Metodologia
Esta investigação baseia-se na consulta de dados e relatórios disponíveis e na recolha de entrevistas a rightholders, profissionais de saúde, organizações não-governamentais (ONG) e outros especialistas com vista a identificar violações do direito ao aborto em Portugal. Este relatório descreve e analisa dados, práticas e legislação em vigor em Portugal, à luz do direito internacional, de normas e princípios internacionais sobre o aborto e os direitos humanos.
Nesta investigação foi utilizada uma metodologia mista, combinando estudos de casos individuais, entrevistas com várias organizações e peritos, análise jurídica, trabalho de campo e investigação documental, bem como a recolha de dados quantitativos. O objetivo é fornecer uma visão atualizada da situação relativa à IVG em diferentes regiões de Portugal e medir padrões e tendências relacionados com o aborto no país. Todas as entrevistas foram realizadas em abril e maio de 2025.
A investigação para este relatório foi realizada entre outubro de 2024 e maio de 2025, nomeadamente a recolha de documentos e a consulta das leis em vigor e outras políticas relevantes e foi conduzida com uma lente interseccional baseada no reconhecimento de que as pessoas podem sofrer múltiplas formas de discriminação no acesso à saúde e à informação, bem como a outros direitos humanos. Os seis casos individuais apresentados neste briefing foram identificados com o apoio de ONG que trabalham nesta área e as entrevistas foram realizadas pela Amnistia Internacional Portugal entre 7 de abril e 15 de abril de 2025. Os seis testemunhos incluem o caso de uma mulher que fez um aborto antes de 2007 numa clínica “clandestina”; duas mulheres residentes em Portugal mas que realizaram interrupções voluntárias da gravidez em Espanha, uma delas imigrante; o caso de uma mulher residente nos Açores que, face ao facto de não haver opção de interromper a gravidez até às dez semanas na região, decidiu avançar com a gravidez; uma mulher que alega ter sido submetida a um conjunto de abusos e más práticas num hospital público em Lisboa; e uma pessoa trans que fez dois abortos e que partilha as dificuldades de acesso aos cuidados de aborto e ginecologia para pessoas trans ou não-binárias. Todos os relatos mencionam dificuldades no acesso à IVG em Portugal e o estigma que ainda existe em torno do aborto e de forma geral sobre os direitos sexuais e reprodutivos.
As ONG selecionadas foram escolhidas para as entrevistas com base no seu trabalho específico e reconhecido nesta área, nomeadamente a Associação Escolha (entrevistada a 7 de abril de 2025), a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) (entrevistada a 7 de abril de 2025), o Observatório de Violência Obstétrica (OVO) (entrevistado a 4 de abril de 2025), a Associação Anémona (entrevistada a 17 de abril de 2025). Foram entrevistadas cinco representantes de quatro organizações.
Os mesmos critérios foram aplicados para a seleção de especialistas da área jurídica e académicos, que foram consultados pela Amnistia Internacional Portugal: Teresa Violante, investigadora universitária e constitucionalista (entrevistada a 12 de abril de 2025); e Sónia Pintassilgo, professora universitária e investigadora na área da Sociologia do Nascimento e da Maternidade e Violeta Alarcão, professora universitária e investigadora na área do Género e Sexualidade, e Determinantes Sociais da Saúde (entrevistadas a 4 de abril de 2025). No que diz respeito às duas entrevistas com profissionais de saúde, uma foi realizada a Teresa Bombas, médica especialista em ginecologia/obstetrícia no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, membro da direção da Sociedade Portuguesa de Contraceção e responsável pelo Comité de Aborto Seguro da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (entrevista a 14 de abril de 2025) e a outra a Carlos Cortes, Bastonário da Ordem dos Médicos (entrevista a 12 de maio de 2025).
Para avaliar as barreiras existentes no acesso à interrupção voluntária da gravidez em Portugal, esta investigação baseia-se também numa série de fontes, incluindo relatórios de organizações internacionais de direitos humanos como a Organização Mundial de Saúde e o Center for Reproductive Rights, bem como no trabalho da Amnistia Internacional nesta área. O relatório cita dados de relatórios governamentais nacionais, pareceres consultivos e outros documentos de instituições reconhecidas como a Direção-Geral da Saúde (Ministério da Saúde - Portugal), a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde, a Direção-Geral da Política de Justiça, a Ordem dos Médicos, o Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas. Para além destas instituições portuguesas, para esta investigação escrevemos e contactámos Ministério da Saúde de Espanha, foram enviadas cartas nos dias 10, 16 e 27 de abril de 2025; Associação de Clínicas Acreditadas para a Interrupção da Gravidez em Espanha, contactos efetuados no dia 14 de abril de 2025 e no dia 16 de abril de 2025; Clínica Castrelos (Vigo, Espanha), carta enviada no dia 11 de abril de 2025; Clínica Ginesur (Sevilha, Espanha), carta enviada no dia 11 de abril de 2025; Clínica Guadiana Los Arcos (Badajoz, Espanha), carta enviada no dia 11 de abril de 2025.
A Amnistia Internacional enviou um resumo das suas conclusões à Ministra da Saúde, ao Diretor Executivo do Serviço Nacional de Saúde, à Diretora-Geral da Saúde, ao Hospital de Santo Espírito da Ilha Terceira, ao Centro Materno Infantil do Norte e à Unidade Local de Saúde Santa Maria, E.P.E. Hospital de Santa Maria, em 29 de maio de 2025. Recebemos respostas do Hospital de Santa Maria em 29 de maio de 2025 e do Hospital de Santo Espírito da Ilha Terceira em 4 de junho de 2025, tendo refletido as suas respostas no texto, quando relevante.
I.A realidade da IVG no país
Há direitos comuns que são inalienáveis para todos: o direito à vida, à saúde e a não ser vítima de violência, discriminação e tortura ou tratamento cruel, desumano e degradante. Obrigar alguém a levar adiante uma gravidez não desejada, ou obrigá-la a recorrer a um aborto inseguro6, é uma violação dos seus direitos humanos, incluindo os direitos à privacidade e à sua autonomia reprodutiva.7
Em muitas circunstâncias, as pessoas que não têm outra opção senão recorrer a abortos inseguros também correm o risco de serem processadas e punidas, incluindo serem presas, e podem enfrentar tratamentos cruéis, desumanos e degradantes e discriminação e exclusão de cuidados de saúde pós-aborto. O acesso ao aborto é, portanto, vital para a proteção destes direitos, bem como de todos os outros direitos humanos consagrados no direito internacional, e faz parte da saúde sexual e reprodutiva de uma pessoa, que é definida como um estado de completo bem-estar físico, mental e social. 8 Para o garantir, o acesso à informação, à educação e aos serviços de saúde devem permitir a todas as pessoas tomar decisões informadas ao longo da vida sobre a sua sexualidade, o seu prazer e as questões ligadas à sua reprodução. Gozar de saúde e direitos sexuais e reprodutivos inclui, entre outras coisas, poder decidir se, quando e com quem ter filhos ou casar, e poder aceder a informação e serviços relacionados com a saúde sexual e reprodutiva, como o aborto.9
Neste sentido, as leis e políticas que afetam a vida de todas as pessoas que podem engravidar devem garantir o acesso ao aborto seguro e à plena autonomia sobre os seus corpos. As leis, políticas ou outras barreiras que restringem este acesso violam os direitos humanos das mulheres e das pessoas que podem engravidar. As pessoas que decidem fazer um aborto também enfrentam o estigma social que dificulta o exercício dos seus direitos. Aqueles que já são marginalizados são desproporcionalmente afetados por estas leis e barreiras. Entre elas contam-se pessoas com rendimentos fixos ou baixos, refugiados e migrantes, adolescentes, mulheres e raparigas lésbicas e bissexuais, pessoas transgénero e não-binárias, bem como outras minorias.
A Amnistia Internacional defende que os Estados têm a obrigação de respeitar, proteger e fazer cumprir os direitos relacionados com a saúde sexual e reprodutiva. Isto inclui o direito de controlar e tomar decisões informadas e responsáveis relacionadas com a sexualidade, livres de coerção, discriminação e violência.10 Para cumprir estas obrigações, os Estados devem revogar ou eliminar quaisquer leis, políticas ou práticas que criminalizem, obstruam ou prejudiquem o acesso a instalações, serviços, bens e informações de saúde sexual e reprodutiva para indivíduos ou grupos.11,12 Devem também garantir o acesso ao aborto.13
Uma lei que atingiu a maioridade
Em Portugal, as interrupções da gravidez apenas podem ser realizadas em estabelecimentos oficiais e oficialmente reconhecidos pelo Ministério da Saúde. Em maio de 2025, existiam 44 hospitais públicos e uma clínica privada nesta lista (ou seja, 45 unidades de saúde no total).14 A informação está disponível no site da Direção-Geral da Saúde (DGS), numa secção dedicada ao aborto, organizada em formato de perguntas e respostas sobre o que é a IVG, o que fazer e onde ir, a legislação em vigor, os passos e condições para pedir este procedimento e os seus possíveis efeitos secundários.
De acordo com a lei portuguesa, uma grávida que decida interromper a gravidez pode escolher15 qualquer um destes estabelecimentos oficiais para efetuar uma IVG, mas o procedimento deve ser realizado de acordo com as condições estabelecidas no artigo 142.º do Código Penal, caso contrário a realização de um aborto pode ser considerada um crime.16 Estas circunstâncias incluem a garantia de que o procedimento é efetuado num estabelecimento oficial reconhecido para a realização de IVG; que um médico, que não o que realiza a IVG, atesta por escrito que a gravidez a interromper não excede as 10 semanas; e que entre a primeira consulta, a informação prestada à grávida e a realização da IVG há um período de reflexão obrigatório não inferior a três dias.17 18
De igual modo, a legislação prevê um conjunto de medidas a adotar pelas unidades de saúde para garantir, entre outros aspetos, que a IVG se realiza dentro do prazo legal, que não haja um período de espera superior a cinco dias entre o pedido inicial de marcação e a primeira consulta e que seja fornecida toda a informação relevante para que a grávida possa tomar uma decisão livre, informada e responsável.19
Fonte: IGAS
Em 2023, na sequência de várias notícias nos meios de comunicação social que denunciavam problemas no acesso e no tratamento de pessoas grávidas que optavam por abortar até às 10 semanas em várias regiões do país, o então Ministro da Saúde decidiu ordenar uma inspeção aos estabelecimentos de saúde do país para avaliar a situação..
