10 Junho 2021

A Amnistia Internacional Portugal remeteu um pedido de esclarecimentos urgente à Câmara Municipal de Lisboa (CML), depois do envio, pelos serviços desta autarquia, de dados pessoais de três ativistas russos residentes em Portugal à Embaixada russa em Portugal e ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) russo em Moscovo.

O envio destes dados ocorreu a propósito de uma manifestação em Lisboa contra a prisão de Alexei Navalny, realizada no passado dia 23 de janeiro de 2021, em frente à Embaixada russa. A divulgação dos dados destes três manifestantes constitui uma clara violação dos seus direitos humanos, em particular, do direito à liberdade de manifestação, expressão e reunião, e ao direito à proteção dos seus dados pessoais.

Expressámos profunda preocupação com a segurança destes manifestantes, que foi claramente comprometida, mas também das suas famílias, principalmente as que se encontrarem em território da Federação Russa.

É uma ação que coloca em risco estas pessoas e as suas famílias, contribuindo para a preocupante e conhecida falta de segurança que muitos defensores de direitos humanos enfrentam pelo mundo

Além disto, esta ação da CML falha no seu dever de proteção de dados, uma vez que não podem ser cedidos dados pessoais, que lhes são confiados, a entidades terceiras, sem autorização explícita das pessoas a quem os dados se referem, o que faz com que este modo de atuação esteja fora do âmbito previsto na lei.

É igualmente uma ação que coloca em risco estas pessoas e as suas famílias, contribuindo para a preocupante e conhecida falta de segurança que muitos defensores de direitos humanos enfrentam pelo mundo, especialmente em países que continuam a intimidar, reprimir e perseguir dissidentes, jornalistas e opositores políticos, de variadas formas e níveis de gravidade distintos, como acontece na Rússia. A título de exemplo, no mesmo fim de semana desta manifestação em Portugal – e como esta foi uma manifestação generalizada por vários países europeus -, só na Rússia decorreram cerca de 80 protestos e foram detidas 3.000 pessoas, entre as quais, a esposa de Alexei Navalny, de acordo com a organização OVD Info.

“As consequências podem ter níveis de repressão distintos, desde um impedimento na renovação de um passaporte, até à perseguição, detenção e prisão”

Pedro A. Neto, diretor-executivo da Amnistia Internacional Portugal

Pedro A. Neto, diretor-executivo da Amnistia Internacional Portugal, realça que “é fundamental garantir que estas pessoas, e as respetivas famílias, têm acesso a medidas de proteção e compensação. Em primeiro lugar, analisar caso a caso, porque as consequências podem ter níveis de repressão distintos, desde um impedimento na renovação de um passaporte, até à perseguição, detenção e prisão.”

Relembramos ainda que, em Portugal, no usufruto do direito à manifestação, não é necessário realizar um pedido de autorização do mesmo às autoridades. É, no entanto, obrigatório informar o respetivo município onde a manifestação irá decorrer, para questões de logística e segurança pública. Por sua vez, o município informa a PSP ou a GNR, conforme quem destas polícias trabalhe nesse território.

Não vem descrito em nenhum ponto da lei portuguesa que os municípios tenham  de informar previamente os residentes ou as instituições sediadas ao redor do espaço público onde se realizará a manifestação. Assim sendo, a Câmara Municipal de Lisboa não deve classificar a “ação de informar as entidades que estão a ser alvo da manifestação” como um procedimento “adequado e admissível”. É, na verdade, um procedimento inadequado, incorreto e ilegal. A própria manifestação é a informação, em si, que é necessária. Não é a autarquia que informa as entidades sobre manifestações em frente ao seu espaço, porque as manifestações decorrem na rua, em espaço público. A entidade, caso se sinta ofendida, deve contactar a polícia e participar a ocorrência, sendo que, a partir daí, a polícia segue os seus trâmites habituais.

Esta divulgação de dados pessoais não é aceitável em qualquer situação.

Por todas estas razões, a Amnistia Internacional Portugal considera que esta justificação não é válida, tendo uma ofensa em si mesma, uma vez que é uma desculpa e argumentação sem qualquer coerência ou sentido por parte da CML. Esta divulgação de dados pessoais não é aceitável em qualquer situação.

