18 Outubro 2016

Milícias paramilitares e forças governamentais no Iraque têm cometido graves violações de direitos humanos, incluindo crimes de guerra, através de tortura, detenções arbitrárias, desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais de milhares de civis que conseguiram fugir de zonas do país sob o controlo do grupo armado autodesignado Estado Islâmico (EI), é exposto em novo relatório da Amnistia Internacional.

Este relatório – intitulado “’Punished for Daesh’s crimes’: Displaced Iraqis abused by militias and government forces” (“Punidos pelos crimes do Daesh”: iraquianos deslocados sofrem abusos às mãos das milícias e forças governamentais) e publicado esta terça-feira, 18 de outubro – documenta as terríveis represálias de que estão a ser alvo os civis em fuga de território controlado pelo grupo armado e alerta para os riscos enormes de ocorrerem mais violações de direitos humanos em larga escala conforme se desenrola a ofensiva militar para recuperar a cidade de Mossul.

A investigação para este relatório assenta em entrevistas feitas a mais de 470 pessoas que estiveram detidas, testemunhas e familiares de civis mortos, sujeitos a desaparecimento forçado ou detenções arbitrárias, assim como a responsáveis governamentais, ativistas, trabalhadores de agências humanitárias e outros.

“Depois de terem conseguido escapar-se aos horrores da guerra e da tirania do EI, os árabes sunitas no Iraque são alvo de ataques de vingança brutais às mãos de milícias e das forças governamentais, e são punidos por crimes cometidos por aquele grupo”, frisa o diretor de Investigação e Advocacy da Amnistia Internacional para a região do Médio Oriente e Norte de África, Philip Luther. “O Iraque está atualmente a enfrentar muito reais e mortais ameaças de segurança por parte do EI, mas não há justificação nenhuma para execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçados, tortura e detenções arbitrárias”, prossegue o perito.

Philip Luther alerta que “com o início da ofensiva para a recaptura de Mossul [na segunda-feira, 17 de outubro], é crucial que as autoridades iraquianas tomem medidas para garantir que estes abusos chocantes não se repetem”. “E os países que apoiam os esforços militares de combate ao EI no Iraque têm de mostrar que não continuarão a ignorar estas violações de direitos humanos”, insta ainda.

O relatório destaca como se generalizaram os ataques de vingança e a discriminação contra os árabes sunitas que são tidos como suspeitos de cumplicidade com os crimes cometidos pelo EI ou de prestarem apoio ao grupo armado. Muitas destas pessoas foram obrigadas a fugir durante grandes operações militares em 2016 por todo o Iraque, incluindo de Faluja e áreas circundantes (na região de Anbar), de Al-Sharqat (região de Salah-Din), de Hawija (região de Kirkuk) e de em redor de Mossul (região de Ninewa).

As milícias xiitas predominantemente envolvidas nos abusos, conhecidas como Unidades Populares de Mobilização, gozam desde há muito do apoio das autoridades iraquianas, que lhes prestam apoio financeiro e fornecem armas. Estas milícias foram oficialmente designadas como parte integrante das forças iraquianas em fevereiro de 2016.

A responsabilidade do Governo do Iraque nestas violações de direitos humanos não pode ser ignorada e os países que apoiam ou de alguma forma participam no esforço militar em curso de combate ao EI no Iraque têm de encetar uma monitorização rigorosa para garantir que qualquer assistência ou equipamento providenciado não contribui para esses mesmos abusos.

Raptos, execuções e tortura em larga escala

A investigação da Amnistia Internacional documentada neste relatório revela que crimes de guerra e outras graves violações de direitos humanos foram cometidos predominantemente por milícias xiitas e provavelmente também por forças governamentais iraquianas durante as operações de retoma de Faluja e área circundante do controlo do EI em maio e junho de 2016.