Em dezembro de 2024, a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) partilhou os resultados destas inspeções com a Amnistia Internacional. Dos 44 estabelecimentos públicos oficiais e reconhecidos para a realização de uma IVG, 38 foram inspecionados, todos localizados em Portugal Continental. Os seis hospitais que não foram inspecionados foram: Portimão (região do Algarve - sul de Portugal); Chaves (região de Vila Real - nordeste de Portugal); Horta, Ilha Terceira e Ponta Delgada (ou seja, todos os hospitais da região dos Açores que estão na lista oficial para a realização deste procedimento); e Funchal (também o único hospital que presta este serviço na região da Madeira).
Dos 38 hospitais inspecionados, 27 indicaram que realizam todos os procedimentos relacionados com a interrupção da gravidez, incluindo a IVG até às dez semanas de gestação. Sete só efetuam abortos em situações de perigo de vida ou de lesões graves para a pessoa grávida, casos de malformações ou quando a gravidez resulta de um crime contra a liberdade e autodeterminação sexual. Quatro hospitais, apesar de constarem na lista de estabelecimentos oficiais para a realização de IVG da Direção-Geral de Saúde, não efetuam qualquer procedimento relacionado com o aborto. A existência de pessoal médico que se recusa a efetuar o procedimento por motivos de consciência é a razão invocada por dez dos 11 hospitais que não realizaram a IVG até às 10 semanas.
No que respeita à primeira consulta de IVG, 10 hospitais encaminham os doentes para um centro de saúde ou outros estabelecimentos oficiais, enquanto 28 realizam a primeira consulta. No entanto, entre 2020 e 2022, destes 28, seis ultrapassaram o prazo de cinco dias estabelecido por lei para a primeira consulta e dez não dispõem de informação sobre os tempos médios de espera, o que impossibilita avaliar se estes cumprem ou não os prazos legais e o levantamento das respetivas responsabilidades no caso de haver incumprimento.
Mudanças desde que Portugal disse "SIM" no referendo
Em Portugal, a interrupção voluntária da gravidez até às 10 semanas foi despenalizada na sequência de um referendo nacional realizado em 2007, que resultou na publicação da Lei n.º 16/2007, que regulamenta a exclusão de ilicitude para a interrupção de uma gravidez. Anteriormente, o aborto só era legal em casos específicos, como perigo para a vida da pessoa grávida, danos graves e duradouros para a sua saúde, malformação fetal ou se a gravidez resultasse de um crime contra a liberdade e autodeterminação sexual. Em fevereiro de 2016, foi revogado o pagamento de taxas moderadoras para a realização de uma IVG,20 depois de esta medida ter sido introduzida durante apenas alguns meses pelo então governo (entre 7 de setembro de 2015 e 29 de fevereiro de 2016), o que significa que as interrupções da gravidez realizadas no ou após referenciação do Serviço Nacional de Saúde são gratuitas.21
Evolução da IVG no país de 2014 a 2023
Fonte:Relatório de Análise dos Registos de Interrupção da Gravidez em 2023, Direção-Geral da Saúde, Ministério da Saúde, publicado em dezembro de 2024.
Segundo os relatórios da Direção-Geral da Saúde sobre interrupções da gravidez em Portugal, a tendência do número de procedimentos feitos no país tem sido descendente desde 2007, um registo que durou doze anos. Em 2019 registou-se uma ligeira subida, que voltou a cair em 2020 e 2021, durante a pandemia. Em 2022 e 2023, o número de interrupções da gravidez realizadas cresceu.
A interrupção da gravidez por opção da pessoa grávida até às 10 semanas continua a ser o principal motivo para a realização deste procedimento, em 2023, representou 96,7% dos casos.22 Em termos quantitativos, em 2021 registaram-se 13 782 IVG, em 2022 foram 16 014, um aumento de 16,2%. Em 2023 o número também aumentou para 16 559, uma subida de cerca de 3,4% em relação ao ano anterior. Comparativamente à última década, os números atuais são semelhantes aos registados em 2014.23
A importância de não esquecer o passado
Embora esta investigação não se debruce sobre o período anterior a 2007, é inegável que o país deu um passo gigantesco na garantia dos direitos e da segurança das pessoas grávidas que optam por interromper a gravidez. Na década de 1970, estima-se que entre 100 000 e 200 000 abortos clandestinos eram realizados todos os anos, dos quais 2% resultavam em morte. O aborto inseguro era a terceira principal causa de morte entre as mulheres em Portugal.24
Em 1984 houve a primeira grande alteração legislativa,25 que permitiu a IVG em casos de perigo para a vida da mulher, de danos graves e duradouros para a saúde física e mental da mulher, ou em casos de malformação fetal ou quando a gravidez resultasse de um crime contra a liberdade e autodeterminação sexual. Em 1997,26 foi alargado o prazo de interrupção da gravidez em caso de malformação fetal e de crime contra a liberdade sexual e a autodeterminação, até às primeiras 24 semanas de gravidez e 16 semanas de gravidez, respetivamente. Em 2002, de acordo com os dados da Direção-Geral de Saúde, mais de 11 000 mulheres deram entrada em hospitais devido a complicações na sequência de abortos inseguros (realizados fora do quadro legal permitido na altura e fora do sistema médico). Dois anos depois, um navio da "Women on Waves", uma organização que tem como objetivo promover o aborto seguro em países onde este é ilegal, foi impedido de entrar em águas nacionais. 27 Os últimos dados conhecidos antes do referendo datam de 2005 e estimam que todos os anos seriam efetuados 17.000 abortos clandestinos em Portugal.28
Navio Women on Waves, 2024
“Sempre ouvi da minha mãe aquela conversa, que ela também ouviu das minhas avós, do ‘tu não me apareças aqui grávida’. Por isso, na altura, optei por fazer [uma IVG] sem ela saber.” Sara, 47 anos 29
Não queria acreditar quando abriu a porta e viu mais de 50 mulheres metidas numa sala de espera improvisada num rés-do-chão na zona de Benfica, em Lisboa. Sara (nome fictício) relembra como era clínica clandestina onde, aos 19 anos, por indicação de uma "amiga que já tinha feito [um aborto]", procurou ajuda para interromper a gravidez: "Era literalmente uma loja com uma porta de entrada que dava para a rua, que só abria por dentro, e era conhecida por ser uma das melhores, pelo menos foi essa a referência que a minha amiga me deu". Foi a saída que Sara arranjou para "os dois risquinhos" que viu teimosamente aparecer nos dois testes de gravidez que tinha comprado numa farmácia. Apesar do "aspeto limpo e de ter muita gente", sentiu medo e impotência por “largar o corpo" nas mãos de estranhos, sem saber o que iria acontecer. Mas a intervenção cirúrgica correu bem. "Não foi tipo talho como já ouvi dizer de outras mulheres. Sei que tive sorte, mas na altura foi caro". Pagou mais do que um salário mínimo mensal na altura, cerca de 65 contos de reis, o que rondaria atualmente os 325 euros.
O caso aconteceu em 1997, uma década antes de o país ter dito "sim" à despenalização da IVG até às 10 semanas e muitos anos antes de uma conversa a caminho de um almoço de família em que Sara partilhou finalmente com os pais que tinha feito um aborto. Várias mulheres da família tinham passado pelo mesmo, inclusive a mãe. Todas em silêncio. "Ela disse-me que já suspeitava que eu tinha feito um aborto... O facto de eu entender que a minha mãe se apercebeu de qualquer coisa e não me ter dito nada é revelador do estigma que existe e do obscurantismo à volta deste assunto." Ao recordar a evolução da IVG em Portugal, ainda vê um longo caminho por percorrer, "muita coisa para se falar, para se debater". E assume que é isso que espera. "As mulheres têm de sair um bocadinho dos seus casulos e começar a lutar por direitos que são nossos, não é?", lança.
Falta de dados e de informação
O direito à igualdade e à não discriminação 30 juntamente com os direitos à saúde31, a não ser vítima de tortura e outros maus-tratos32, à privacidade33 e ao acesso à informação, exigem que os Estados tenham em conta as necessidades de saúde específicas das pessoas que podem engravidar e tomem medidas para garantir que não lhes sejam negados os serviços médicos e a informação de que necessitam.34 Embora o direito à informação não seja explicitamente mencionado no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (ratificado por Portugal em 1978) e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, os seus princípios estão incorporados em vários outros direitos, como o direito à privacidade; o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; e o direito à liberdade de expressão.
Na legislação portuguesa e no âmbito da IVG, é a Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de junho, que define as medidas a adotar nos estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos que realizem este procedimento médico, de acordo com o disposto no artigo 142º do Código Penal. Os primeiros artigos da Portaria n.º 741-A/2007 referem que a pessoa grávida pode "escolher livremente o estabelecimento de saúde oficial onde pretende efetuar a interrupção da gravidez, dentro dos condicionalismos da rede de referenciação aplicável" (artigo 3.º, n.º 1) e que o "consentimento livre e esclarecido" para a IVG deve ser dado pela pessoa grávida "por escrito" (artigo 4.º). O artigo 16.º da mesma Portaria prevê ainda que "deve ser fornecida à grávida informação relevante que lhe permita tomar uma decisão livre, informada e responsável". Especificamente, que a pessoa grávida deve ser informada, de preferência por escrito, sobre "as possíveis consequências para a sua saúde física e mental"; sobre "a existência de um período de reflexão obrigatório"; e sobre "a disponibilidade de apoio psicológico e de serviços sociais durante o período de reflexão".35
No entanto, nas várias entrevistas que a Amnistia Internacional - Portugal realizou com pessoas que foram submetidas a IVG, bem como com organizações e peritos, há um elemento comum em todas as conversas: a falta de informação disponível. Nos relatos dos casos individuais há ainda queixas de aconselhamento enviesado ou insuficiente nomeadamente sobre os métodos de interrupção disponíveis e os possíveis efeitos ou consequências para a saúde física e psíquica da pessoa grávida.
Para Sónia Pintassilgo36, professora e investigadora do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa (CIES-ISCTE), a dificuldade de acesso à informação afeta dois níveis distintos: "a procura de informação por parte das grávidas que pretendem fazer uma IVG e a existência de dados desagregados que permitam cruzar parâmetros, nomeadamente perceber o impacto das barreiras práticas ou organizacionais no acesso a este procedimento médico".
A mesma preocupação é levantada num estudo comparativo de 2018 de seis Estados-Membros da UE pelo Parlamento Europeu, que concluiu que um dos desafios identificados em Portugal foi "o facto de ser particularmente difícil aceder a informações relevantes, ou de as informações disponíveis não serem específicas por idade ou adaptadas a grupos vulneráveis".37
As dificuldades de acesso a informação atualizada e rigorosa para quem opta por abortar levaram Patrícia Cardoso38 a criar a associação Escolha, em maio de 2024: "Há muita ignorância em relação ao tema, porque nós não somos educadas para perceber os nossos direitos. Eu nunca tinha lido a lei até estar grávida, e as mulheres não sabem o que fazer", explica. Patrícia, que em 2020, em plena pandemia, enfrentou vários obstáculos para interromper a gravidez, percebeu que havia um enorme vazio em torno do assunto desde que a lei foi aprovada em 2007. "A falta de conhecimento das mulheres sobre as leis de saúde atinge todas as faixas etárias e todos os níveis de rendimento. Esta conversa é importante", diz, e acrescenta que durante muito tempo não se estava “a dar voz a esta questão e ninguém estava a falar sobre o que estava [verdadeiramente] a acontecer."
