20 Fevereiro 2014

Centenas de milhares de mulheres nepalesas carregam um fardo a que o mais básico respeito pelos direitos humanos de acesso à saúde sexual e reprodutiva as pouparia. Em vez disso, devido à generalizada e sistemática discriminação de género no país, sofrem de uma condição clínica que provoca dores enormes e as torna incapazes de cumprirem as mais simples tarefas rotineiras, amiúde sendo até ostracizadas pelas famílias e comunidades, atesta novo relatório divulgado esta quinta-feira pela Amnistia Internacional.

O prolapso uterino, condição extremamente debilitante em que o útero descai da sua posição normal para o canal vaginal, tem génese na discriminação de género que limita seriamente a capacidade das mulheres e raparigas no Nepal de tomarem decisões sobre a sua saúde sexual e reprodutiva. Muito duras condições de trabalho, casamentos e gravidezes em idade precoce e um número elevado de filhos, todos são fatores que contribuem para a existência e agravamento desta condição clínica.

“Este é um assunto urgente de direitos humanos. A incidência generalizada no prolapso uterino no Nepal deriva da enraizada discriminação de que mulheres e raparigas são vítimas no país e que os sucessivos governos não conseguiram resolver de forma capaz”, sustenta a diretora do Programa de Género, Identidade e Sexualidade da Amnistia Internacional, Madhu Malhotra.

São centenas de milhares de mulheres que “estão a sofrer desnecessariamente”, sublinha esta perita. “Os governos não mais fizeram do que dar alguns passos simbólicos para resolver esta situação, sem adotarem quaisquer medidas concretas para reduzir os fatores de risco para as mulheres e raparigas no Nepal”.

O relatório divulgado esta quarta-feira, 20 de fevereiro e intitulado “Unnecessary Burden: Gender discrimination and uterine prolapsed in Nepal” (Um Fardo Desnecessário: A discriminação de género e o prolapso uterino no Nepal), assenta numa extensa pesquisa no terreno, incluindo entrevistas com mulheres, raparigas e homens, ativistas dos direitos da mulher, peritos médicos e responsáveis governamentais.

Em sofrimento desde os 20 anos

O prolapso uterino é um problema global de saúde que tem uma prevalência especial em países como o Nepal, onde a discriminação de género é muito elevada e o acesso aos cuidados de saúde bastante limitados. Estimativa das Nações Unidas sugere que 10% das 13.6 milhões de mulheres nepalesas sofrem daquela condição clínica – e este número pode mesmo ser mais alto em algumas regiões do país.

Ao contrário do que acontece na maior parte do mundo, em que o prolapso uterino é mais comum entre as mulheres idosas, muitas mulheres nepalesas desenvolvem-no quando ainda têm por volta de 20 anos. Esta condição causa dores enormes, tornando impossível desempenhar tarefas de elevada exigência física ou carregar pesos como são frequentemente obrigadas a fazer. Muitas sofrem penoso desconforto apenas por se sentarem ou andarem.

A par disto, o prolapso uterino provoca também grave estigma social. Muitas vezes, as mulheres são ostracizadas ou tidas como “preguiçosas” pelos familiares e as comunidades quando estão a sofrer dores que as impedem de fazer o trabalho que delas é esperado. A pesquisa da Amnistia Internacional apurou que as mulheres afetadas pro esta condição não conseguem ou hesitam em obter assistência médica, muitas têm vergonha em sequer falar sobre as dores que sentem.

Kopila, uma mulher de 30 anos da zona ocidental do Nepal, teve o primeiro filho aos 18 anos, e sofre de prolapso uterino desde que teve o quarto filho, aos 24 anos. O marido impede-a de obter apoio clínico e é obrigada a cumprir uma série de tarefas extremamente exigentes a nível físico tanto durante a gravidez como logo após os partos.

“Comecei a sentir dores nas costas e no estômago e não aguentava estar em pé, nem estar sentada, nem fazer nenhuma das tarefas que era esperado eu fazer. Quando tenho de fazer esforços físicos, sinto dores lancinantes no baixo abdómen e nas costas. Quando espirro o meu útero sai para fora”, contou Kopila.

