- Antigo governador da província de Kivu do Norte da República Democrática do Congo e dois outros oficiais superiores do exército devem ser investigados por possíveis crimes contra a humanidade cometidos durante a repressão de uma manifestação na cidade de Goma.
- Pelo menos 56 pessoas foram mortas e mais de 80 ficaram feridas em 30 de agosto de 2023.
- Relatório descreve em pormenor a forma como as forças de segurança se lançaram numa onda de assassinatos, abrindo fogo contra manifestantes que exigiam a saída da Missão de Estabilização das Nações Unidas na RDC.
O antigo governador da província de Kivu do Norte da República Democrática do Congo (RDC) e dois outros oficiais superiores do exército devem ser investigados por possíveis crimes contra a humanidade cometidos durante a repressão de uma manifestação na cidade de Goma, na qual pelo menos 56 pessoas foram mortas e mais de 80 ficaram feridas em 30 de agosto de 2023, afirmou a Amnistia Internacional num novo relatório.
O relatório Operação “Keba”: Massacre pelo Exército na cidade de Goma, na República Democrática do Congo descreve em pormenor a forma como as forças de segurança se lançaram numa onda de assassinatos, abrindo fogo contra manifestantes que exigiam a saída da Missão de Estabilização das Nações Unidas na RDC (MONUSCO, na sigla em francês). A maioria dos manifestantes eram seguidores do grupo religioso e político Fé Natural Judaica e Messiânica para as Nações (FNJMN), coloquialmente apelidados de “Wazalendo” (“patriotas”, em suaíli).
A Amnistia Internacional reconstruiu os locais, o momento e a sequência do massacre e identificou três oficiais do exército que deveriam ser investigados individualmente — e, com provas suficientes, processados — por possíveis crimes contra a humanidade. Estes indivíduos são o antigo governador militar do Kivu Norte, tenente-general Constant Ndima Kongba; o coronel Mike Kalamba Mikombe, que era o comandante da Brigada de Armas Combinadas (BIA) da Guarda Republicana do Kivu Norte; e o major Peter Kabwe Ngandu, que era o comandante do Batalhão de Forças Especiais da Guarda Republicana em Goma, servindo sob as ordens do coronel Mikombe.
“Este massacre não foi o resultado de um erro de alguns soldados que intervieram inesperadamente depois de os seguidores “Wazalendo” terem apedrejado um agente da polícia, como afirmaram as autoridades. Foi o resultado de uma série de ações deliberadas e planeadas pelas autoridades congolesas, depois de a MONUSCO ter pedido explicitamente que proibissem o protesto”, disse Tigere Chagutah, diretor regional da Amnistia para a África Oriental e Austral.
“Este massacre foi o resultado de uma série de ações deliberadas e planeadas pelas autoridades congolesas, depois de a MONUSCO ter pedido explicitamente que proibissem o protesto”
Tigere Chagutah
“O Presidente Felix Tshisekedi deve suspender imediatamente o tenente-general Constant Ndima Kongba e o major Peter Kabwe Ngandu do exército, enquanto se aguarda uma investigação. O coronel Mike Kalamba Mikombe, que foi condenado por ligação com os assassínios, deve também ser investigado por outros alegados crimes e, se houver provas suficientes contra ele, ser processado”.
“Além disso, a Amnistia Internacional exige que o Departamento de Operações de Paz da ONU inicie rapidamente um inquérito independente sobre o papel da MONUSCO, incluindo a sua liderança — e divulgue as suas conclusões”.
Operação ‘Keba’
A Amnistia Internacional conduziu a investigação entre setembro de 2023 e outubro de 2024. A organização examinou os locais dos crimes, entrevistou mais de 70 pessoas, incluindo sobreviventes, testemunhas oculares e suspeitos de crimes, e analisou registos judiciais e documentos oficiais confidenciais. O Laboratório de Provas da Amnistia também verificou dezenas de vídeos e fotografias do massacre, bem como imagens de satélite, para corroborar as conclusões.
A 19 de agosto de 2023, o líder dos Wazalendo, Efraimu Bisimwa, escreveu ao presidente da Câmara de Goma para o notificar formalmente sobre um protesto planeado, tal como exigido pela lei congolesa. O protesto, afirmou, tinha como objetivo exigir a partida da MONUSCO e de outras forças estrangeiras.
A 21 de agosto, o Gabinete da MONUSCO em Goma escreveu ao governador militar Ndima, manifestando a sua preocupação com os protestos planeados e exortando as autoridades a proibi-los de imediato “dada a sua natureza odiosa e violenta”. A Amnistia Internacional analisou a maior parte das declarações e mensagens da FNJMN no período que antecedeu o dia 30 de agosto de 2023, mas não encontrou provas de incitamento à violência.