II. Na rota do aborto Portugal-Espanha
"Há muitas mulheres que passam por isto caladas e sozinhas, com medo do sistema, para além de todas as questões éticas e religiosas que têm de enfrentar. É um assunto delicado, envolve muitas camadas, e a sociedade resolve não dar atenção, como se a vida das mulheres fosse menos importante."
Natália, 29 anos39
A viver em Portugal há pouco mais de dois anos e meio, Natália (nome fictício) nunca imaginou o calvário que iria enfrentar quando tomou a difícil decisão de interromper a gravidez. Imigrante brasileira, mãe de uma criança pequena e sem condições económicas para criar outro filho, começou por tentar marcar a primeira consulta no centro de saúde local, mas não conseguiu.
"De seguida, liguei para o hospital de São João [no Porto] e não tinham vagas. Tentei depois o CMIN [Centro Materno Infantil do Norte] e só tinham marcação para o final de abril", quase um mês depois. Pelas suas contas, a gravidez já poderia ter algumas semanas e esperar quase um mês para ter a primeira consulta teria sido um risco.
"Igual uma mulher que está prestes a parir precisa de assistência, uma interrupção [da gravidez] é algo emergencial, porque se a mulher escolhe não vivenciar aquilo, passar mais uma ou duas semanas esperando por conta do sistema é um trauma, é muito pesado", explica. Desesperada e à procura de uma saída, pediu apoio online em fóruns e grupos de mulheres brasileiras residentes no país, que a aconselharam a simular uma dor e a ir às urgências, com o objetivo de tentar fazer uma ecografia de datação. E ela assim fez. Após uma tentativa falhada, teve mais sorte passados alguns dias.
"A pessoa que me atendeu nesse dia fez uma ficha com os meus dados e colocou-me para fazer nesse mesmo dia uma consulta para saber o número de semanas [da gravidez]."
Ao ouvir o resultado da ecografia, Natália ficou em choque: 13 semanas e quatro dias. Conta que, a partir daí, a forma como a trataram tornou-se hostil, assim como as respostas que terão sido dadas pela médica: "Tem duas opções: ou segue com a gravidez e aceita que tem de ser assim, ou aqui em Portugal há famílias que adotam crianças".
"Juro que, naquele momento, o meu mundo caiu, sabe? Porque primeiro, as duas opções que ela me deu, nenhuma delas eu conseguiria fazer. Não poderia viver com elas. E não se fala isso a uma mulher que está num momento desse."
Entre as mulheres a quem pediu ajuda, viu então surgir uma luz ao fundo do túnel: Espanha. Assim que conseguiu os quase 700 euros necessários para pagar a IVG, dirigiu-se a Vigo, na região espanhola da Galiza.
"Fui a correr para lá e cheguei quase no final do mês, a 30 de abril. Fui na sorte mesmo, quase como se fosse o meu último suspiro", explica. Isto porque, quando ligou para a clínica terá sido avisada que, caso tivesse ultrapassado o prazo legal de 14 semanas para abortos por opção da pessoa grávida em Espanha, o procedimento não seria possível. Ao realizar os exames para a datação da gravidez, voltou a sentir a mesma raiva do início do mês no CMIN.
Estava de treze semanas e três dias. "Fui descartada [da possibilidade de fazer o aborto em Portugal] devido a um erro. A médica espanhola explicou-me que as ecografias transvaginais tendem a dar uma idade gestacional mais avançada porque é um exame intrauterino. E por isso o que deveriam ter feito no Porto era outra ecografia abdominal para verificar, tal como fiz em Vigo".
Dentro do prazo legal, foi submetida a uma interrupção cirúrgica e, passadas algumas horas, estava a caminho de casa. "Podia ter sido muito mais fácil se tivesse sido feito aqui [em Portugal], porque é aqui que eu vivo. Foi muito difícil conseguir apoio, conseguir o dinheiro, porque não tenho nenhuma rede de apoio aqui. Os meus filhos ficaram com amigos. Foi tudo... enfim, podia ter sido diferente", conclui.
Um dos limites gestacionais mais curtos da Europa
Portugal, juntamente com a Croácia, o Montenegro, a Sérvia, a Bósnia-Herzegovina, a Eslovénia e a Turquia, tem atualmente o limite mais curto da Europa para a realização de uma interrupção voluntária da gravidez: 10 semanas. A maioria dos países permite este tipo de interrupção até às 12 semanas, como é o caso da Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Alemanha, Eslováquia, Estónia, Finlândia, Grécia, Hungria, Itália,Irlanda, Letónia, Lituânia, Luxemburgo, Irlanda do Norte, Noruega, República Checa, São Marino e Suíça. A Espanha, a França e a Roménia têm um limite de até 14 semanas.
Entre os países que permitem a IVG até um prazo mais longo, no topo estão os Países Baixos com 24 semanas, seguidos da Islândia, com 22 semanas e da Suécia, Dinamarca e Noruega, com 18 semanas de gestação 40 Parte do Reino Unido (Inglaterra, Escócia e País de Gales) não prevê a interrupção da gravidez por opção da pessoa grávida, mas antes por motivos sociais até às 24 semanas.41
Limites Gestacionais na Europa* e parte da Europa**
Fonte: Vários/Amnistia Internacional
A política da Amnistia Internacional sobre o aborto baseia-se no reconhecimento, ao abrigo do direito e das normas internacionais, de que a capacidade de controlar a própria reprodução e de decidir se e quando ter filhos é essencial para a plena realização dos direitos humanos de todas as pessoas que podem engravidar. Isto significa que a capacidade de tomar decisões sobre o próprio corpo, a sexualidade e a reprodução está no centro da justiça de género, económica e social. 42
A Amnistia Internacional destaca ainda que “ao longo dos anos, a investigação em matéria de saúde pública e das ciências sociais tem demonstrado que os limites gestacionais podem constituir uma barreira arbitrária e discriminatória no acesso aos serviços, o que tem um impacto desproporcionado nos direitos humanos das mulheres, das raparigas e das pessoas que podem engravidar".43 O impacto negativo dos limites gestacionais no acesso a cuidados de saúde de qualidade foi reconhecido pela Organização Mundial de Saúde (OMS). 44 Os limites gestacionais podem negar o acesso aos serviços às pessoas que precisam de abortar, afetando desproporcionalmente as pessoas de origens mais pobres e/ou marginalizadas. Os profissionais de saúde também podem ser arbitrariamente impedidos de considerar todas as opções médicas e clínicas tendo em vista o melhor interesse da sua paciente e há uma tendência para aplicar excessivamente o requisito legal relativo aos limites gestacionais devido ao efeito inibidor que podem ter. No seu “Guia sobre Cuidados para o Aborto”45, a Organização Mundial de Saúde salienta que os limites gestacionais não são baseados em evidências científicas e que uma gravidez pode ser interrompida com segurança independentemente da idade gestacional. A OMS sublinha também que "os limites gestacionais estão associados a taxas mais elevadas de mortalidade materna e a maus resultados em termos de saúde" e recorda aos Estados que "a legislação internacional em matéria de direitos humanos exige que os Estados reformem as leis para evitar o aborto inseguro e reduzir a mortalidade e a morbilidade maternas".46 Carla Pita Santos47, do Observatório de Violência Obstétrica, diz ser contra o limite de idade gestacional porque, justifica, "de acordo com a literatura, quando há total liberdade para interromper a gravidez, a mulher tenta fazê-lo o mais rapidamente possível".
Distribuição da idade gestacional da Interrupção Voluntária da Gravidez em 2023
Fonte: DGS
Embora em 202348, a idade gestacional média em que as IVG foram realizadas em Portugal tenha sido de 7,4 semanas e em 77% dos casos os procedimentos tenham ocorrido quando a gravidez estava abaixo das oito semanas, o limite gestacional de 10 semanas impossibilita que muitas pessoas em Portugal tenham acesso aos cuidados de que necessitam dentro do prazo legal. Para resolver este problema, em janeiro de 2025, foram debatidos quatro projetos de lei na Assembleia da República que previam o alargamento do período legal da IVG das atuais 10 semanas para as 12 semanas (Partido Socialista e Partido Comunista Português) ou para as 14 semanas (Bloco de Esquerda e Livre).
Meses antes, em outubro de 2024, uma destas propostas de alargamento do prazo de 10 para 12 semanas recebeu parecer favorável do Colégio de Especialidade de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos (OM), que alegou que este alargamento "não compromete a segurança clínica do procedimento em termos de taxa de sucesso e de morbimortalidade associadas" e que esta alteração na lei poderia ter um "impacto favorável na saúde global e reprodutiva das mulheres em idade fértil". 49 No entanto, o Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médica apresentou um parecer contrário e a OM decidiu por unanimidade contra a extensão do prazo.50 Em entrevista à Amnistia Internacional, Carlos Cortes , Ba51 stonário da Ordem dos Médicos, admite que esta posição "pode ser vista como retrógrada e desfasada dos tempos", mas explica que "se baseia em considerações éticas à luz da limitada evidência científica disponível sobre o conceito de vida". "Trata-se de um equilíbrio entre o lado técnico e o lado moral", argumenta.
Segundo a Organização Mundial da Saúde, os estudos mostram que, nos casos em que as mulheres solicitaram um aborto e este lhes foi negado devido à idade gestacional, isso poderia resultar numa gravidez indesejada,o que pode ser incompatível com a obrigação prevista no direito internacional em matéria de direitos humanos que exige que o aborto seja disponibilizado quando continuar com a gravidez poder causar dor ou sofrimento substancial à pessoa grávida, independentemente da viabilidade da gravidez.52
Ir a Espanha para fazer um aborto não é coisa do passado
Em abril de 2025, uma investigação de um coletivo de jornalistas53 de vários países calculou que todos os anos mais de 5.000 mulheres em toda a Europa atravessam as fronteiras dos seus países para fazer um aborto, entre elas grávidas residentes em Portugal.
A Amnistia Internacional Portugal solicitou informações ao Ministério da Saúde de Espanha sobre os abortos realizados entre 2019 e 2023. De acordo com a resposta54 enviada à Amnistia Internacional Portugal, durante estes cinco anos, 2.525 pessoas residentes em Portugal tiveram a sua gravidez interrompida em Espanha. Nos últimos dois anos deste período, das 1327 grávidas que abortaram do outro lado da fronteira, 613 abortaram até às 14 semanas (limite gestacional permitido em Espanha). Se olharmos para as semanas em que o procedimento foi efetuado, em dois terços dos casos a interrupção gravidez ocorreu após as 10 semanas, o limite legal para uma IVG em Portugal.