Num dos mais chocantes incidentes, pelo menos 12 homens e quatro rapazes da tribo Jumaila que fugiram de Sijir, a norte de Faluja, foram executados extrajudicialmente depois de se terem entregado a um grupo de homens que envergavam uniformes militares e da polícia federal, a 30 de maio. Os homens e os rapazes mais velhos foram separados das mulheres e das crianças antes de serem alinhados e mortos a tiro. Pelo menos outros 73 homens e rapazes da mesma tribo tinham sido capturados dias antes e continuam desaparecidos.

As milícias também raptaram, torturaram e mataram homens e rapazes da tribo Mehemda que tinham fugido de Saqlawiya, outra vila a norte de Faluja. A 3 de junho passado, cerca de 1 300 homens e rapazes foram capturados e três dias depois mais de 600 deles transferidos para a tutela de responsáveis locais em Anbar com marcas patentes de tortura nos corpos.

Sobreviventes entrevistados pelos investigadores da Amnistia Internacional declararam que foram mantidos em detenção numa quinta abandonada, espancados com vários objetos, incluindo pás, e que lhes foi negada comida e água. Um destes sobreviventes contou que 17 seus familiares continuam desaparecidos, incluindo o sobrinho de 17 anos; outro familiar morreu sob detenção, aparentemente devido à tortura que sofreu.

“Havia sangue nas paredes… Bateram-me e aos outros com tudo o que lhes vinha às mãos, barras de metal, canos, cabos… Pisavam-nos com as botas. Insultavam-nos e disseram que era a paga pelo massacre de Speicher [em referência ao Campo Speicher, antiga base militar norte-americana em Tikrit, onde cerca de 1 700 cadetes xiitas foram executados sumariamente num ataque, em 2014, reivindicado pelo EI]… Vi duas pessoas morrerem mesmo em frente aos meus olhos”, reportou esta testemunha.

Um comité local de investigação criado pelo governador de Anbar concluiu que foram mortas 49 pessoas capturadas em Saqlawiya – executadas a tiro ou queimadas ou torturadas até à morte – e que outras 643 permanecem desaparecidas. O Governo anunciou a abertura de investigações a este incidente e que foram feitas detenções, mas não prestou nenhuma informação detalhada sobre os resultados desses inquéritos nem sobre quem foi detido.

Os raptos e execuções em larga escala perto de Faluja estão longe de serem incidentes isolados. Por todo o Iraque, milhares de homens e rapazes sunitas que fugiram de zonas sob o controlo do EI foram sujeitos a desaparecimento forçado pelas forças de segurança iraquianas e milícias aliadas. A maior parte desapareceu depois de se entregarem a forças pró-governamentais ou serem capturados nas suas casas, em campos de deslocados internos, em postos de controlo ou nas ruas.

De acordo com um deputado local, desde finais de 2014, membros das Brigadas Hezbollah raptaram e submeteram a desaparecimento forçado pelo menos dois mil homens e rapazes no posto de controlo de Razzaza, na zona de fronteira entre as províncias de Anbar e de Karbala.

“As [milícias] Al-Hashd levaram os nossos homens dizendo que era a paga [pelos abusos cometidos pelo EI]”, reportou aos investigadores da Amnistia Internacional “Salma” (nome fictício para proteção de identidade da testemunha), cujo marido foi capturado no posto de controlo de Razzaza com dois primos em janeiro de 2016, quando fugiam de território sob o controlo do EI.

“As autoridades iraquianas, cuja cumplicidade e inação face a abusos generalizados estão a contribuir para o atual clima de impunidade, têm de refrear as milícias e deixar muito claro que estas graves violações não são toleradas. E têm de investigar imparcial e independentemente as alegações de tortura, de desaparecimentos forçados e de execuções extrajudiciais”, exorta Philip Luther. “Fracassar em fazê-lo permitirá a continuação do ciclo de abusos, de repressão e de injustiça e faz temer seriamente pela segurança dos civis que se encontram em Mossul”, avalia ainda o diretor de Investigação e Advocacy da Amnistia Internacional para a região do Médio Oriente e Norte de África.

