11 Fevereiro 2019

 

  • Militares bloqueiam acesso a comida e bombardeiam povoações
  • Operação envolve unidades responsáveis por atrocidades anteriores
  • 5,200 civis deslocados desde Dezembro

Durante uma ofensiva iniciada após os ataques armados do Exército Rohingya de Arakan no início de Janeiro, as forças de segurança de Myanmar bombardearam povoações e bloquearam o acesso de civis a alimentos e assistência humanitária no Estado de Rakhine, disse hoje a Amnistia Internacional. As forças de segurança também usaram legislação vaga e repressiva para deter civis naquela zona.

“Estas últimas operações são mais um lembrete de que os militares de Myanmar operam sem qualquer consideração pelos direitos humanos. Bombardear aldeias desertas e reter recursos alimentares é injustificável sob quaisquer circunstâncias”, disse Tirana Hassan, diretora do Gabinete de Resposta a Crises na Amnistia Internacional.

A Amnistia Internacional recebeu relatos segundo os quais, em semanas recentes, divisões do exército envolvidas em atrocidades contra os Rohingya em Agosto e Setembro de 2017 foram novamente mobilizadas para o Estado de Rakhine.

“Apesar da condenação internacional das atrocidades dos militares de Myanmar, todas as provas sugerem que estes estão descaradamente a cometer abusos ainda mais graves,” disse Tirana Hassan.

“Apesar da condenação internacional das atrocidades dos militares de Myanmar, todas as provas sugerem que estes estão descaradamente a cometer abusos ainda mais graves”

Tirana Hassan

Estas violações surgem após uma Missão de Averiguação dos Factos da ONU ter apelado à investigação e responsabilização penal, à luz da lei internacional, de oficiais superiores de Myanmar, por crimes contra a população Rohingya no Estado de Rakhine, e contra minorias étnicas no Estado de Kachin e na região norte do Estado de Shan.

 

© AFP/Getty Images

Ataques do Exército de Arakan

A 4 de Janeiro de 2019 – Dia da Independência de Myanmar – um grupo armado pertencente à etnia Rakhine, conhecido como o Exército de Arakan, levou a cabo ataques coordenados contra postos policiais no norte do Estado de Rakhine, que terão morto 13 agentes da polícia. O Exército de Arakan combateu os militares como parte de uma aliança de grupos armados no norte de Myanmar. Nos últimos anos, ao deslocar a sua atenção para os Estados de Chin e de Rakhine, entrou esporadicamente em confronto com as respetivas forças de segurança.

Dias após os ataques de 4 de Janeiro, o governo civil de Myanmar instruiu os militares para que lançassem uma operação destinada a “esmagar” o Exército de Arakan, ao qual o porta-voz governamental se referiu como sendo uma “organização terrorista”. Desde então, os militares deslocaram significativos recursos e tropas na região. Segundo ativistas locais e relatos mediáticos , estes incluem soldados da 99ª Divisão de Infantaria Ligeira (DIL). A Amnistia Internacional e outras entidades implicaram aquela divisão nas atrocidades cometidas contra os Rohingya em 2017 e contra minorias étnicas no norte do Estado de Shan em 2016.

Segundo as Nações Unidas, mais de 5,200 homens, mulheres e crianças foram deslocados pelos combates em curso por volta de 28 de Janeiro. Estas pessoas são esmagadora e predominantemente pertencentes às minorias étnicas budistas, incluindo os povos Mro, Khami, Daingnet e Rakhine.

A Amnistia Internacional entrevistou telefonicamente 11 pessoas afetadas pelos combates, bem como responsáveis humanitários e ativistas locais no Estado de Rakhine. Muitos dizem ter fugido das suas aldeias depois de as forças de segurança terem bombardeado as redondezas ou colocado restrições à alimentação.

“Durante décadas, os militares operaram com base no mesmo brutal manual de instruções e devem ser responsabilizados. O Conselho de Segurança da ONU deve urgentemente remeter esta situação ao Tribunal Penal Internacional,” disse Tirana Hassan.