Nos outros três anos, 2019, 2020 e 2021, os dados não são claros, não sendo possível afirmar com certeza se o número de interrupções de gravidez até às 14 semanas foi a pedido (IVG) ou por outros motivos. No entanto, os registos de 2019 e 2020 mostram que em ambos os anos, em média, 70% das interrupções de gravidez foram realizadas após as 10 semanas.
Espanha: Nº de Interrupções da Gravidez efectuadas por pessoas residentes em Portugal entre (2019 a 2023)
Fonte: Ministério da Saúde de Espanha
Espanha: Distribuição da idade gestacional da realização da Interrupção da Gravidez por residentes em
Fonte: Ministério da Saúde de Espanha
III.Acesso desigual em todo o território
"Demorei um bocado a perceber que não havia um único médico nas nove ilhas dos Açores que fizesse uma IVG. Passado algum tempo, só pensava: como é que é possível não haver outra opção?" Margarida, 32 anos39
Margarida (nome fictício) vive na Terceira, uma ilha cujo número de habitantes é apenas o suficiente para encher a Luz. "É como o estádio do Benfica, 62 ou 64 mil pessoas, se não estou em erro", conta a sorrir.
A boa disposição desta açoriana contrasta com a reação bem diferente daquela que teve quando, no verão de 2023, recebeu a notícia de que estava grávida: "foi um choque, nunca tinha pensado nisso". Sobretudo depois de um primeiro diagnóstico no hospital ter apontado que Margarida teria síndrome do cólon irritável. Como as dores continuavam, procurou a sua médica de família, que a mandou fazer análises. Os resultados dissiparam-lhe as dúvidas.
"O meu primeiro pensamento foi fazer uma IVG por causa dos efeitos secundários da medicação forte que tomo para uma doença crónica e o medo de que pudesse causar malformações", conta. Mas quando voltou ao hospital com o namorado para pedir informações sobre a interrupção da gravidez, teve uma nova surpresa. "Disseram-nos que cá não se faz por causa dos ‘objetores de consciência’, que seria reencaminhada para fora, para ir ao continente e que o hospital pagaria as viagens e a estadia”.
Durante a ecografia para determinar a idade gestacional, a assistente técnica também terá sugerido, em tom de aviso, para "não contar à médica porque estava a fazer o exame de datação". Margarida sentiu-se encurralada perante a informação de que todos os médicos da ilha seriam objetores de consciência.
A ideia de ter de enfrentar vários obstáculos, incluindo ter de "viajar para fora da ilha" e "talvez ficar lá mais tempo se houvesse complicações", pesou.
"Sou trabalhadora independente, todos os dias em que não trabalho não recebo", diz. Como estava numa relação estável, acabou por decidir avançar com a gravidez. Não se arrepende, mas queixa-se a falta de recursos e o tratamento a que são sujeitas as pessoas que querem fazer uma IVG na ilha Terceira, nos Açores. "Nem bom dia, nem boa tarde, não há explicações, não há nada. Dão-te um papel para preencher e pronto podes ir embora. Estás por tua conta", lamenta. A ausência de alternativas leva a que as pessoas não se queixem por medo de represálias. "Se quiser uma segunda opinião, tenho de ir ao hospital privado, o problema é que nos hospitais privados trabalham os mesmos médicos que no público... se há coisa que não existe aqui nos Açores são segredos", remata.
Voar 1500 quilómetros para fazer um aborto
De acordo com o último relatório da DGS56 para 2023, das 158 pessoas nos Açores que realizaram IVG, cerca de 9% fizeram-no na sua região de residência. Por outras palavras, no ano passado realizaram-se apenas 14 interrupções da gravidez até às 10 semanas na região dos Açores, todos no Hospital da Horta, na ilha do Faial. Isto significa que 144 pessoas tiveram de se deslocar ao continente para fazer uma IVG.
“No entanto, de acordo com informações recolhidas pela Amnistia Internacional Portugal, em maio de 2025, a situação tinha-se alterado para pior devido ao facto de terem deixado de existir no Hospital da Horta e no Hospital da Terceira, médicos que realizem estes procedimentos.”57
A situação na região do Alentejo também era grave em 2023. Em 696 interrupções da gravidez solicitadas por pessoas residentes na região, apenas 190 (27%) foram efetuadas em hospitais da mesma região.58
Nº de Interrupções de Gravidez por Região de Saúde de residência da pessoa grávida VS Região de Saúde onde interrupção da Gravidez foi realizada(2023)
Fonte: DGS
Por outro lado, a região do Tejo e Lisboa registou a maior diferença positiva (+456) entre o número de pedidos efetuados por residentes na região (9206 pedidos) e as IVG realizadas na região (9662), o que implica que pessoas de outras zonas também efetuaram interrupções por opção até às 10 semanas aqui e pode explicar, pelo menos em parte, as deslocações feitas de outras regiões do país para realizar uma IVG.
Para entender estes números, é útil analisar a distribuição das interrupções voluntárias da gravidez entre o setor público e privado. Apesar de em 2023, a maioria (65,5%) das IVG ter continuado a ter lugar em hospitais públicos, houve uma diminuição de 3,4% em relação a 2022 e de 5,3% em relação a 2021. Por outro lado, aumentaram os encaminhamentos do setor público para o setor privado, o que está em linha com a dificuldade de garantir o acesso em todas as regiões do país.59
Em 2022, após uma visita ao país, o Comité das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres60 manifestou preocupação com a aplicação desigual da lei do aborto em todo o país e instou o governo a garantir a aplicação efetiva da lei do aborto em todas as regiões e para todas as pessoas que podem engravidar. Para Teresa Bombas61, ex-dirigente da Sociedade Portuguesa de Contraceção e especialista em Ginecologia e Obstetrícia do Hospital da Universidade de Coimbra, "o que se passa com a IVG reflete o que se passa no sistema nacional de saúde: há sítios onde os recursos estão a ser atribuídos e outros onde não estão". Para garantir cuidados de saúde essenciais, "não podemos dar prioridade a um ou a outro", sendo necessário "dar resposta nas várias áreas", defende.
"Não podem ser os doentes a ter de bater a várias portas até encontrarem uma alternativa." (Teresa Bombas, médica especialista)
1/3 das IVG realizadas no setor privado
Em 2023, de acordo com dados do Ministério da Saúde, mais de um terço (34,1%) de todas as IVG foram realizadas numa única unidade de saúde privada62, a Clínica dos Arcos, em Lisboa. Nesse ano, havia mais um estabelecimento privado oficial a efetuar este procedimento médico, o Hospital SAMS, também localizado em Lisboa, que realizou 65 IVG, cerca de 0,39%. Em 18,5% dos casos, a procura pelo setor privado foi realizada por iniciativa da pessoa grávida, mas o número de referenciações de hospitais públicos em 2023 rondou os 43%, um aumento de quase 13% face ao ano anterior. Carla Pita Santos, do Observatório de Violência Obstétrica, critica esta situação, apontando os custos acrescidos para o Estado, "que gasta atualmente uma grande fatia do seu orçamento com as interrupções voluntárias de gravidez na Clínica dos Arcos, onde a esmagadora maioria das interrupções são cirúrgicas e não medicamentosas". Teresa Bombas, por seu lado, desvaloriza a questão entre o público e o privado: "O que eu acho mal é que não se possa garantir uma resposta e que não se esteja a fazer nada". A médica descreve a realidade em muitas zonas do país como "devastadora". "Eu trabalho em Coimbra e vejo mulheres que vêm do interior do país, do Norte. Não faz sentido. Devia haver uma resposta dentro da sua área de residência", reitera. Em 2023, a maioria dos abortos nos hospitais públicos foi efetuada com recurso a medicamentos (98,7%), enquanto no sector privado a percentagem de abortos com recurso a medicamentos foi de 18,4%. Os abortos com recurso a medicamentos (no público e no privado) representam 71% do total de abortos realizados em Portugal. De acordo com a legislação (Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de junho, artigo 16º 3(b)) o médico ou outro profissional de saúde qualificado deve prestar à pessoa grávida todas as informações e esclarecimentos necessários, nomeadamente sobre os métodos adequados ao caso concreto, de forma a assegurar uma decisão livre, informada e responsável.
Estes dados coincidem com dois dos relatos dos casos individuais entrevistados pela Amnistia Internacional – Portugal. Um dos testemunhos alega que no hospital público em que realizou a IVG não foi dada informação ou opção de escolha entre os diferentes métodos, tendo efetuado o procedimento por via medicamentosa. Em sentido contrário, outro dos casos refere que, das duas vezes em que realizou IVG no setor privado, sentiu muita pressão em optar pela via cirúrgica. A Amnistia Internacional está preocupada com a possibilidade de que não estejam a ser dadas opções em relação aos métodos disponíveis para a interrupção da gravidez até às 10 semanas tanto no setor público como no privado, e reitera a importância de garantir que esta escolha existe e que as pessoas grávidas recebem toda a informação de que necessitam para tomar uma decisão livre, informada e consciente.
Na mesma linha, a OMS recomenda que as mulheres e as pessoas grávidas possam optar entre os métodos de aborto (cirúrgicos e medicamentoso) que respondem às suas necessidades específicas. "Se houver uma escolha de métodos de aborto, os prestadores de cuidados de saúde devem ser formados para dar às mulheres informações claras sobre quais os métodos adequados, com base na datação da gravidez e do estado clínico da mulher, bem como nos potenciais fatores de risco e nas vantagens e desvantagens de cada método disponível. É mais provável que as mulheres considerem um método de aborto adequado se elas próprias o tiverem escolhido. A escolha de métodos é considerada extremamente importante pela maioria das mulheres que se submetem a um aborto."63
Proporção de Nº de Interrupção Voluntárita da Gravidez por tipo de unidade de saúde (2023)
Fonte: DGS
Portugal em 17º lugar na Europa
"Tenho a certeza de que este processo foi muito mais doloroso porque me fizeram esperar até estar praticamente com dez semanas [de gravidez]. Já tinha sido mãe, as dores [da IVG] eram muito semelhantes às do parto e eu estava em casa completamente desamparada. Apesar de ter perguntado, não me disseram como é que ia ser." Laura, 34 anos 64
Numa relação recente e com um filho de seis anos, Laura (nome fictício) logo percebeu que não queria levar a gravidez por diante. "A primeira coisa que fiz foi ligar para a Saúde 24 para saber a que hospital deveria ir."
