12 Agosto 2015

Os incessantes bombardeamentos aéreos e de artilharia feitos pelas forças militares governamentais da Síria sobre a região oriental de Ghuta, nos arredores de Damasco, estão a ampliar ainda mais o sofrimento dos civis que se encontram cercados e a enfrentarem uma cada vez mais grave crise, aponta a Amnistia Internacional em novo relatório.

“Left to die under siege: War crimes and human rights abuses in Eastern Ghouta, Syria” (Deixados para morrer sob cerco: crimes de guerra e abusos de direitos humanos em Ghuta Oriental, na Síria), publicado esta quarta-feira, 12 de agosto, revela sólidos indícios de crimes de guerra e descreve como o cerco das forças governamentais sírias à zona oriental de Ghuta – e as execuções ilegais dos civis ali sitiados – faz parte de um ataque sistemático e generalizado sobre a população, o que constitui crimes contra a humanidade.

No mesmo dia em que o relatório é publicado, aliás, Ghuta Oriental sofreu novos ataques aéreos: quatro raides de bombardeamentos atingiram de manhã os mercados públicos de Al-Hal e de Al-Ghanam, em Douma, no que resultou a morte de pelo menos 27 pessoas.

Este novo relatório da organização de direitos humanos expõe ainda a agonizante luta pela sobrevivência de mais de 163.000 pessoas que se encontram sob cerco em Ghuta Oriental, além de dar conta de abusos cometidos por grupos armados sem ligação ao Governo sírio que estão presentes naquela região.

“Há já quase três anos que as vidas dos civis de Ghuta Oriental estão a ser devastadas pela tragédia e pelo derramamento de sangue. Estas pessoas estão encurraladas e rodeadas de combates por todos os lados, sem meios para se escaparem aos ilegais ataques aéreos e de artilharia de que estão a ser alvo por parte das forças governamentais. A angústia pela qual estão a passar é agravada pela reduzida quantidade de alimentos a que têm acesso, assim como de água potável e outros bens cruciais – o que se traduz num contexto em que a vida do dia-a-dia se tornou, para muitos, numa longa experiência de miséria e sofrimento”, frisa o diretor interino da Amnistia Internacional para a região do Médio Oriente e Norte de África, Said Boumedouha.

Crimes de guerra cometidos pelas forças governamentais

Entre janeiro e junho de 2015, as forças governamentais sírias fizeram pelo menos 60 ataques aéreos sobre Ghuta Oriental, do que resultou a morte de cerca de 500 civis. Este novo relatório documenta 13 desses ataques aéreos e outros bombardeamentos da região que constituem crimes de guerra e nos quais morreram 231 civis e três combatentes. Em dez dos casos analisados pela Amnistia Internacional, não é identificável nenhum alvo militar nas proximidades de onde os ataques ocorreram, o que sugere que os mesmos foram dirigidos diretamente contra civis ou que, na melhor das hipóteses, foram indiscriminados. Nos outros três bombardeamentos, os ataques parecem grosseiramente desproporcionados ou indiscriminados.

Muitos locais públicos foram atingidos quando se encontravam repletos de civis, incluindo um mercado cheio de pessoas, uma escola com alunos nas proximidades e ainda a vizinhança de uma mesquita logo após o fim das preces de sexta-feira.

A análise de imagens de satélite integrada neste relatório mostra que ataques aéreos efetuados entre 28 de dezembro de 2014 e 10 de fevereiro de 2015 destruíram por completo vários edifícios residenciais perto da mesquita de Taha, em Duma. Uma testemunha ocular descreveu ter visto nove corpos espalhados pelas ruas junto à mesquita, de pessoas que foram mortas num ataque aéreo a 9 de fevereiro; esta testemunha avançou ainda que os edifícios residenciais nas proximidades, assim como um hospital de campo e uma escola, ficaram destruídos no bombardeamento.

Naquele mesmo dia, Amir testemunhou um outro raide aéreo sobre uma outra mesquita em Duma, tendo contado aos investigadores da Amnistia Internacional que foram mortas neste ataque várias famílias de sírios deslocados pelo conflito, incluindo crianças, as quais se tinham alojado na mesquita Al-Ansar. “Não há sítio nenhum seguro”, concluiu Amir.

Os mercados públicos estão também na lista de alvos das forças governamentais sírias. “Foi um desastre”, lamentou uma testemunha ocular ao descrever o rescaldo do ataque sobre o mercado de Kafr Batna, a 5 de fevereiro passado. Residentes naquele bairro avançaram que o raide ocorreu pelas 13h – “a hora mais movimentada do dia” – e que ficaram destruídos também dois edifícios residenciais próximos. Não havia sinal nenhum indicador da presença de qualquer alvo militar próximo.

Num outro ataque semelhante, que se deu a 25 de janeiro, jatos da Força Aérea síria bombardearam um mercado em Hamuria, pouco após o fim das preces de sexta-feira, quando a multidão de crentes saia de uma mesquita nas proximidades para comprar açúcar, que estava nesse dia à venda com descontos. Morreram mais de 40 civis. “Só se via sangue por todo o lado. Foi horrível, algo que eu nunca tinha visto”, explicou uma testemunha.

“O momento e o local escolhidos para estes ataques indiciam que são orquestrados deliberadamente para maximizar os danos ou a perda de vidas de civis, numa tentativa pavorosa por parte das forças governamentais sírias em aterrorizar a população. Todos os ataques contra civis e contra edifícios ou infraestruturas civis têm de acabar”, insta Said Boumedouha.

As forças governamentais sírias têm também de forma repetida disparado rockets e morteiros de fraca precisão e até mesmo bombas não guiadas sobre áreas povoadas, numa série de ataques diretos ou indiscriminados contra os civis – os quais constituem crimes de guerra.

