13 Outubro 2020

Edney da Cunha Samias é um indígena Kukami-Kukamiria de quase 40 anos que vive na Amazónia brasileira. Os Kukami-Kukamiria habitam várias regiões da floresta, do alto Rio Solimões à região urbana de Manaus. Também há comunidades na Colômbia e no Peru. Escolhido pelo seu tio para substituí-lo na liderança dos Kukami-Kukamiria, Edney aprendeu cosmologia com os anciãos da comunidade e foi ensinado a preservar a cultura, as tradições e a medicina do seu povo. Hoje, a região onde vive está ameaçada pela desflorestação, grilagem de terras e garimpo ilegal.

Um perigo que Edney não poderia ter previsto era a COVID-19. A pandemia está a ter um impacto devastador sobre os Kukami-Kukamiria, que têm um dos índices de mortalidade mais altos entre os povos indígenas brasileiros. A sua comunidade já perdeu 58 membros. Entre estes estão o pai, um avô, tios e primos de Edney. “É sofrimento por todos os lados”, disse recentemente à Amnistia Internacional.

Para os povos indígenas, a morte de um ancião significa menos uma “biblioteca” para consultar, menos um professor para ensinar a língua materna, menos um orientador para guiar os mais jovens pela vida. Parte da memória viva da etnia e da identidade de uma comunidade indígena perde-se para sempre.

 

“Os nossos anciãos são sagrados. Não é apenas uma pessoa que morre, é a nossa história e a nossa cultura”

Milena Kokama, vice-presidente da Federação do Povo Indígena Kukami-Kukamiria do Brasil, Peru e Colômbia

 

 

E quando esse ancião ou anciã nem sequer é reconhecido como indígena pelo sistema de saúde e administrativo brasileiro, a dor é ainda mais profunda.A Amnistia Internacional receia que as autoridades brasileiras estejam a negar a alguns Kukami-Kukamiria o reconhecimento da identidade indígena no seu último documento oficial: a certidão de óbito.Em vez de identificar os falecidos como indígenas, algumas certidões de óbito referem-nos simplesmente como “pardos”.

Os navegadores portugueses começaram a usar esta palavra para descrever os indígenas no século XVI. Na prática, o uso do termo nega a verdadeira identidade indígena da pessoa.

O pai de Edney, Guilherme Padilha Samias, recebeu o diagnóstico de COVID-19 há alguns meses. Quando foi internado em Tabatinga, no Amazonas, para receber atendimento de urgência, foi identificado como pardo. Graças a um médico que o conhecia pessoalmente, foi possível registá-lo corretamente.

Edney achou que o problema tivesse sido resolvido, mas quando o pai morreu, a 14 de maio, descobriu que tinha sido identificado como pardo na certidão de óbito emitida pelo hospital. “Fiquei chateado. Disse que não ia aceitar porque o meu pai não é pardo, o meu pai é indígena. Fiquei lá das 7h ao meio-dia, discutindo com os funcionários do hospital para que fosse registado como indígena”.

Depois de identificado como indígena, Guilherme  – corajoso líder dos guerreiros Kukami-Kukamiria e portador de conhecimentos e tradições ancestrais do seu povo – foi enterrado e no caixão de madeira escura lia-se a inscrição “Guilherme Padilha Samias, indígena”.

 

 

Discriminação contra os Kukami-Kukamiria

Nem todos os casos são resolvidos deste modo. Otaviano Batista Samias nasceu em casa, no ano de 1953, na comunidade de Canavial, na região do alto Rio Solimões. Viveu toda a vida como Kukami-Kukamiria e tinha documentos oficiais que comprovavam a sua identidade indígena. Em maio, ficou infetado com COVID-19 e morreu no hospital Delphina Aziz, em Manaus, aos 67 anos de idade. A certidão de óbito identificava-o como pardo, negando-lhe cruelmente o reconhecimento formal como indígena.

Entre maio e julho de 2020, a comunidade Kukami-Kukamiria registou pelo menos cinco denúncias de discriminação junto do Ministério Público Federal, em Tabatinga e Manaus. Uma das queixas indicava: “Há um desconhecimento das unidades de saúde no trato com povos indígenas, negando a nossa identidade. De facto, o Hospital Militar de Tabatinga tem insistido em registar os nossos parentes como pardos na declaração de óbito. O que é uma clara subnotificação dos casos”.

O Ministério Público Federal (MPF), em Tabatinga, publicou duas recomendações em maio a pedir que as unidades de saúde identifiquem corretamente pessoas indígenas. O MPF está a investigar e, em setembro, após a primeira denúncia, solicitou mais informações.

Os padrões internacionais de direitos humanos e as leis brasileiras definem que a identidade indígena é baseada na autoidentificação. A FUNAI – Fundação Nacional do Índio, órgão do governo brasileiro que trata das questões ligadas aos povos indígenas, disse à Amnistia Internacional, em agosto, que “não cabe ao Estado reconhecer quem é ou não é indígena, mas garantir o respeito pelos processos individuais e sociais de construção e formação de identidades étnicas”.

A declaração da FUNAI é semelhante ao que o procurador da República no Estado do Amazonas, Fernando Merloto Soave, disse à Amnistia Internacional: “Para o Sistema Único de Saúde, basta a autoidentificação simples. Quando a identidade indígena não é reconhecida, isso é desfavorável até para os registos epidemiológicos”.

O uso do termo “pardo” em vez do termo específico “indígena” não apenas apaga a identidade individual e coletiva dos Kukami-Kukamiria, como também faz com que o impacto da COVID-19 sobre a comunidade não seja corretamente registado nas estatísticas oficiais, contribuindo para a subnotificação entre os povos indígenas do Brasil. Segundo dados oficiais (consultados a 2 de setembro de 2020), 392 indígenas tinham morrido infetados com COVID-19, mas a APIB (3 de setembro de  2020), totalizava 779.

A discrepância deve-se também ao facto de o governo federal monitorizar apenas os casos registados em territórios indígenas homologados. Quem vive em cidades não é incluído.

 

Identidade negada

De acordo com Edney da Cunha Samias, algumas famílias Kukami-Kukamiria abriram mão da sua identidade indígena quando os familiares foram enterrados como pardos, preferindo abandonar a sua etnia para que os descendentes não tivessem de sofrer mais. “As famílias ficaram muito, muito revoltadas porque jamais achariam que iam passar por isso, de ter a sua própria identidade negada”, explicou.

“Só queremos morrer com dignidade. Morrer como um indígena Kukami-Kukamiria”

Edney da Cunha Samias

Abrir mão da identidade significa que os Kukami-Kukamiria deixam para trás a língua, a cosmologia e cosmovisão, a cultura e as tradições, os conhecimentos ancestrais gastronómicos, a construção de casas, a caça e os cuidados da saúde que têm por base os recursos encontrados na floresta. É uma separação dolorosa com impacto não só nos indivíduos, mas também em toda a comunidade, agora e nas próximas gerações.

Ao não permitir que a autoidentificação determine o reconhecimento como indígena em documentos oficiais, as autoridades brasileiras ameaçam apagar a identidade dos Kukami-Kukamiria.

Mapa da região © Google Earth

 

 

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