A Amnistia Internacional Portugal muito aprecia que a CML tenha corrigido procedimentos, mas sublinha que falta ainda esclarecer o que vai ser feito para compensar estas pessoas, e clarificar que outros dados foram divulgados – e a quem – de todas as manifestações que se realizaram, nos últimos anos, em território do município.

Por fim, uma vez que alterar e corrigir procedimentos não é suficiente, é importante que o Ministério dos Negócios Estrangeiros português se pronuncie e ofereça a proteção e compensação necessária contra os riscos em que as autoridades locais colocaram estas pessoas.

 

Atualização [11 de junho de 2021, 11h]

Após o pedido de esclarecimentos urgente endereçado ao gabinete do Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, foi dada uma resposta via telefónica, ainda no decorrer da manhã do dia 10 de junho, e resposta escrita ao início da tarde do mesmo dia.

A Amnistia Internacional recomendou à Câmara Municipal que cumpra estritamente a lei e ajuste os procedimentos a uma forma correta e adequada.

A organização refutou o procedimento de informação a entidades terceiras “onde se realizam as manifestações e a quem as manifestações visam”. As entidades visadas têm conhecimento das manifestações através da própria manifestação e, se assim entenderem, podem vir ao encontro dos manifestantes e dialogar com as pessoas, ouvindo as suas reivindicações diretamente. Não cabe às autarquias mediar este papel. Se as entidades visadas se sentirem ofendidas pelos manifestantes, podem chamar as autoridades e participar a ocorrência, fazendo queixa às entidades judiciais competentes.

A Amnistia Internacional esclarece ainda que as manifestações não ocorrem no “local das entidades”, como referiu publicamente o presidente da câmara municipal, mas sim em espaço público – na via pública –  e é por esta razão que os municípios são informados das manifestações, por elas ocuparem, precisamente, o espaço público que as autarquias gerem.

Por fim, a organização apelou à Câmara Municipal de Lisboa que realize um levantamento de todas as situações semelhantes, em que os dados de pessoas que organizaram manifestações no território municipal tenham sido facultados a entidades terceiras, e contactem essas pessoas, informando-as do ocorrido e acordando, com elas, medidas de mitigação, compensação e proteção nos casos em que tal se revele necessário. A autarquia deve envolver o Ministério da Administração Interna e o Ministério dos Negócios Estrangeiros para os casos de pessoas que residam em Portugal ou de pessoas e familiares que residam em países terceiros, respetivamente.

A Amnistia Internacional apela ainda a que o Ministério da Modernização do Estado e da Administração Pública tome medidas urgentes de formação a responsáveis políticos e a pessoal técnico e administrativo, quer da administração pública central, quer local, para que tenham maior conhecimento e consciência da implicação do seu trabalho e responsabilidades na defesa dos Direitos Humanos, em Portugal e no mundo.

Atualização [11 de junho de 2021, 17h]

A alegação de que o procedimento de partilha de dados efetuado pela CML resulta de uma lei de 1974, que se encontra totalmente desatualizada, não faz sentido. No decreto-lei n.º 406/74 apenas é explícito, no seu artigo 2º, que três promotores devem assinar o aviso enviado à autarquia. Em nenhum dos seus artigos refere que os nomes, ou qualquer outro dado destes promotores, pode ou deve ser passado a quaisquer entidades, muito menos às entidades visadas ou às quais são dirigidos os apelos das manifestações.

As atualizações de que este decreto-lei possa necessitar são em pontos que em nada implicam com os procedimentos da CML que deram origem a este episódios. Além disso, esta lei tem que ser lida em conjunto com a legislação da RGPD, atualmente em vigor, e que se foca precisamente na forma como as entidades, públicas e privadas, acedem, tratam e fazem uso dos dados pessoais de que são detentoras.

Por isso, fundamentar este procedimento por parte da CML no decreto-lei n.º 406/74, desviando o foco para a necessidade de alteração da lei, é incorreto, e é em si mesmo uma ofensa, pois é trazer confusão a um tema que deveria trazer esclarecimento, responsabilização e foco na reparação e proteção de quem foi vítima destes procedimentos errados.

 

Artigos Relacionados