De acordo com as informações que recebeu, podia escolher qualquer hospital de Lisboa e, como tinha boas referências, dirigiu-se à Maternidade Alfredo da Costa (MAC). "Disseram-me que não me podiam atender e que teria de ir ao hospital da minha área de residência, que na altura era o Hospital de Santa Maria", conta.
Seguiu para lá no mesmo dia. Mas, na secretaria, voltou a receber um "não" como resposta e foi-lhe dito que tinha de se dirigir a um centro de saúde. Como teria sido avisada na MAC de que o hospital era obrigado a marcar-lhe uma consulta, não desistiu. E, recorda, "um bocadinho contra vontade, ela [funcionária] lá continuou o processo e perguntou-me quando tinha tido a última menstruação". Apesar de ter estranhado que fosse uma técnica administrativa a lhe fazer essa pergunta, respondeu que deveria estar com quatro semanas. O diálogo que se seguiu é descrito da seguinte forma por Laura: "(Administrativa) - Se está de quatro semanas, vai ter de esperar porque eles só atendem às oito. / (Laura) – Como assim? / (Administrativa) – Porque vai ter de ouvir o coração do bebé, por isso não vale a pena marcar nada antes disso!” Já nervosa com a conversa, Laura insistiu em marcar uma consulta com o argumento de que precisava confirmar de quantas semanas estava grávida. Na semana seguinte, fez a ecografia que indicava cinco a seis semanas e, segundo narra, a médica disse-lhe que "teria de voltar dali a mais três semanas, porque até lá pode acontecer um aborto espontâneo".
A ansiedade de ter de esperar tanto tempo "para uma coisa que eu sabia que não queria dar seguimento" desgastou Laura. "Tinha imensos enjoos, estava super cansada, com muito sono, não estava bem psicologicamente e comecei a ter receio que as pessoas notassem, inclusive a barriga. Só queria despachar o que era inevitável para mim", explica. Já com quase oito semanas de gravidez, repetiu a ecografia e terá ouvido então da médica: “’ (médica)- Ele' está aqui e está bem agarradinho". "Algo que eu dispensava ouvir", desabafa.
A contar com o período reflexão obrigatório de três dias, a IVG foi finalmente marcada quase no final do primeiro trimestre de gravidez. Sem saber como reagiria ao facto de tomar a medicação em casa, Laura conta a conversa que terá tido com a enfermeira de serviço: "(Laura) - O que é que eu vou sentir? (Laura) - O que é que eu vou sentir? / (Enfermeira) - Bom, depende... / (Laura) - Vou ter dores? / (Enfermeira) - Depende, é diferente para cada mulher... / (Laura) - Mas o que é o normal? / (Enfermeira) - Já lhe disse, depende de cada caso". Perguntou ainda se conseguiria trabalhar ou se poderia pedir alguns dias de baixa. "Tem direito a um mês de baixa, mas o motivo da baixa vai descrito, quer?", terá respondido a enfermeira. Laura recusou. Era uma sexta-feira e, em teletrabalho, diz ter começado a sentido dores horríveis que duraram horas até à expulsão, semelhantes às do parto. "Fiquei muito revoltada com aquilo tudo; fiz queixa por email, mas fui ignorada.65 Lembro-me de ler testemunhos mais tarde na Internet e de pensar: isto não aconteceu só comigo. O que não entendo é porque não avançam quando a mulher já tomou a decisão?", lança a pergunta.
Uma corrida cheia de obstáculos
O aborto é um procedimento comum em todo o mundo e uma questão importante em matéria de saúde pública e de direitos humanos. De acordo com a OMS, mais de metade das gravidezes não planeadas acabam em abortos induzidos, mas estima-se que a nível global 45% dos abortos não são seguros. 66
Nos últimos 80 anos, os países europeus têm vindo a adotar leis mais progressistas e a remover barreiras no acesso ao aborto. Em 2024, a França tornou-se o primeiro país do mundo a consagrar explicitamente o aborto como uma liberdade garantida na sua Constituição.
Entre os Estados membros da União Europeia, apenas a Polónia e Malta têm ainda leis muito restritivas. No resto do continente, há ainda Andorra, onde o aborto é totalmente proibido; o Liechtenstein, onde só é permitido quando há risco de vida ou a gravidez resulta de violência sexual; e o Mónaco, que, para além das situações acima referidas, prevê também a interrupção em caso de deficiência fetal grave. Nos restantes países, apesar das diferenças, a IVG tem vindo a ser despenalizada, como aconteceu em Portugal com o referendo de 2007. No Atlas das Políticas Europeias de Aborto67, publicado em 2021, Portugal ocupava o 17.º lugar. Esta análise, realizada pelo Fórum Parlamentar Europeu para os Direitos Sexuais e Reprodutivos (FPEDSR) e pela Federação Internacional de Planeamento Familiar (FIPF), comparou e classificou 52 países e territórios europeus, em termos de legislação, acesso aos serviços, prestação e qualidade dos cuidados de saúde e da informação disponível (incluindo online).
Fonte: Center for Reproductive Rights
Fonte: Center for Reproductive Rights
Numa análise comparativa de 47 países europeus68, o Center for Reproductive Rights (CRR) identificou, em 2023, os obstáculos legislativos e processuais que ainda existem e que considera "medicamente desnecessários" em termos gerais: períodos de reflexão obrigatórios, aconselhamento obrigatório antes da realização de um aborto, criminalização em alguns casos quando o procedimento é realizado fora do âmbito da lei,69e a exigência, em alguns casos, de autorização de terceiros, entre outros.
Restrições ao aborto em 47 países na Europa
Fonte:Center for Reproductive Rights
Portugal é um dos treze países europeus onde a legislação impõe um período de reflexão obrigatório entre o pedido de interrupção da gravidez e a data em que o procedimento é efetuado.70 Para Teresa Bombas, esta barreira choca com a realidade: 'A nossa experiência é que a maioria das mulheres que vem à clínica já se decidiu e, se não o fez, tem autonomia para pedir informação e mais tempo para pensar'. A medida também vai contra a recomendação da OMS de que as leis não devem impor atrasos desnecessários, uma vez que estes podem dificultar o acesso a cuidados atempados e a preços acessíveis, restringir os direitos humanos e a tomada de decisões autónomas: "As evidências sobre saúde pública não estabelecem quaisquer benefícios dos períodos de espera obrigatórios, mostrando que tais períodos de espera atrasam o acesso ao aborto, por vezes ao ponto de restringir os métodos de aborto disponíveis. Além disso, os desafios logísticos de completar um período de espera obrigatório podem significar que algumas mulheres têm de revelar a sua gravidez a outras pessoas, apesar de a legislação internacional em matéria de direitos humanos exigir que os Estados assegurem que os serviços [de saúde sexual e reprodutiva] sejam prestados de forma a garantir a privacidade e a confidencialidade". Os dados também indicam que os períodos de espera obrigatórios podem resultar na continuação da gravidez, "especialmente entre as mulheres com menos recursos, as adolescentes, as mulheres mais jovens, as pertencentes a minorias raciais ou étnicas e as que precisam de se deslocar mais longe para fazer um aborto". Para os prestadores de cuidados de saúde, "os períodos de espera obrigatórios aumentam os custos de pessoal e as dificuldades logísticas, obrigando a visitas ou intervenções adicionais fora da prática clínica habitual".71 Para além do período de reflexão e das barreiras acima referidas, em Portugal existe outro obstáculo destacado pelo ranking FPEDSR-FIPF, que é a necessidade de consentimento ou aprovação do procedimento de aborto por mais do que um profissional médico.
Para Carla Pita Santos, do Observatório de Violência Obstétrica (OVO), "estes entraves tornam o processo muito burocrático" e por isso a OVO defende que os centros de saúde deveriam estar dotados de equipamentos para a realizar ecografias, tal como "a confirmação e datação da gravidez serem feitas por enfermeiros especialistas". Também Teresa Bombas partilha a crítica à falta de resposta: “do ponto de vista emocional, todo este circuito de procura incessante de um lugar é devastador". A OMS recomenda que a interrupção voluntária da gravidez possa ser efetuada a pedido da mulher, rapariga ou pessoa grávida, sem a autorização de qualquer outra pessoa, organismo ou instituição.72
Em Portugal, como já foi referido, o aborto está abrangido pelo artigo 142.º do Código Penal, que determina as circunstâncias em que a interrupção da gravidez não é punível. Na prática, isto significa que uma interrupção da gravidez que não cumpra estas condições pode ser criminalizada.
Fazer um aborto ainda pode ser considerado crime
De acordo com o Código Penal português , para que a interrupção voluntária da gravidez não seja punível, deve: ser efetuada "por médico ou outro profissional de saúde sob a sua orientação, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida"; as circunstâncias devem ser "certificadas em atestado médico, redigido e assinado antes da intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direção, a interrupção é efetuada", ou seja, se a interrupção for realizada a pedido da mulher, é também necessária "prova de que a gravidez não ultrapassa as 10 semanas"; e só pode ter lugar "após um período de reflexão não inferior a três dias a contar da data da primeira consulta".
Patrícia Cardoso, da Associação Escolha, considera que "há muita gente que não sabe que é crime e pensa que, por haver uma lei não é crime". Esta iliteracia jurídica é gravíssima", afirma. Teresa Bombas alerta ainda para o facto de que "se uma mulher acede a uma interrupção de gravidez de forma não legal e for parar a um serviço de saúde, pode acontecer aquilo que acontecia antes de 2007, ou seja, pode ser objeto de uma queixa-crime e isso é grave".
A Amnistia Internacional defende a descriminalização total do aborto, com vista a garantir que ninguém, incluindo pessoas grávidas, prestadores de cuidados de saúde ou outros, seja sujeito a sanções penais ou punitivas por procurar, ter procurado ou ter realizado (ou por se presumir que procurou ou realizou) um aborto, ou por ter ajudado outros a realizar ou a obter um aborto.74
De igual modo, o CRR7 alerta para o facto de "a criminalização do aborto tratar este tipo de cuidados de saúde de forma diferente de qualquer outro, o que pode causar danos significativos". Esta organização refere ainda que a criminalização pode "atrasar ou impedir o acesso a cuidados pós-aborto, intensificar o estigma em torno do aborto, aumentar as barreiras ao acesso a apoio legal e criar um efeito inibidor na prestação de informações e cuidados por parte dos profissionais de saúde". De acordo com a OMS76, evidências mostram que a criminalização não afeta a decisão de abortar nem impede as mulheres de abortar. Pelo contrário, simplesmente "limita o acesso ao aborto seguro e legal e aumenta o recurso ao aborto ilegal e inseguro". As evidências também indicam que, quando há processos judiciais, eles são desproporcionalmente movidos contra populações marginalizadas, incluindo indivíduos jovens, com baixa escolaridade, solteiros ou pobres. Em alguns países, a regulamentação criminal do aborto exige que os prestadores de cuidados de saúde denunciem as mulheres e raparigas às autoridades policiais quando estas procuram cuidados de aborto ou pós-aborto. A criminalização também contribui para uma menor disponibilidade de crimes capacitados.