Quatro dias após o pedido da MONUSCO, Ndima informou o exército e a polícia de que os Wazalendo constituíam uma séria ameaça para Goma e ordenou-lhes que “tomassem todas as medidas” para proteger as instalações da MONUSCO e a cidade.
Os comandantes da polícia e do exército no Kivu Norte elaboraram então planos operacionais, obtidos pela Amnistia, com instruções específicas para que a BIA do coronel Mikombe “destruísse elementos inimigos isolados” a 30 de agosto. Estas tropas estariam no centro da execução do massacre.
A matança
A violência começou por volta das 3 horas da manhã de 30 de agosto de 2023, dia do protesto planeado. Uma unidade de comandos, aparentemente liderada pelo comandante das Forças Especiais de Goma, major Kabwe, invadiu uma estação de rádio da FNJMN numa zona residencial a noroeste de Goma. Os soldados amarraram doze pessoas, incluindo o líder dos Wazalendo, Bisimwa, levaram-nas para o exterior e abriram fogo, matando seis pessoas, incluindo a jornalista Tabita Fabiola, de 44 anos, e ferindo pelo menos dez.
Entretanto, segundo testemunhas oculares, a dois quarteirões de distância, uma patrulha da polícia disparou contra outros seguidores dos Wazalendo que se dirigiam para a estação de rádio, matando pelo menos um e ferindo outros. Alguns dos Wazalendo capturaram um agente da polícia e levaram-no para o seu templo, a cerca de dois quilómetros de distância.
Por volta das 6 da manhã, a polícia disparou contra um grupo de seguidores Wazalendo que saía do templo, matando um dos filhos de Bisimwa, líder dos Wazalendo, Uwezo Milele. Após este incidente, um grupo de seguidores Wazalendo apedrejou o agente da polícia capturado. Pouco depois, centenas de seguidores dos Wazalendo reuniram-se no exterior do templo para protestar.
Às 7 horas da manhã, soldados congoleses fortemente armados, principalmente das Forças Especiais da Guarda Republicana, posicionaram-se em massa à volta do templo. Os manifestantes não portavam armas, tal como foi estabelecido pela investigação da Amnistia e por dois julgamentos militares congoleses.
Durante 30 minutos, dois oficiais militares tentaram persuadir os Wazalendo a não marcharem. De repente, o Coronel Mikombe da BIA interveio e interrompeu as conversações. De acordo com cinco testemunhas, incluindo os dois oficiais militares, Mikombe ordenou aos soldados que abrissem fogo.
Dezenas de pessoas morreram no massacre que se seguiu. Imagens verificadas pela Amnistia mostram rajadas do que é provável serem tiros contra a multidão e soldados a recolher, arrastar e carregar corpos para camiões do exército. Testemunhas descreveram soldados a limpar poças de sangue e pedaços de corpos e a prender seguidores de Wazalendo e outros durante horas após o fim do tiroteio. Antes de partirem, os soldados saquearam e queimaram o templo.
Uma vítima disse à Amnistia: “Sou um sobrevivente de guerra… Mas nunca vi nada assim. Acho que nunca mais vou recuperar do que os meus olhos viram naquele dia”.
As autoridades afirmaram que 56 pessoas tinham sido mortas, mas um relatório confidencial da ONU a que a Amnistia teve acesso indica que o número de mortos foi de 102, “incluindo 90 homens, oito mulheres e quatro rapazes, e mais 80 feridos”. A Amnistia tem recebido relatos consistentes de pelo menos mais dez desaparecidos.
As autoridades empilharam os corpos no hospital militar de Goma, alguns ao ar livre, e impediram as famílias de os identificar ou enterrar durante três semanas, até que os cadáveres estivessem muito decompostos.
“Sou um sobrevivente de guerra… Mas nunca vi nada assim. Acho que nunca mais vou recuperar do que os meus olhos viram naquele dia”
Vítima do massacre
No âmbito dos inquéritos prometidos pelas autoridades, não foram efetuadas quaisquer investigações balísticas, recolhas de ADN ou autópsias, incluindo em 27 corpos oficialmente não identificados.
No rescaldo do massacre, o chefe da MONUSCO pareceu justificar a reação das autoridades ao protesto, afirmando que as forças de segurança “de acordo com a sua responsabilidade primária pela segurança no país… tentaram impedir a manifestação que ia ser violenta”. O governador Militar Ndima assumiu publicamente o mérito da operação e enviou mensagens de felicitações às forças de defesa e de segurança.
