10 Novembro 2014

Um mês antes da queda do Muro de Berlim, a 9 de outubro de 1989, Steve Crawshaw, chefe de gabinete do secretário-geral da Amnistia Internacional, estava em Leipzig como jornalista do diário britânico The Independent: assistiu às manifestações de dezenas de milhares de alemães corajosos que não demoveram nem mesmo face à ameaça de violência letal. Nas décadas anteriores vira os primeiros passos da mudança no bloco soviético, incluindo a criação do Solidariedade na Polónia. Conta-nos aqui o que foram esses dias extraordinários e recorda-nos a importância de que se revestem até hoje.

 

Os títulos das notícias são quase sempre sobre as coisas más que estão a acontecer no mundo. E isso acontece por uma boa razão: temos de ser lembrados das coisas más de forma a compreendermos melhor o nosso mundo e conseguirmos mudá-lo. Mas 1989 foi um ano em que essa regra foi virada do avesso. Por uma vez excecional, as boas notícias dominaram as primeiras páginas, dia após dia e mês após mês. Aquele foi um ano de milagres – milagres que se tornaram possíveis graças a milhões de pessoas corajosas, as quais arriscaram tudo para se alcançarem mudanças.

Os episódios dramáticos da queda do Muro de Berlim, a 9 de novembro, redesenharam a Europa e as suas repercussões continuam a sentir-se hoje em dia no mundo inteiro.

Aquele momento extraordinário não surgiu isolado. E um fator fundamental e determinante no recuo notável por parte das autoridades da República Democrática Alemã [RDA] foi a coragem de muitos dos alemães do Leste nos meses que antecederam a derrocada do Muro.

As dezenas de milhares de pessoas que inundaram as ruas de Leipzig a 9 de outubro, exatamente um mês antes, desempenharam um papel fundamental. Como jornalista do [diário britânico] The Independent, tive o privilégio de estar em Leipzig naquela noite (antes de a polícia secreta me expulsar da cidade, já noite avançada; e já com a minha reportagem enviada por correio, numa época anterior à proliferação dos telemóveis, não me importei muito em ter sido expulso).

Presenciei o impacto extraordinário da coragem individual, multiplicada muitíssimas vezes. As autoridades da RDA tinham ameaçado matar todos os que prosseguissem com o que definiam como “atos contra revolucionários”; e só mesmo no último momento, quando demasiados cidadãos de Leipzig permaneceram irredutíveis, é que recuaram na decisão de recorrerem a violência mortal contra os manifestantes pacíficos. E nesse sentido, o nome moderno de Leipzig – “cidade dos heróis” – não é uma hipérbole. A coragem daquelas pessoas, face ao risco de serem mortas, mudou o curso da história.

Numa perspetiva mais abrangente, o processo de mudança começara mesmo muito antes de a RDA se ter tornado irrequieta. Vivi na União Soviética nos meus tempos de estudante, na década de 1970, numa altura em que parecia impossível imaginar sequer que os direitos mais básicos poderiam ou seriam respeitados onde quer que fosse dentro do bloco soviético. Mas, de forma invulgar, russos e outros no Leste da Europa, cheios de coragem, ergueram-se para exigir a legislação de direitos humanos que tinha sido admitida, em teoria, nos Acordos de Helsínquia, [assinados na Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa], de 1975.

Na altura em que foram feitas, as promessas assumidas em Helsínquia pareceram vãs. Mas a criação de grupos de observadores e de monitorização por toda a região assegurou que aqueles compromissos não poderiam ser totalmente ignorados.

Apesar da constante perseguição e das penas de prisão frequentes, os ativistas de direitos humanos continuaram a pedir contas aos seus líderes. Em 1978, o dissidente checo Vaclav Havel escreveu o seu notável ensaio, que constituiu um marco da época, “O Poder e os Sem Poder”, no qual é descrito o impacto potencial de, como descreveu o dramaturgo [e que se tornaria no primeiro Presidente checo democraticamente eleito], “viver a verdade”. Houve quem achasse aquele ensaio ingénuo. Mas mais tarde, o que ali fora escrito tornou-se numa realidade, em Praga e muitas outras partes do bloco.

As mudanças mais dramáticas ocorreram na Polónia em 1980, quando milhões de polacos reivindicaram direitos fundamentais como a liberdade de expressão, de associação, de reunião, e muitas outras. Contra todas as probabilidades os polacos alcançaram vitórias extraordinárias. Eu vivia em Cracóvia quando o Solidariedade, movimento de direitos sindicais, foi criado em agosto de 1980 – cinco anos antes da chegada ao poder do líder reformista soviético Mikhail Gorbatchov. Aqueles eram dias profundamente extraordinários de se viver, repletos da sensação bem real de que o impossível podia concretizar-se.

Mesmo com a subsequente proibição do Solidariedade, aquelas conquistas não foram revertidas. O historiador, ensaísta e prisioneiro de consciência polaco Adam Michnik descreveu na revista New York Review of Books a energia excecional com que se sentiu após ser libertado da prisão: “Aquilo que vi depois da minha libertação excedia não apenas as minhas expetativas mas até mesmo os meus sonhos”.

Aquela energia produziu resultados. Apenas uns anos mais tarde, o Solidariedade foi legalizado de novo. Na esteira de mais alguns acontecimentos extraordinários, a Polónia teve um primeiro-ministro eleito em agosto de 1989. E isto aconteceu três meses antes da queda do Muro.

Todos estes acontecimentos podem agora parecer-nos óbvios, uma sucessão natural de acontecimentos, que se deram em paralelo ao colapso do regime de apartheid na África do Sul (Nelson Mandela foi libertado em janeiro de 1990). Mas tudo isto aconteceu porque as pessoas exigiram direitos que, na altura, pareciam inimagináveis até que foram conquistados.

Para os ativistas e as organizações de direitos humanos no mundo inteiro, foi natural agir em solidariedade com as reivindicações daqueles que tinham sido presos tanto no bloco soviético como pelo apartheid sul-africano. Mas na altura, muitos políticos ocidentais entendiam que as exigências por direitos fundamentais eram “irrealistas”, até mesmo contra produtivas.

Ainda hoje, ouvimos aquela narrativa: que é melhor aceitar do que desafiar. Este discurso estava errado naquela altura, e continua errado agora.

A solidariedade global é tão importante hoje como antes. Em 1988, ainda era impensável que a Amnistia Internacional existisse na Polónia, ou em qualquer outra parte da União Soviética. Agora, porém, a secção polaca da organização de direitos humanos é a força motora que levou à criação da campanha global e anual Maratona de Cartas, que centra esforços em indivíduos presos e exige o respeito pelos direitos fundamentais em todo o mundo. Outras secções da Amnistia Internacional são muito ativas por toda a região do ex-bloco soviético, onde as organizações de direitos humanos foram em tempos banidas.

As conquistas de ativistas corajosos, e os acontecimentos que levaram à queda do Muro de Berlim em 1989, recordam-nos uma verdade óbvia resumida pelo poeta inglês John Donne há mais de 400 anos: “Nenhum homem é uma ilha”.

 

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