses antes, ao abrigo do cessar-fogo acordado”. “Não temos comida. Eu já não tenho nenhuma comida, já gastei todas as reservas de alimentos que tínhamos”, prossegue.

Fadi conta que agora espera a chegada de ajuda. “Mas não será suficiente. Não podemos receber comida uma só vez em vários meses. Ninguém conseguirá sobreviver assim. As pessoas que têm doenças crónicas são as que estão a sofrer mais, pois não têm acesso a medicamentos e muitas não foram incluídas nas listas daqueles que foram transportados [para fora de Foua e Kefraya]”.

 

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