Fonte: DGPJ
De acordo com dados da Direção-Geral da Política de Justiça77(DGPJ), entre abril de 2007, considerando a data de publicação da Lei n.º 16/2007, que legalizou a IVG até às 10 semanas, e 2024, foram registadas 159 denúncias por alegados “crimes de aborto”78 pelas autoridades policiais (uma média de cerca de 9 registos por ano). O ano com mais participações foi 2012 (14 registos), seguido de 2016 (14 registos) e 2020 (11 registos). Em 2024, foram registadas seis denúncias. Até 2023, 58 arguidos responderam em tribunal (1ª instância), dos quais 33 pessoas foram condenadas no final do julgamento em 1ª instância, 20 absolvidas/sem provas e em 5 casos a DGPJ aponta outros motivos para a classificação dos processos. Estes números não nos permitem saber em que circunstâncias ocorreram estas alegações, nem se os arguidos eram pessoas grávidas que procuraram, tentaram ou efetuaram uma interrupção da gravidez, profissionais de saúde ou terceiros que possam ter assistido, tentado ou efetuado estes procedimentos e em que condições.
V.Recusas médicas por motivos de consciência
"Na segunda-feira, estava em Espanha a fazer uma IVG e no dia seguinte estava no trabalho com a minha armadura vestida como se nada tivesse acontecido... é muito duro" Joana, 40 anos 79
Foi preciso pouco tempo para Joana (nome fictício) desconfiar que algo não estaria bem: "Fiz um teste de gravidez no dia antes da menstruação me estar a faltar, porque eu já estava a sentir sintomas, e deu logo positivo". Tinha acabado de sair de uma relação que tinha terminado. Embora desejasse ter filhos, sabia "que não queria ser mãe solteira" e decidiu "que o certo" era não avançar com a gravidez.
Mergulhou na Internet à procura de uma saída: "Percebi logo pelos testemunhos de outras mulheres que tinham feito [uma IVG] que não ia ser fácil, apesar de ser legal". Mesmo assim, de acordo com as informações da página da Saúde 24, podia fazer a IVG através de marcação direta no hospital de Portimão, no Algarve, o mais próximo da sua área de residência. Mas, ao contrário do que tinha lido, a resposta seca que, terá tido do outro lado, foi um banho de água fria. Disseram-me "que não podia aparecer lá [no hospital] assim, que teria de ir primeiro ao médico de família, preencher uns papéis, pedir uma ecografia e, só depois, dar início ao processo". Com a médica de família de férias, depois de ter estado de baixa médica, e sem poder marcar consulta noutro centro de saúde que não aquele onde estava inscrita, Joana confessa que se sentiu a andar às voltas. "E as pessoas que não têm médico de família?", pergunta. Lembrou-se então de telefonar a uma amiga, enfermeira no serviço de urgência, na esperança de que ela lhe pudesse explicar o que era necessário para conseguir uma consulta no hospital. Gelou com a reação da amiga, que rapidamente percebeu ser contra a IVG: "ela disse-me logo que não, que não me podia ajudar". Com as portas a fecharem-se, começou a procurar uma solução mais simples perto da fronteira e foi assim que chegou a Sevilha, em Espanha. Por 600 euros e em menos de uma hora, o procedimento cirúrgico estava feito. Na sala de operações, antes da anestesia, recorda a pergunta da médica espanhola: “- O que é que se passa em Portugal? Porque é que vieste aqui? Ainda na semana passada tivemos cá outra portuguesa".
No dia seguinte, diz ela, voltou ao trabalho. Menos de um ano após a IVG, para além dos pais, que a acompanharam a Espanha, só conseguiu partilhar o que aconteceu com mais dois familiares. A amiga enfermeira não voltou a falar com Joana. A relação que perdeu é reflexo de uma sociedade que vê como "muito julgadora" e incapaz de "de calçar os sapatos do outro". "Pensava que alguém que trabalhasse na área da saúde teria uma mente um pouco mais aberta, conseguisse ter a sua opinião pessoal e depois ser profissional, mas com esta história percebi que não é assim", conclui.
A grande muralha da consciência
A prática de profissionais de saúde de se recusarem a prestar determinados serviços de saúde – na maioria das vezes no contexto dos cuidados de saúde sexual e reprodutiva e do aborto em particular – aos quais se opõem com base nas suas opiniões morais ou religiosas, é comummente designada de "recusa de consciência" ou "objeção de consciência". 80
A Constituição da República Portuguesa, no n.º 6 do artigo 41.º, consagra o seguinte para a liberdade de consciência, de religião e de culto: "é garantido, nos termos da lei, o direito à objeção de consciência". 81
No que respeita à interrupção voluntária da gravidez, o artigo 12º da Portaria nº741-A/2007, de 21 de junho estabelece que o médico que se recuse a prestar cuidados de aborto deve manifestar essa opção "em documento assinado" a entregar "ao diretor clínico, diretor de enfermagem ou diretor clínico do estabelecimento oficial, hospitalar ou de cuidados de saúde primários, ou estabelecimento oficialmente reconhecido, consoante os casos, onde o objetor presta serviço".
No entanto, o Bastonário da Ordem dos Médicos admite ter "as maiores dúvidas de que isso seja feito adequadamente em todas as instituições de saúde". Carlos Cortes defende que deveria haver um reporte direto para a Ordem dos Médicos, capaz de salvaguardar, por um lado, "que o médico está devidamente informado sobre o que significa ser objetor de consciência" e, por outro lado, diz, "sobre as consequências que ser objetor tem na sua atividade clínica".
Na mesma linha, Teresa Violante82, constitucionalista e professora universitária, alerta para a situação atual do país, que classifica como "extremamente perigosa". "A objeção de consciência está a ser usada para as pessoas se oporem às escolhas e ao modo de vida de outras pessoas", o que, afirma, contradiz o âmbito de aplicação desta recusa. "Não é para isso que serve, mas sim para tutelar circunstâncias íntimas em que há uma violação de consciência e não para permitir que através dessa tutela se possa exercer discriminação sobre outrem", aponta. A constitucionalista cita "situações de marcação de consultas, de recusa de efetuar análises ao sangue ou de falar com mulheres". Os especialistas destacam a necessidade de investigar estes relatos que, mesmo que não possam ser classificados como recusas por motivos de consciência de serviços de aborto, estão alegadamente ligados a práticas de “objeção de consciência”.
As Nações Unidas e as instâncias regionais de direitos humanos reconheceram os efeitos nocivos da recusa de cuidados na saúde e nos direitos humanos das mulheres, das raparigas e de todas as pessoas grávidas. E estabeleceram obrigações dos Estados, no âmbito dos direitos à saúde, à privacidade e à não discriminação, para garantir que as mulheres, as raparigas e todas as pessoas grávidas têm acesso aos serviços de saúde reprodutiva a que têm direito por lei.83
A realidade e os números na prática
Em outubro de 2024 84, o Grupo de Trabalho sobre a discriminação contra as mulheres e as raparigas do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas manifestou a sua preocupação com os relatos85 em vários países de recusa individual e institucional do acesso a serviços essenciais de saúde reprodutiva, em especial aos cuidados de aborto, devido à recusas por motivos de consciência, acrescentando que "quando a objeção de consciência é utilizada de forma abusiva, constitui uma violação dos direitos fundamentais à autonomia e à liberdade de escolha nas decisões relativas à saúde reprodutiva”.
Em Portugal, as organizações e os especialistas entrevistados pela Amnistia Internacional Portugal são unânimes em defender a necessidade de o Estado encontrar soluções para que as recusas médicas por motivos de consciência em prestar cuidados de aborto por parte dos profissionais de saúde não ponham em causa o cumprimento da legislação sobre a interrupção voluntária da gravidez. Por outras palavras, o Governo deve assegurar que as recusas de realização destes procedimentos médicos não resultam em atrasos ou na negação de cuidados às pessoas grávidas que procuram os serviços de saúde para fazer um aborto legal. De acordo com a legislação nacional, "é garantido aos médicos e outros profissionais de saúde o direito à “objeção de consciência” em relação a quaisquer atos relativos à interrupção voluntária da gravidez".86 No entanto, "os profissionais de saúde que sejam "objetores de consciência" devem assegurar que as mulheres grávidas que solicitem a interrupção da gravidez são encaminhadas para os serviços competentes".87 Na ausência de estabelecimentos públicos que realizem o procedimento, conforme previsto na lei, as pessoas grávidas devem ser encaminhadas para estabelecimentos privados, sendo o Estado responsável pelo pagamento das despesas da utente, incluindo os procedimentos médicos.88
Fonte: IGAS e Ordem dos Médicos
Os dados mais recentes sobre o número de profissionais de saúde que se recusam a realizar procedimentos de cuidados de aborto por motivos de consciência em Portugal constam do Relatório sobre o Processo de Inspeção aos Estabelecimentos de Saúde Oficiais no âmbito da Interrupção da Gravidez89, conduzido pela Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) e partilhado com a Amnistia Internacional em dezembro de 2024. O documento indica que a distribuição de recusas médicas por motivos de consciência nos 38 estabelecimentos de saúde oficiais analisados é a seguinte: um total de 832 profissionais de saúde declararam ser “objetores de consciência”. Destes 832 profissionais, 533 são médicos e 299 são enfermeiros. Teresa Violante mostra-se cética em relação a estes números porque, segundo a constitucionalista, "nem todos os hospitais responderam ou seguiram o mesmo método de resposta e, por isso, dadas as discrepâncias na metodologia, estes números não são um reporte efetivo da realidade". Como já foi referido, também o Bastonário da Ordem dos Médicos (OM) considera que estes números podem não refletir a situação atual, que Carlos Cortes admite poder ser pior.
De acordo com os dados da OM, existem 1.681 médicos especialistas em ginecologia e obstetrícia inscritos nesta ordem profissional. Destes, 748 trabalham no Serviço Nacional de Saúde (SNS).
“No entanto, segundo a IGAS, em 38 dos estabelecimentos, 533 médicos “manifestaram expressamente” recusa em efetuar abortos por motivos de consciência, o que representaria cerca de 71,3% dos especialistas nesta especialidade no SNS. De referir ainda que os dados da IGAS não incluem o número daqueles que se recusam a realizar procedimentos relativos à interrupção da gravidez em seis hospitais, nomeadamente nos três estabelecimentos de saúde oficiais reconhecidos pelo Ministério da Saúde para realizar uma IVG na Região Autónoma dos Açores.”