© Private

Ataques ilícitos

Três pessoas de Auk Pyin Nyar, uma povoação predominantemente da etnia Mro no município de Tha Lu Chaung, região de Kyauktaw, disseram à Amnistia Internacional que dois projéteis de artilharia ou morteiro explodiram a uma centena de metros da sua aldeia, a 21 de Dezembro de 2018. Cedo na manhã seguinte, enquanto fugiam, os aldeões escutaram mais explosões de projéteis na vizinhança.

“Ouvi as explosões de artilharia pesada, as pessoas até ficaram estonteadas”, recordou um agricultor com 64 anos de idade.

Outro agricultor da mesma aldeia, que regressou uns dias depois para recolher alguns pertences, disse que depois de as pessoas terem fugido foi roubado dinheiro das casas. Ele culpou os soldados de Myanmar, que na altura foram vistos no interior da aldeia e nos arredores.

Um homem com 24 anos de idade, de uma povoação em que predomina a etnia Mro, no município de Tha Yet Pyin, região de Buthidaung, descreveu igualmente ter ouvido projéteis de artilharia ou morteiro a explodirem ao redor da sua aldeia a 13 de Janeiro de 2019. Os residentes fugiram para o mosteiro local, mais tarde, no mesmo dia, para um campo informal de pessoas deslocadas na povoação de Done Thein, no vizinho município de Kin Taung. O homem voltou à aldeia quatro dias depois, para recolher os documentos de identificação da família, e viu danos em algumas casas da povoação, bem como na escola local. Ele disse que foi retirado dinheiro de algumas casas, numa altura em que as forças de segurança de Myanmar controlavam o acesso à localidade.

“Estes ataques ilícitos estão a semear o medo em muitas povoações. Como resultado direto, centenas – se não milhares – de civis foram deslocados das suas casas.”

Tirana Hassan

Relatos de meios de comunicação detalharam vários outros incidentes. The Irrawaddy e a Radio Free Asia relataram que um rapaz de sete anos, chamado Naing Soe, ficou gravemente ferido quando um projétil de artilharia explodiu perto de sua casa em Tha Mee Ha, município de Rathedaung, por volta de 26 de Janeiro de 2019. A Radio Free Asia disse que os militares dispararam sobre a povoação depois de soldados terem ativado um engenho explosivo improvisado (EEI) nas redondezas. Ambos os órgãos noticiosos reportaram que os militares pilharam bens da povoação. The Irrawaddy reportou também que, a 16 de Janeiro de 2019, dois irmãos com 18 e 12 anos de idade foram gravemente feridos quando um projétil de artilharia explodiu perto da sua casa, no distrito de Maungdaw.

Embora a Amnistia Internacional não tenha conseguido determinar de forma definitiva as responsabilidades dos militares de Myanmar por cada ataque individual no qual foram feridos civis ou destruída propriedade civil, estas táticas ilícitas são há muito um traço distintivo das operações militares contra grupos armados. Num relatório de Junho de 2017, a Amnistia Internacional documentou detalhadamente bombardeamentos indiscriminados pelos militares, durante as suas operações no Estado de Kachin e no norte do Estado de Shan, que mataram e feriram civis, deslocando milhares.

“Estes ataques ilícitos estão a semear o medo em muitas povoações,” disse Tirana Hassan. “Como resultado direto, centenas – se não milhares – de civis foram deslocados das suas casas.”

 

© Andrew Stanbridge / Amnesty International

Restrições no acesso a comida e assistência

Uma mulher com 34 anos de idade, de uma povoação remota da etnia Mro, na região de Kyauktaw, disse à Amnistia Internacional que os soldados e a polícia de Myanmar restringiram a quantidade de arroz que podia ser trazida para a sua aldeia. Os aldeães já antes se debatiam com a falta de bens alimentares básicos, pois os combates que irromperam ali perto, em Dezembro de 2018, impediram-nos de fazer a colheita do arroz ou do bambú, uma colheita rentável essencial.

À medida a que a situação piorava, um grupo de pessoas da aldeia, incluindo esta mulher de 34 anos, dirigiram-se a uma esquadra de polícia e à barreira militar perto da povoação de Taung Min Ku Lar para solicitarem permissão para transportarem arroz para a aldeia. Ela afirmou que as forças de segurança lhes disseram que podiam trazer um máximo de seis pyi (uma unidade equivalente a um recipiente de 2.56 litros) de arroz, e que precisariam de uma carta de autorização das forças de segurança.