São muitas as causas clínicas do prolapso uterino: ter filhos em idade precoce, ter muitos filhos em curtos períodos de tempo, nutrição desadequada, falta de acesso a técnicos de saúde competentes durante o parto e a imposição de trabalho físico durante ou logo após o nascimento dos filhos.

Mas, no cerne do problema está a persistente discriminação de mulheres e raparigas a que nunca foi dada solução pelos sucessivos governos no Nepal.

As mulheres e raparigas no país veem muito simplesmente ser-lhes negado o controlo sobre os seus corpos e sobre as suas vidas. Muitas não têm uma palavra a dizer se e quando casam, se e quando têm filhos, se recorrem ou não a contracetivos, nem quantos filhos terão. A decisão de terem acesso a cuidados de saúde de qualidade durante a gravidez não está, de resto, nas suas próprias mãos.

A discriminação também põe as mulheres e raparigas em risco de sofrerem violência doméstica, incluindo a violação dentro do casamento. O prolapso uterino torna frequentemente as relações sexuais dolorosas, mas tanto mulheres como homens descreveram à Amnistia Internacional que as mulheres não podem recusar-se a ter sexo com os maridos.

Responsáveis governamentais chutam responsabilidades de uns para outros

As organizações da sociedade civil nepalesa, especialmente os grupos de direitos da mulher, trabalham há anos para tornar esta questão uma prioridade junto dos sucessivos governos. Isto conduziu mesmo a uma decisão do Supremo Tribunal do Nepal, em 2008, onde é expressamente indicado que a elevada taxa de incidência do prolapso uterino no país constitui uma violação dos direitos reprodutivos, e ordenado ao Governo a adoção de medidas que resolvam a situação.

Até à data, porém, os esforços de sucessivos governos no país para estabelecer a prevenção do prolapso uterino e limitar a discriminação de género ficaram muito aquém do que é necessário.

As políticas de saúde reprodutiva e maternal em vigor não abordam todos os fatores de risco e são ineficazes no que toca à discriminação de género que lhes está subjacente. As políticas que existem são, aliás, fracamente postas em prática, se o são de todo.

Falta uma estratégia abrangente de prevenção do prolapso uterino. Uma proposta, que inclui alguns elementos de prevenção, permanece em espera para discussão e adoção por parte das autoridades desde 2008 – o que constitui um indicador de uma chocante ausência de consciencialização por parte das entidades governamentais.

Estes atrasos e falta de urgência em solucionar o problema reflete também a ausência de coordenação e vontade política entre os ministérios competentes nesta matéria, os quais sem exceção se revelaram avessos a assumirem responsabilidades na prevenção do prolapso uterino, nas muitas entrevistas conduzidas pela Amnistia Internacional.

Os esforços do Governo têm-se centrado sobretudo em disponibilizar cirurgias – predominantemente histerectomias (remoção parcial ou total do útero) – para os casos de estado avançado de prolapso uterino. Isto é uma abordagem limitada e que não faz o que é necessário para evitar a ocorrência daquela condição clínica.

“O Nepal precisa urgentemente de um plano abrangente para prevenir o prolapso uterino de forma a que menos mulheres e raparigas tenham de sofrer com esta condição. Os ministérios têm de parar de passar a bola de uns para os outros e assumir responsabilidades por algo que afeta centenas de milhares de pessoas”, insta Madhu Malhotra. A diretora do Programa de Género, Identidade e Sexualidade da Amnistia Internacional sublinha que apesar de o país “ter atravessado uma crise política prolongada, tal não pode servir de desculpa para [as autoridades] não agirem”.

O novo Governo, liderado pelo primeiro-ministro Sushil Koirala, que tomou posse no passado 10 de fevereiro, “tem agora a oportunidade de dar ao prolapso uterino a atenção que este assunto exige”, defende ainda Madhu Malhotra, a qual frisa que “o primeiro passo deve ser o de reconhecer publicamente que esta é uma questão de direitos humanos”.

“Qualquer plano de prevenção tem de incluir medidas eficazes para combater a discriminação de género, e garantir que as mulheres e raparigas sabem o que é esta condição clínica e o que a provoca, e que têm o poder efetivo de tomarem decisões sobre as suas próprias vidas. As mulheres e raparigas do Nepal estão prontas para esta mudança que porá fim ao facto de lhes ser negado controlo sobre os seus corpos, sobre a sua saúde e vida”, conclui.

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