Teresa Bombas refere quanto à situação na Região Autónoma dos Açores que ainda "que cada um possa ter individualmente as suas opções e razões, mas não me parece aceitável que no serviço público, onde se prestam cuidados essenciais, todo o pessoal médico seja objetor de consciência". A especialista defende que "nos sítios onde isso acontece, o serviço tem de se reorganizar de forma a assegurar [a IVG]. Há várias formas de o fazer, a contratação [de não “objetores”] é uma delas, a referenciação é outra, pelo que esta alternativa prevista na lei deve ser eficaz".
"O Serviço Nacional de Saúde tem obrigações e é obrigado a dar resposta às mulheres que queiram interromper voluntariamente a gravidez, mas também deve dar apoio ético aos médicos que não queiram participar neste ato."
Carlos Cortes, Bastonário da Ordem dos Médicos
O relatório da IGAS constatou que em dez dos 11 estabelecimentos de saúde hospitalares oficiais que não realizam o procedimento de interrupção da gravidez, "o número de “objetores de consciência” impossibilita a realização do procedimento em todas ou algumas situações". O documento recomenda que todos assegurem o encaminhamento das pessoas grávidas, embora a IGAS alerte também para o facto de, nas cinco Administrações Regionais de Saúde inspecionadas, não existirem medidas para a adoção de mecanismos de coordenação nas situações em que o número de médicos que se recusam a realizar o procedimento por motivos de consciência impossibilite a realização da interrupção da gravidez. A Amnistia Internacional sublinha que o acesso aos cuidados de aborto não pode ser prejudicado pelo facto de o governo não abordar adequadamente a recusa dos profissionais de saúde em prestar cuidados de aborto por motivos de consciência ou religião. De acordo com a OMS, a "objeção de consciência" tem implicações significativas em termos de carga de trabalho para os prestadores de cuidados: "Quando há muitos objetores, os profissionais que não se opõem têm uma carga de trabalho acrescida, a prestação de cuidados de aborto é frequentemente estigmatizada e aqueles que prestam cuidados de aborto podem sofrer limitações na carreira ou discriminação". Além disso, a OMS afirma que "regulamentos e enquadramentos legais pouco claros, não aplicados ou inexistentes para a objeção de consciência podem criar sobrecarga para os profissionais de saúde, incluindo na gestão de desafios associados à sua consciência ou ética, causar conflitos no local de trabalho, resultar em tentativas de pessoal não clínico de reivindicar o recurso à objeção de consciência e minar os modelos organizacionais para a realização do aborto". 94
Entre os projetos de lei debatidos em janeiro de 2025 na Assembleia da República no âmbito da interrupção voluntária da gravidez, o Partido dos Animais e da Natureza (PAN) propôs um que previa a regulamentação da recusa médica da realização de procedimentos de cuidados de aborto por motivos de consciência, mas a proposta foi rejeitada.95
Segundo os órgãos criados ao abrigo das convenções da ONU "nos casos em que os procedimentos de aborto podem ser legalmente efetuados, todos os obstáculos ao seu acesso devem ser eliminados", incluindo a prática não regulamentada de recusa de prestação de serviços com base na consciência.96 As normas de ética médica exigem que os prestadores de cuidados de saúde deem prioridade aos cuidados prestados aos doentes em detrimento das “objeções” individuais dos prestadores de cuidados de saúde.97 As atuais normas da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO) afirmam que um médico que se oponha ao aborto por motivos de consciência "tem a obrigação de encaminhar a mulher para um colega que não se oponha por princípio à interrupção da gravidez".98 Além disso, no documento que define as "Responsabilidades profissionais e éticas relativas aos direitos sexuais e reprodutivos", a FIGO recomenda que as práticas devem assegurar que "o direito de um médico a preservar os seus próprios valores morais ou religiosos não resulte na imposição desses valores pessoais às mulheres, [e] em tais circunstâncias, estas devem ser encaminhadas para outro prestador de cuidados de saúde adequado. A 'objeção de consciência' a procedimentos não dispensa os médicos de tomarem medidas imediatas numa emergência para garantir que o tratamento necessário seja administrado sem demora."99 Os órgãos instituídos pelos tratados da ONU têm instado repetidamente os Estados que permitem a recusa médica de cuidados a regulamentá-la adequadamente para garantir que esta não limita o acesso das mulheres e pessoas que podem engravidar aos serviços de aborto.100 Por exemplo, a OMS reconhece que o direito internacional em matéria de direitos humanos exige a proibição de reivindicações institucionais de consciência e exige uma regulamentação adequada da "Objeção de Consciência".101 O Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (Comité DESC) recomendou especificamente que um "número adequado de prestadores de cuidados de saúde dispostos e capazes de prestar tais serviços deve estar sempre disponível, tanto em instalações públicas como privadas. 102 103
VI.Um caminho difícil para as minorias
Se existem obstáculos ao acesso ao aborto para a maioria das pessoas, faltam dados para compreender o que acontece em relação a certas minorias, como os migrantes, os adolescentes ou as pessoas trans, intersexo e/ou não binárias. Sónia Pintassilgo e Violeta Alarcão, ambas professoras e investigadoras do CIES/ISCTE, com estudos na área da justiça social e reprodutiva em Portugal, alertam que as pessoas em situação migratória irregular "tendem a enfrentar barreiras adicionais no acesso a cuidados reprodutivos, como a contraceção e os cuidados pré e pós-natais". Uma realidade que Teresa Bombas admite que possa existir, mas que sublinha "não é legal". A especialista defende que a lei nesta área "é completamente clara" e "tem de ser protetora". Caso contrário, diz, o país corre o risco de voltar ao passado, com o aumento dos abortos clandestinos e inseguros e das complicações associadas. Conhecemos todos muito bem como era a realidade antes de 2007", conclui. De acordo com a legislação portuguesa, os requerentes de proteção internacional e os migrantes, com ou sem a situação regularizada, estão entre os beneficiários do Serviço Nacional de Saúde.104 Os cidadãos estrangeiros estão também isentos do pagamento de cuidados nas áreas da saúde materno-infantil e da saúde reprodutiva, incluindo consultas de planeamento familiar, interrupção voluntária da gravidez acompanhamento e vigilância da mulher durante a gravidez, o parto e o pós-parto e cuidados de saúde prestados aos recém-nascidos. 105 Os dados de 2023 106 mostram que do total de interrupções de gravidez "por opção da mulher", 32,9% (5 450) foram efetuadas em cidadãos estrangeiros, quase um terço do total.
Proporção de IVG por nacionalidade das pessoas grávidas estrangeiras (2023)
Fonte: DGS
Destes, o Brasil (25,3%) lidera a lista de nacionalidades, o que está em linha com o facto de este país representar também quase um terço do total da população estrangeira residente em Portugal.107
Segundo Sónia Pintassilgo, a tendência de crescimento do número de IVG nas grávidas estrangeiras "acompanha o aumento da população estrangeira residente em Portugal e está também associada ao aumento do número de nados-vivos e à proporção significativa de nados-vivos de mulheres estrangeiras", explica.
Interrupção Voluntária da Gravidez até às 10 semanas por grupo etário
Fonte: DGS
No entanto, existe uma diferença em termos de grupos etários. No caso das pessoas grávidas estrangeiras, a maior percentagem de IVG ocorreu no grupo etário dos 25-29 anos, em comparação com as pessoas grávidas portuguesas, em que a percentagem é maior no grupo etário anterior (20-24 anos). Para Sónia Pintassilgo, o facto de as pessoas não portuguesas que interrompem a gravidez, em termos de frequência por grupo etário, serem "tendencialmente mais velhas pode ter implicações sociais, ou seja, há aqui padrões diferentes, as causas podem ser diferentes". O problema, diz, é que os dados disponíveis não permitem "ir mais longe." A investigadora sublinha, no entanto, que "tudo isto é muito curto para poder analisar o fenómeno considerando diferentes camadas, que, por exemplo, uma abordagem mais interseccional poderia proporcionar".
Aborto na adolescência
Segundo a lei portuguesa, se a pessoa grávida tiver menos de 16 anos, é necessário o consentimento do representante legal para interromper a gravidez.108 De acordo com a OMS, "embora o envolvimento dos pais ou parceiro na tomada de decisões sobre o aborto possa apoiar e ajudar as mulheres, raparigas ou outras pessoas grávidas, este deve basear-se nos valores e preferências da pessoa que recorre ao aborto e não ser imposto por exigências de autorização de terceiros".109As evidências mostram que requisitos de autorização e notificação de terceiros estão associados a atrasos no acesso ao aborto. Segundo o Guia de Orientação sobre Cuidados de Aborto da OMS "no caso de menores, estes atrasos [são] por vezes, embora nem sempre, reduzidos quando a autorização judicial [é] utilizada para contornar os requisitos de autorização dos pais." Mas a autorização judicial "pode ser onerosa e demorada, e os menores pertencentes a minorias étnicas ou com um estatuto socioeconómico mais baixo têm uma probabilidade significativamente maior de ter de a utilizar".
Por outro lado, as evidências tem apontam que os adolescentes e as mulheres procuram "contornar os requisitos de autorização dos pais/esposos para evitar violência antecipada, coerção reprodutiva e desarmonia familiar." 110 Em 2003, o Comité das Nações Unidas para os Direitos da Criança recomendou que os Estados Partes “desenvolvessem e implementassem programas que proporcionassem o acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva, incluindo planeamento familiar, contraceção e serviços de aborto seguro, onde o aborto não é ilegal, cuidados obstétricos adequados e abrangentes e aconselhamento”.
Existem poucos dados sobre o aborto em adolescentes. De acordo com um estudo de 2025112 que analisou 712 procedimentos realizados no hospital Nossa Senhora do Rosário, no Barreiro, em Lisboa, entre 2010 e 2023, a 669 adolescentes até aos 19 anos, registou-se uma tendência decrescente nas interrupções de gravidez até 2021, embora nos últimos dois anos se tenha verificado um aumento. Em 2023, foram realizadas 52 interrupções da gravidez neste estabelecimento de saúde, um número semelhante ao de 2016 (53), mas longe das 82 interrupções de gravidez registadas em 2011. Os procedimentos realizados em adolescentes representaram entre 8,1 e 15% de todas as interrupções voluntárias de gravidez até às 10 semanas. A idade mínima foi de 13 anos e a média de 18 anos. 22,6% das IVG foram realizadas a adolescentes com idade até aos 16 anos Em termos totais, 88,9% eram solteiras e 68,3% eram estudantes. Entre as que trabalhavam, quase metade (49,1%) estava desempregada. A grande maioria (85,9%) era de nacionalidade portuguesa e, entre os estrangeiros, a maioria era oriunda dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP).
