13 Fevereiro 2009

Realizou-se no passado dia 9 de Fevereiro, na Escola Superior de Comunicação Social, a apresentação de um estudo sobre a “Mutilação Genital Feminina em Portugal”, encomendado pela Amnistia Internacional Portugal. O estudo, elaborado por Sandra Piedade no âmbito da sua tese de mestrado em Psicologia Social e das Organizações (pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa), incidiu sobre as motivações, a prática e as sequelas da Mutilação Genital Feminina (MGF), não só as de ordem física, mas também as de ordem psicológica. Houve ainda uma tentativa de perceber até que ponto esta prática existe em Portugal e como é que os profissionais de saúde a encaram.
 

Devido à ausência da autora deste estudo do país, este foi apresentado pela sua orientadora, Carla Moleiro, que explicou que a MGF está profundamente enraizada em cerca de 28 países africanos, mas também no Médio Oriente, na Ásia, na Austrália, na América e na Europa, onde esta tradição tem chegado através das comunidades imigrantes. Acrescente-se que a Mutilação Genital Feminina compreende todos os procedimentos que envolvem a remoção parcial ou total da genitália externa feminina ou outros danos aos órgãos genitais femininos. No lançamento do estudo, foram ainda apresentados os métodos utilizados para a sua realização e as suas principais conclusões.

Para tentar perceber esta cultura e tradição, foram entrevistadas mulheres mutiladas. Todas consideram haver consequências graves e dificuldade na inclusão de mulheres que não se submetem à mutilação genital, pois “a recusa implica lidar com um grande nível de discriminação e segregação”, referiram. Isto porque, em vários países e culturas, este é um ritual tradicional da passagem das raparigas à idade adulta, que as torna puras e preparadas para o casamento. Sem isso, as “mulheres ficam sem voz”, referiram algumas das entrevistadas. Por tudo isso, mais de 130 milhões de mulheres foram já submetidas a esta prática, sem anestesia, nem esterilização e com recurso a instrumentos rudimentares.

Depois de realizada a Mutilação Genital, as mulheres correm o risco de morte imediata ou infecções, hemorragias, complicações durante o parto, lesões físicas e traumas psicológicos. Carla Moleiro referiu haver efectivamente diferença entre as mulheres mutiladas e as mulheres não mutiladas. “São registadas algumas doenças do foro psicológico: sumarização, ansiedade, medo e algumas fobias específicas”. Consequências com as quais, segundo o estudo, os profissionais de saúde portugueses não estão preparados para lidar, pois todos os entrevistados demonstraram ter pouca formação ou contacto com esta realidade.

A questão legal

Sónia PiresSónia Pires, do Grupo de Juristas da Amnistia Internacional, esteve presente no lançamento do estudo para apresentar um parecer jurídico da organização sobre a Mutilação Genital Feminina e a sua criminalização em Portugal. Em primeiro lugar, é importante referir que à luz da lei penal portuguesa, esta prática é punível com pena de prisão entre 2 a 10 anos, uma vez que, segundo o artigo 144.º da revisão ao Código Penal de 4 de Setembro de 2007, é considerada ofensa à integridade física agravada.

Assim, e no seguimento do que tem sido defendido por várias personalidades, será necessária a tipificação da MGF como crime autónomo? A este nível, a jurista e membro da direcção da Amnistia Internacional Portugal, referiu que a única preocupação poderia ser o facto de, muitas vezes, existir o consentimento das vítimas. Porém, como a Mutilação Genital ofende a cláusula dos bons costumes, as pessoas que a praticam nunca poderiam ficar defendidas por este facto, acrescentou. “Assim, concluímos que não faz sentido autonomizar a prática da MGF como crime, porque as vítimas estão devidamente protegidas”.

Para além disto, e apesar desta prática ser crime em Portugal e noutros países da Europa, foi referido durante o lançamento do estudo que é comum nas comunidades imigrantes o envio das raparigas para os seus países de origem, por forma a serem submetidas à Mutilação Genital Feminina, contornando assim a penalização da lei portuguesa. Em alguns países europeus, têm sido criadas normas legais que permitem inspeccionar todos os menores que saem para países onde a MGF é prática, no entanto, Sónia Pires acrescentou que esta é uma invasão grave da vida privada. Assim, o Grupo de Juristas da Amnistia Internacional concluiu que é preciso um estudo mais aprofundado sobre esta questão.

Da penalização à prevenção

A Associação para o Planeamento Familiar (APF) é uma das organizações que em Portugal mais se tem dedicado a esta temática da MGF, na sequência de um estudo realizado em 2000 pela Universidade de Gent onde ficou provado que as comunidades imigrantes em Portugal também tinham esta prática ou costume. A partir daqui, foi desenvolvido um novo estudo, que culminou na constituição, em 2007, de um grupo inter-sectorial que teve como mentor Jorge Lacão, Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros. Este grupo concebeu um Programa de Acção para a Eliminação da MGF, a ser aplicado até 2010.
Alice Frade

O plano defende uma acção através do advocacy,o termo usado para descrever diferentes formas de construir apoio político, público e financeiro para um tema ou causa específica.  “O nosso objectivo é eliminar estas práticas no espaço de uma geração, tendo noção de que esta é uma prática profundamente enraizada” referiu Alice Frade, representante da APF, que pertence ao grupo inter-sectorial, acrescentando haver quatro medidas a adoptar de forma a erradicar a MGF: “sensibilizar, prevenir, apoiar e integrar”.

Ibraima BaldéTambém presente na conferência, Ibraima Baldé, membro da associação guineense Uallado Folei, considera que “esta prática não tem nada a ver com qualquer religião. São usos e costumes. É mais uma forma de os homens se defenderem do adultério pois, sem prazer sexual dificilmente as mulheres praticam adultério”. Refere ainda que, a festa em si – do ritual de passagem à idade adulta – é muito bonita sendo só pena ser manchada pela mutilação.

Hoje em dia existe também o Fanado Alternativo, que se resume a uma festa não se chegando a efectuar qualquer mutilação, mas cuja prática não tem sido bem aceite na maior parte dos países. A erradicação da MGF implica a mudança das políticas legislativas que têm acontecido em Portugal, mas “é importante que venha de baixo, da população”, conclui Carla Moleiro.  

Conheça aqui o estudo sobre “A MGF em Portugal”, bem como o Programa de Acção para a sua eliminação.A pedido do grupo de trabalho intersectorial, a AI Portugal escreveu comentou e fez sugestões relativamente a este plano de acção. Conheça aqui a opinião da AI Portugal.   

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