“Ao bombardearem repetidamente zonas densamente povoadas numa série de ataques diretos, indiscriminados ou desproporcionados, assim como ao manterem civis ilegalmente cercados, as forças governamentais sírias estão a cometer crimes de guerra e revelam uma sinistra insensibilidade em relação à população civil de Ghuta Oriental”, avalia o diretor interino da Amnistia Internacional para a região do Médio Oriente e Norte de África.

A vida debaixo de cerco: uma batalha pela sobrevivência

Além dos bombardeamentos diários, as condições de vida em Ghuta Oriental tem vindo a deteriorar, como é demonstrado no relatório. Os habitantes veem-se com um acesso extremamente limitado a alimentos, água potável e cuidados médicos, assim como a fornecimentos essenciais como a eletricidade e combustível. Os postos de controlo das forças governamentais e de grupos armados na região restringem a liberdade de deslocação da população civil tanto para sair como para entrar em Ghuta Oriental. As forças leais ao Governo sírio recusaram mesmo livre acesso à zona das equipas das agências das Nações Unidas e de outros agentes humanitários.

Mais de 200 pessoas morreram de fome ou por não conseguirem aceder a cuidados médicos adequados em Ghuta Oriental entre 21 de outubro de 2012 e 31 de janeiro de 2015, de acordo com os dados da Syrian American Medical Society.

Neste contexto tem emergido um mercado negro de “economia de guerra”, com traficantes e membros de grupos armados e mesmo responsáveis governamentais na região a tirarem proveito à custa dos civis. As forças governamentais sírias confiscam rotineiramente alimentos nos postos de controlo e forçam assim os habitantes de Ghuta a comprar bens essenciais no mercado negro, amiúde a preços dez vezes mais altos do que se encontram na zona central de Damasco.

Marwan, residente em Jesrine, conta que perdeu mais de 15 quilos de peso devido ao cerco. Passou dias sem comer, para garantir que os quatro filhos e a mulher conseguiam ter pelo menos uma refeição por dia. “O que mais é preciso para as Nações Unidas fazerem algo sobre isto? Passarmos fome é a única resposta?”, questiona.

“As forças governamentais estão a usar a fome como arma de guerra numa flagrante violação da lei internacional. A sonegação de alimentos e de outros suprimentos essenciais à sobrevivência é um perverso ato de crueldade e uma punição coletiva de toda a população civil”, critica Said Boumedouha.

Os habitantes de Ghuta Oriental revelaram ainda que os combatentes do grupo armado rebelde Exército do Islão (Jaysh al Islam) e as suas famílias têm alimentos com abundância, enquanto os civis se veem obrigados a pagar preços extremamente inflacionados.

O novo relatório da Amnistia Internacional demonstra ainda que grupos armados sem ligação ao Governo sírio – em particular o Exército do islão – têm cometido uma série de abusos na região, incluindo raptos, detenções arbitrárias e bombardeamentos indiscriminados. O recurso que estes grupos fazem a armamentos sem precisão, como morteiros e rockets Grad, contra zonas povoadas constitui crime de guerra.

“As generalizadas violações de direitos humanos feitas pelo Governo sírio não justificam nem desculpam o comportamento chocante do Exército do Islão que também tem levado a cabo ataques indiscriminados, tem falhado na proteção dos civis e os tem privado de aceder a alimentos e a cuidados médicos. A população civil de Ghuta Oriental está, na essência, presa entre dois lados hostis entre si e que competem exclusivamente pelos seus próprios interesses”, reitera Said Boumedouha.

Ação internacional desesperadamente necessária

O Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou há mais de um ano duas resoluções que visam aliviar o sofrimento dos civis na Síria, mergulhados na guerra há mais de quatro anos, instando todas as partes envolvidas no conflito a porem fim aos ataques contra a população do país, acabarem com todos os cercos, proporcionarem acesso sem restrições à ajuda humanitária e a libertarem todas as pessoas detidas arbitrariamente. Porém, e até à data, essas resoluções da ONU em nada amenizaram o sofrimento da maior parte dos civis sírios.

“O objetivo daquelas resoluções era precisamente proteger a população civil e evitar um desastre humano de larga escala. Mas até agora o Conselho de Segurança da ONU fica a olhar enquanto as resoluções são abertamente desrespeitadas e a crise se agrava, apesar dos compromissos assumidos em serem tomadas mais medidas para garantir que aquelas decisões são aplicadas. Essas medidas são há muito tempo devidos, e de forma desesperada”, nota Said Boumedouha.

O diretor interino da Amnistia Internacional para a região do Médio Oriente e Norte de África avança ainda que “não se pode continuar a permitir que os perpetradores dos crimes consagrados na lei internacional a que estamos a assistir na Síria continuem a escapar-se à justiça”. “Enquanto a Rússia bloquear no Conselho de Segurança que o que se passa na Síria seja entregue nas mãos do Procurador do Tribunal penal Internacional, a justiça continuará a ser algo muito distante”, remata o perito da organização de direitos humanos.

É entendimento da Amnistia Internacional que o Conselho de Segurança das Nações Unidas deve urgentemente impor sanções a todas as partes envolvidas no conflito na Síria que são responsáveis por crimes de guerra e crimes contra a humanidade, assim como a aprovar um embargo às armas ao Governo sírio. As autoridades da Síria devem, por seu lado, assegurar o acesso ilimitado, sem quaisquer restrições, a todo o país da Comissão Internacional Independente de Inquérito, assim como a todos as organizações e agências monitoras de direitos humanos, incluindo a Amnistia Internacional.

 

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