A Amnistia Internacional113 nota que as crianças e adolescentes 114 têm direito a informações e cuidados de aborto de acordo com as suas capacidades evolutivas e sem discriminação com base na idade.Podem querer que os seus pais e/ou responsáveis legais os apoiem na decisão de continuar ou interromper a gravidez, mas os requisitos gerais para a autorização parental são contrários a um quadro baseado nos direitos humanos, uma vez que impedem a realização do interesse superior e do bem-estar das crianças e o reconhecimento das suas capacidades em desenvolvimento. Em sentido oposto, o que é necessário é que as crianças e adolescentes possam ter acesso a apoio para identificar o que é do seu superior interesse, nomeadamente, mas não necessariamente, através da consulta dos pais ou de outros adultos de confiança sobre a gravidez.115
O Comité dos Direitos da Criança (CDC) também defende a importância de os menores terem acesso a serviços de saúde sem o consentimento dos pais.116 No Comentário Geral n.º 20, o CDC exorta os Estados a garantir “o superior interesse das adolescentes grávidas e assegurar que as suas opiniões sejam sempre ouvidas e respeitadas nas decisões relacionadas com o aborto”.117
A realidade desconhecida do aborto na comunidade trans
"Hoje consigo compreender toda a disforia associada à gravidez e a todo o processo [da IVG]. A verdade é que isto também acontece com todos os processos ligados à ginecologia." Elle, 27 anos 118
A memória de Elle (nome fictício) está gravada no seu corpo. Em 2017, no espaço de cinco meses, engravidou duas vezes. Na altura, vivia nas Caldas-da-Rainha, onde estudava na faculdade, e foi a partir do hospital local que foi referenciade para a Clínica dos Arcos, em Lisboa, onde se submeteu a duas aspirações por via cirúrgica.
Apesar de ter passado algum tempo desde então, só ao iniciar o processo "de realização como pessoa trans" é que Elle conseguiu "começar a desmontar" o que tinha acontecido. "Demorei muito tempo a conseguir falar sobre o facto de ter feito duas IVG. Sentia uma dualidade na culpa. Culpa por as ter feito e, ao mesmo tempo, culpa por me sentir culpade por ter crescido numa família em que se falava abertamente deste direito", explica Elle. Parte do trauma, diz, veio do facto de ter de ouvir comentários nos serviços de saúde como "- Por aqui outra vez?" ou de se sentir "tratade como gado", "com a pessoa no escritório a falar muito alto sobre o que eu estava ali a fazer". "Senti zero de privacidade e confidencialidade relativamente à IVG", salienta Elle.
Recentemente, a ansiedade voltou: "Tive um susto de gravidez", ao ponto de "entrar em pânico constantemente com qualquer enjoo ou cheiro que se assemelhasse a um sintoma [de gravidez]". A ideia "de ter de lidar com o processo de IVG enquanto pessoa trans" motivou o contacto com a Amnistia. Em particular, a necessidade de expor uma realidade que, apesar de rara, existe: "Uma ida ao ginecologista não é uma coisa que se fale, nem mesmo entre pares. É muito raro ter estas conversas". Elle defende que é preciso começar por utilizar uma linguagem que inclua todas as pessoas que podem engravidar e que são vítimas de discriminação: "Continua a ser uma experiência altamente disfórica, o termo feminino é sempre utilizado. Fala-se do sistema reprodutor feminino, dos órgãos genitais femininos. Os médicos precisam de formação para saberem lidar com outros corpos". Elle dá como exemplo o risco de diagnósticos tardios de algumas doenças, como o cancro da mama ou outros problemas ginecológicos não detetados, porque, explica, o estigma é tal que "simplesmente não vamos fazer os exames médicos necessários".
Simplesmente não existem dados disponíveis sobre as pessoas trans, intersexo e/ou não binárias que interromperam a gravidez em Portugal.
Júlia Pereira é dirigente da Anémona, uma associação sem fins lucrativos que foi oficialmente criada há três anos com a missão de promover e defender os cuidados de saúde para pessoas transgénero e não binárias em Portugal. Relativamente ao acesso ao aborto, diz que é preciso fazer quase tudo. “Estes espaços ainda são muito CIS orientados, e estas pessoas não são e não se identificam como mulheres CIS, mesmo que não tenham iniciado a transição.”
Mas a procura de serviços relacionados com a interrupção voluntária da gravidez pode ser apenas a ponta do icebergue de um sistema incapaz de lidar com corpos diferentes e com os seus direitos sexuais e reprodutivos. “Estamos a falar de pessoas trans que, neste caso, têm vagina, útero e ovários", começa por frisar Júlia Pereira, antes de apontar a falta de dados, estudos de caso e informação científica como um dos principais problemas. O exemplo dos Açores e da Madeira naturalmente também se destaca, contudo numa perspetiva ainda mais grave, visto que "nas ilhas, as pessoas trans nem sequer têm garantidos os cuidados de afirmação de género, muitas têm de vir para o continente". Uma realidade que, explica a dirigente, "permite-nos perceber que, pelo menos em teoria, fazer um aborto será ainda pior". O objetivo da Anémona tem sido, desde o início, construir uma rede de médicos amigos das pessoas trans a quem possam encaminhar os pedidos de ajuda. Mesmo assim, Júlia Pereira admite que "o acesso [ao aborto] continua a ser um desafio, como é o caso de outras questões como a saúde menstrual". Basta pensar no "choque" causado pela possibilidade "de falar sobre estes temas de forma aberta e inclusiva. Tem causado muita celeuma", aponta. Tal como acontece com todos os outros direitos sexuais e reprodutivos, a Amnistia Internacional considera que o direito ao aborto deve incluir todas as pessoas que podem engravidar119 e deve ser proporcionado de uma forma que respeite os seus direitos, autonomia, dignidade e necessidades no contexto das suas experiências vividas, circunstâncias, aspirações e pontos de vista.
As leis e políticas que regulam o aborto devem estar em conformidade com o princípio da igualdade e da não-discriminação, há muito estabelecido. Ou seja, não devem ser discriminatórias em termos de objetivo e efeito com base no sexo e no género, ou discriminatórias com base na idade, raça, etnia, localização geográfica e estatuto socioeconómico ou outro. Tal como referido anteriormente, as leis que criminalizam o aborto e outras leis, políticas e práticas que impõem barreiras legais e práticas ao acesso ao aborto seguro têm um impacto desproporcionado e discriminatório nos grupos mais marginalizados, incluindo refugiados e migrantes, entre outros. Tais leis e políticas reforçam e perpetuam ainda mais a discriminação interseccional e têm um impacto desigual sobre aqueles que enfrentam formas múltiplas e combinadas de discriminação, bem como aqueles que enfrentam múltiplas barreiras ao exercício dos seus direitos sexuais e reprodutivos. 120
RECOMENDAÇÕES
A Amnistia Internacional está a fazer campanha para melhorar o acesso à interrupção voluntária da gravidez em Portugal. Para garantir que os direitos sexuais e reprodutivos de todas as pessoas que podem engravidar são protegidos, respeitados e cumpridos, fazemos as seguintes recomendações às autoridades portuguesas:
- - Garantir o acesso a serviços, bens e informações adequadas e abrangentes em matéria de saúde sexual e reprodutiva e adotar um quadro legal para os cuidados relativos à interrupção da gravidez, em conformidade com as Diretrizes da OMS para os Cuidados do Aborto de 2022, incluindo:
- - Assegurar que as recusas de prestação de serviços de aborto legal por parte dos prestadores de cuidados de saúde (incluindo por motivos morais ou religiosos) não resultam na negação ou obstrução do acesso à interrupção da gravidez por parte das pessoas grávidas que precisem ou desejem realizá-la. Para o efeito, assegurar que essas recusas sejam adequadamente regulamentadas e que haja um número suficiente de prestadores de cuidados de saúde dispostos a prestar cuidados de aborto e que os serviços estejam disponíveis a uma distância geográfica razoável, em estabelecimentos públicos em todas as regiões do país, incluindo a região Autónoma dos Açores;
- - Assegurar que o aborto é um serviço de saúde plenamente acessível, integrando o aborto seguro (incluindo uma série de métodos de aborto à escolha) no âmbito da prestação de serviços globais de saúde sexual e reprodutiva, de bens e de informação, e garantindo que os serviços estejam disponíveis, sejam acessíveis, económicos e de boa qualidade para todos em todas as regiões, incluindo na região dos Açores, e que sejam prestados sem discriminação, coerção ou maus-tratos, e no respeito pela privacidade, confidencialidade e direitos humanos das pessoas grávidas;
- - Garantir a disponibilidade de acesso a cuidados numa série de contextos (por exemplo, contextos formais de cuidados de saúde; centros de cuidados de saúde primários, secundários e terciários; clínicas móveis; e de teleconsultas de saúde) e de prestadores com formação adequada para assegurar o acesso a cuidados de aborto e à interrupção voluntária da gravidez, particularmente em contextos remotos e rurais, incluindo na região dos Açores;
- - Tomar medidas para combater o estigma relacionado com o aborto e a interrupção voluntária da gravidez e as barreiras que lhe estão associadas, promovendo a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos e sensibilizando o público para os direitos das pessoas grávidas e para os serviços de saúde disponíveis, através da prestação de informações precisas em formatos acessíveis e através de vários canais.
- - Expandir a formação dos estudantes de medicina e dos profissionais de saúde em matéria de aborto, IVG e de cuidados pós-aborto e de tratamento do aborto espontâneo de uma forma compassiva e ética. Isto deve incluir formação sobre os determinantes sociais e a necessidade médica do aborto e sobre cuidados éticos e adequados. A formação dos prestadores de cuidados de saúde deve também abranger a legislação e as políticas relevantes relacionadas com o aborto, a IVG e os direitos de todas as pessoas que podem engravidar.
- - Recolher dados desagregados sobre os cuidados de saúde relacionados com o aborto e a IVG, a fim de poder identificar e abordar os fatores subjacentes que fomentam e promovem a discriminação de género, racial, étnica, de classe, de deficiência e outras formas de discriminação que contribuem para a opressão reprodutiva, promovem e perpetuam uma regulamentação restritiva e punitiva do aborto e alimentam o estigma e a discriminação contra as pessoas que procuraram, prestaram ou realizaram abortos ou IVG, ou que se presume que o tenham feito.
- - Com base na recolha de dados referida na recomendação anterior, tomar medidas especiais para garantir que as pessoas grávidas de grupos desfavorecidos que necessitam de recorrer à interrupção voluntária da gravidez possam aceder a serviços e informações sem discriminação ou barreiras. Estes grupos incluem pessoas com rendimentos mais baixos, pessoas que vivem em zonas remotas e rurais, migrantes e refugiados, adolescentes, pessoas com deficiência, entre outros.