20 Novembro 2014

O falhanço da comunidade internacional em dar resposta ao número crescente de refugiados sírios que fogem para a Turquia conduziu a uma crise de proporções sem precedentes, com estas pessoas a serem empurradas de volta para o outro lado da fronteira e a verem ser disparados tiros na sua direção, e ainda centenas de milhares a viverem em condições de pobreza extrema, denuncia a Amnistia Internacional em novo relatório.

“Struggling to Survive: Refugees from Syria in Turkey” (A luta pela sobrevivência: os refugiados sírios na Turquia), publicado esta quinta-feira, 20 de novembro, documenta os graves riscos de direitos humanos que enfrentam os 1.6 milhões de pessoas que procuraram refúgio em território turco ao longo dos últimos três anos e meio. A investigação destaca também a deplorável relutância da comunidade internacional em assumir responsabilidade financeira significativa nesta crise de refugiados.

“A Turquia está claramente em dificuldades para conseguir dar resposta até às mais básicas necessidades de centenas de milhares de refugiados sírios. O resultado é que muitos daqueles que conseguiram passar a fronteira acabaram abandonados a uma vida de pobreza extrema. É patente que a assistência humanitária oferecida pela comunidade internacional tem sido lamentavelmente pouca, mas a Turquia também tem de fazer mais para a requerer e distribuir”, avança o investigador da Amnistia Internacional especialista em Turquia, Andrew Gardner.

Este perito sublinha que “apesar de a Turquia ter oficialmente aberto as suas fronteiras aos refugiados sírios, a realidade para muitos daqueles que tentam fugir da violência da guerra é uma história muito diferente”: “Muitos são empurrados de volta para as zonas de guerra, alguns deles até sob disparos de tiros com munições verdadeiras”, destaca.

Metade dos 3.2 milhões de mulheres, homens e crianças que fugiram da violência, da perseguição e outras violações de direitos humanos na Síria estão atualmente na Turquia. O país diz ter gasto nos últimos anos quatro mil milhões de dólares (cerca de 3.19 mil milhões de euros) nesta crise de refugiados. Porém, até o final de outubro de 2014, apenas 28 por cento da fatia de 497 milhões de dólares (396 milhões de euros) destinados à Turquia no esforço regional de financiamento para os refugiados sírios – promovido pelas Nações Unidas para este ano – é que já foi entregue pelos doadores internacionais.

A Turquia e os outros países vizinhos da Síria – Líbano, Jordânia, Iraque e Egito – acolhem 97 por cento dos refugiados sírios.

O país “tem suportado sozinho uma parte muito importante do fardo financeiro e as hesitações dos países ricos em assumirem uma maior responsabilidade financeira pela crise de refugiados, a par das insignificantes ofertas para os acolher, é deplorável”, avalia Andrew Gardner.

Alvejados com munições reais

Apesar de a Turquia manter uma política de fronteiras abertas aos refugiados sírios nas zonas oficiais de passagem, existem apenas dois locais onde as portas estão de facto abertas ao longo dos 900 quilómetros de fronteira entre os dois países. E mesmo nestes, aqueles que aparecem sem passaportes são frequentemente enviados para trás, a não ser que apresentem urgências médicas ou necessidades humanitárias prementes.

Para além disto, as passagens fronteiriças oficiais estão perigosamente distantes para que a maioria dos refugiados consigam alcançá-las. Muitos não têm outra opção se não tentar os difíceis e arriscados pontos fronteiriços que estão localizados em áreas de conflito armado, entregando-se frequentemente nas mãos de contrabandistas. E aqui dão amiúde de caras com mostras de força por parte da guarda-fronteiriça.

Nesta investigação, a Amnistia Internacional registou a morte de pelo menos 17 pessoas por guardas-fronteiriços, os quais usaram munições reais em zonas de passagem não oficiais, entre dezembro de 2013 e agosto de 2014. Muitos refugiados foram espancados ou sujeitos a outros maus-tratos e forçados a regressar à devastada Síria.

Ali Özdemir, de 14 anos, foi alvejado na cabeça na noite de 18 para 19 de maio de 2014, quando se aproximava da fronteira com a Turquia. O pai do adolescente descreveu à Amnistia Internacional que Ali fazia a aproximação junto com outros nove refugiados: a uns dez metros da fronteira começaram a ouvir pessoas a falar turco e Ali disse estar com medo. No momento em que decidiu voltar para trás foi alvejado num dos lados da cabeça. Não foi feito nenhum aviso verbal, nem disparados tiros de aviso para o ar. Ali ficou cego dos dois olhos.

“Disparar contra pessoas que estão a fugir de uma guerra e se encontram desesperadas para encontrar um refúgio seguro é desprezível. Esta é uma violação flagrante das leis internacionais que não pode ficar impune”, defende o investigador da Amnistia Internacional. “Abrir as portas a refugiados que fogem da perseguição ou da guerra é a mais básica obrigação dos países. As autoridades turcas têm de encetar medidas abrangentes para garantir a máxima segurança e o acesso dos refugiados que estão em fuga do conflito na Síria”, prossegue.

Na fronteira, sem esperança

Dos 1.6 milhões de refugiados sírios que se encontram em território turco apenas 220 mil vivem nos 22 campos dotados de recursos, e que atualmente estão a funcionar nas suas capacidades populacionais máximas. Mais de 1.3 milhões de pessoas estão entregues a si próprias. Segundo fontes do Governo turco, apenas 15 por cento dos refugiados sírios que estão fora dos campos recebem alguma forma de assistência por parte das agências e organizações humanitárias.

A necessidade de obter os alimentos básicos e abrigo significa que muitíssimas famílias lançam mão de soluções desesperadas para tentar sobreviver um dia após o outro – algumas pondo mesmo os filhos a trabalhar.

É assim com “Ibrahim” (nome fictício para proteção de identidade), de dez anos, que fugiu com a família de Alepo há dois anos e mora agora na cidade fronteiriça turca de Kilis, num abrigo de betão. Para sobreviverem, “Ibrahim” e o pai recolhem plástico dos caixotes do lixo, ganhando uma lira turca (40 cêntimos de euro) por cada meio quilo de plástico. A criança contou à Amnistia Internacional que acorda todos os dias às 6h e trabalha até cerca das 16h. Em alguns dias consegue ter tempo para aprender um pouco a ler e a escrever com o imã local. Nenhuma das outras nove crianças desta família vai à escola.

“A realidade que a maior parte dos refugiados sírios vive depois de ter conseguido escapar-se à violência da guerra é sombria e sem esperança. A comunidade internacional deixa-os ao abandono. Os países mais ricos do mundo continuam a arrastar os pés no que toca a oferecer apoio financeiro e acolhimento”, sustenta Andrew Gardner.

O perito nota ainda que “a Turquia só clarificou o estatuto legal, os direitos e garantias dos refugiados sírios em outubro, quando o Parlamento aprovou a Diretiva de Proteção Temporária”. “Esta diretiva tem de ser totalmente aplicada, posta em prática e comunicada de forma clara tanto aos refugiados sírios como aos funcionários do Estado”, remata.

 

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