Tortura e abusos sob detenção

Todos os homens e rapazes que fogem de zonas sob o controlo do EI e que são considerados como tendo idade para combater (entre cerca os 15 e os 65 anos) são sujeitos a rastreios de segurança pelas autoridades iraquianas e do governo da semiautónoma região do Curdistão, para determinar se têm ligações ao grupo armado.

Mas este processo não é transparente e frequentemente cheio de falhas. Algumas pessoas são libertas ao fim de dias, outras acabam por ser transferidas para a tutela das forças de segurança e mantidas presas durante semanas ou mesmo meses em condições horríveis, sem acesso a familiares nem ao mundo exterior, e sem serem apresentadas em tribunal.

Este novo relatório revela também que membros das forças de segurança e das milícias torturam e infligem maus-tratos aos detidos em instalações onde são feitos os rastreios, em locais de detenção não oficiais sob tutela das milícias e ainda em instalações controladas pelos ministérios da Defesa e do Interior nas províncias de Anbar, de Bagdad, de Diyala e de Salah-Din.

Antigos detidos reportaram aos investigadores da Amnistia Internacional que foram suspensos em posições de desgaste físico durante longos períodos, sujeitos a choques elétricos, brutalmente espancados e ameaçados de que as mulheres das suas famílias seriam violadas. Muitos contaram terem sido torturados para “confessarem” ou prestarem informações sobre o EI e outros grupos armados.

Testemunhas que estiveram sob detenção das forças de segurança curdas (a Asayish, agência de segurança e de serviços secretos do Governo Regional do Curdistão) em Dibis, Makhmur e em Dohuk, localidades da região do Curdistão do Iraque, contaram terem sido também submetidos a tortura e outros maus-tratos.

Um homem descreveu ter sido torturado numas instalações sob o controlo das forças armadas e dos serviços secretos iraquianos perto da aldeia de Hajj Ali, em junho de 2016, onde mais de 50 pessoas estavam encarceradas numa só divisão e eram espancadas repetidas vezes: “Bateram-me com um cabo grosso nas solas dos pés. Vi outro detido ser queimado com um cigarro. A um rapaz de uns 15 anos deitaram cera quente em cima. Queriam que confessássemos sermos Daesh [palavra usada localmente em referência ao EI]”.

Os tribunais iraquianos têm o historial de fundamentar condenações de arguidos em “confissões” obtidas sob coação em casos de acusações graves e em julgamentos flagrantemente injustos – e frequentemente resultando numa sentença à pena de morte. Em 2016 foram registadas já 88 execuções no Iraque, na maioria em casos de acusações relacionadas com terrorismo; dezenas de sentenças de morte foram proferidas este ano e cerca de 3 000 pessoas estão nos corredores da morte das prisões iraquianas.

Descobertas partilhadas com autoridades iraquianas

As descobertas documentadas neste relatório foram partilhadas com as autoridades do Iraque e do Governo Regional do Curdistão a 21 de setembro. Até à data não foi recebida nenhuma resposta pela Amnistia Internacional da parte das autoridades iraquianas; as autoridades curdas reagiram negando, em grande parte, o que foi apurado na investigação da organização de direitos humanos.

Dezenas de milhares de iraquianos foram obrigados a fugir das suas casas pelas forças governamentais iraquianas e pelas Peshmerga (forças militares do aparelho de segurança do Governo Regional do Curdistão), assim como pelas milícias, desde meados de 2014. Muitos ficam impossibilitados de regressar às suas casas, alegadamente por razões de segurança, ou enfrentam restrições arbitrárias e discriminatórias sobre a sua liberdade de deslocação. Frequentemente estas pessoas são confinadas a campos, com escassas perspetivas de conseguirem ganhar sustento ou acederem a serviços essenciais.

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