“Conversámos entre nós sobre a impossibilidade de continuarmos a viver na aldeia,” disse ela à Amnistia Internacional. “Não queríamos mudar-nos para um campo [de pessoas deslocadas], mas não podíamos comercializar o que encontrávamos na floresta, e não conseguíamos mantimentos suficientes.”

A aldeia esvaziou-se, tal como outras aldeias vizinhas que enfrentavam circunstâncias semelhantes.

Um ativista local disse à Amnistia Internacional ter ajudado a obter cartas de recomendação da polícia para permitir às pessoas que se deslocassem em torno da cidade de Kyauktaw, mas as autoridades ainda estão a impedir as pessoas de transportarem comida, alegando que isso se destina a limitar fontes de abastecimento ao Exército de Arakan.

As autoridades de Myanmar impuseram igualmente outras restrições ao acesso humanitário no Estado de Rakhine. A 10 de Janeiro, o governo do Estado de Rakhine proibiu todas as agências da ONU e organizações humanitárias internacionais, exceto o Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV) e o Programa Alimentar Mundial (PAM), de operarem em cinco regiões afetadas pelo conflito. Muitas organizações tiveram de parar a sua assistência humanitária, minando a resposta de emergência e os esforços de socorro numa das regiões mais pobres e subdesenvolvidas.

Em conjunto com o CICV e o PAM, as autoridades do Estado de Rakhine forneceram algum dinheiro e assistência em géneros a pessoas deslocadas pelos combates, mas os destinatários descrevem-no como insuficiente e inconsistente. Vários responsáveis humanitários disseram que as restrições parecem ser também uma forma de manter o olhar internacional afastado das operações militares.

“As autoridades de Myanmar estão deliberadamente a jogar com as vidas e os sustentos de civis. Como vimos uma e outra vez, a prioridade dos militares não é proteger as pessoas apanhadas no fogo cruzado, mas antes ocultar os seus abusos da comunidade internacional,” afirmou Tirana Hassan.

© Andrew Stanbridge / Amnesty International

Uso de leis abusivas e possível detenção arbitrária

As forças de segurança de Myanmar parecem igualmente estar a utilizar leis abusivas para deterem e acusarem civis por alegadamente apoiarem o Exército de Arakan, gerando preocupações relativas a detenção arbitrária e potenciais maus-tratos.

Nos dias que se seguiram aos combates de 13 de Janeiro de 2019 no município de Tha Yet Pyin, a polícia deteve um chefe de aldeia da etnia Mro, Aung Tun Sein, e pelo menos outros 10 homens, para interrogatório. Eles foram posteriormente libertados, contudo, vários dias depois, Aung Tun Sein foi convocado para um posto da Polícia Fronteiriça (Border Guard Police – BGP). Ele está detido desde então, estando atualmente na prisão de Buthidaung.

Num relatório  de Junho de 2018, a Amnistia Internacional documentou tortura e outros tratamentos desumanos contra homens e rapazes Rohingya mantidos em postos da BGP no norte do Estado de Rakhine.

Mais de uma semana após a detenção de Aung Tun Sein, os membros da sua família e outros líderes locais não tinham ainda conseguido determinar o seu paradeiro. Os militares tê-lo-ão acusado de informar o Exército de Arakan sobre os movimentos dos militares. Uma pessoa da aldeia disse que Aung Tun Sein enfrentava acusações à luz da Lei de Associação Ilegal, uma legislação vaga e repressiva utilizada em zonas de conflito pelas autoridades de Myanmar para processar ativistas, jornalistas e outras pessoas.

Ativistas locais e relatos mediáticos sugerem que as detenções arbitrárias e o uso de leis vagas e repressivas têm sido lugar-comum durante a mais recente operação militar no Estado de Rakhine. The Irrawaddy reportou que 26 pessoas foram presas a 4 de Fevereiro, por alegada associação ilegal com o Exército de Arakan. Relatou igualmente que cerca de 30 administradores de povoações submeteram cartas de demissão em Janeiro, temendo ser falsamente acusados por associação ilegal.

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