Justiça deficiente
Entre 1 de setembro e 10 de outubro de 2023, tiveram lugar em Goma dois julgamentos militares distintos, mas nenhum deles permitiu nem a responsabilização, nem justiça eficazes para evitar futuros massacres. Estão a decorrer recursos em ambos os julgamentos.
O primeiro processo julgou 116 seguidores do Wazalendo e outros por insurreição e pelo assassínio do agente da polícia. O julgamento ficou muito aquém dos padrões de justiça. A acusação coletiva de mais de 100 pessoas por um homicídio pareceu ser uma tentativa de responsabilizar os aderentes da FNJMN pela violência de 30 de agosto de 2023, em vez de investigar e processar verdadeiramente o homicídio do agente da polícia.
O segundo processo julgou seis guardas republicanos, incluindo dois oficiais de alta patente, por assassinarem e ferirem seguidores do Wazalendo. No entanto, a investigação foi apressada e incompleta. Não estabeleceu o alcance total dos crimes cometidos em 30 de agosto e apenas incluiu 109 vítimas, embora o número oficial de mortos e feridos seja muito superior.
“As autoridades da RDC devem reabrir as investigações sobre este massacre, em conformidade com as normas regionais e internacionais, para estabelecer a verdade e responsabilizar todos os envolvidos”
Tigere Chagutah
O tribunal considerou que o coronel Mikombe ordenou às tropas da Guarda Republicana que disparassem e condenou-o por homicídio, tentativa de homicídio e destruição de armamento. O coronel Mikombe foi demitido das forças armadas, multado e condenado à morte. A Amnistia Internacional opõe-se à pena de morte em todos os casos.
Três outros soldados foram condenados a dez anos de prisão por assassínio e tentativa de assassínio.
O governador militar Ndima e o major Kabwe não foram julgados.
Ndima, que era o principal comandante militar do Kivu Norte durante o massacre, continua a ser general apesar de ter sido suspenso como governador. Kabwe é agora o comandante interino das Forças Especiais no Kivu Norte, uma posição mais elevada do que antes do massacre.
“Esta não é a primeira vez que o exército congolês tem como alvo — e comete crimes hediondos — a população civil que é suposto proteger. As vítimas merecem verdade e justiça, não punição coletiva”, disse Tigere Chagutah.
As autoridades da RDC devem reabrir as investigações sobre este massacre, em conformidade com as normas regionais e internacionais, para apurar a verdade e responsabilizar todos os envolvidos. O Presidente Tshisekedi deve proibir a Guarda Republicana, incluindo as Forças Especiais, de participar em operações de aplicação da lei e especificar as circunstâncias excecionais em que as forças armadas podem participar na aplicação da lei, em conformidade com as normas internacionais.
“O Gabinete do procurador do Tribunal Penal Internacional deve considerar a possibilidade de examinar os assassinatos de 30 de agosto de 2023 em Goma como parte das investigações em curso sobre a situação no leste da RDC”.
Examinando o massacre
Em resposta às conclusões preliminares da Amnistia, o governador Ndima disse que não há provas de que tenha ordenado os tiroteios ou “que estes acontecimentos infelizes tenham ocorrido”. Afirmou ter ordenado imediatamente investigações e detenções na sequência do massacre, mas não apresentou provas que sustentassem as suas afirmações. Também não respondeu às perguntas da Amnistia sobre a sua mensagem oficial a incitar as operações militares, as suas ações no período que antecedeu o massacre, o seu conhecimento do massacre à medida que este se desenrolava, ou as suas justificações e mensagens de felicitações posteriores.
Através do seu advogado, o coronel Mikombe disse que estava no templo de Wazalendo “por pura coincidência”, depois de outro coronel o ter parado e pedido para o acompanhar. Alegou ter ordenado o fim do tiroteio depois de este ter começado. A Amnistia não encontrou provas que sustentem estas alegações.
O major Kabwe não respondeu às conclusões preliminares da Amnistia, enviadas por carta a 26 de julho.
O subsecretário-geral da ONU para as Operações de Paz respondeu às conclusões e perguntas da Amnistia dizendo que a MONUSCO fez o seu pedido às autoridades depois de ter recebido informações indicando que o protesto planeado “representava riscos significativos tanto para as forças de manutenção da paz como para os residentes em Goma”. Disse que o pedido da MONUSCO às autoridades congolesas incluía um apelo para evitar a perda de vidas e sublinhava o respeito pelos direitos humanos, incluindo a liberdade de expressão e de reunião pacífica.
As cartas de direito de resposta da Amnistia ao Presidente Tshisekedi, ao ministro da Justiça e ao ministro da Defesa, entre outros, continuam sem resposta.
O relatório contém mais pormenores sobre as conclusões da Amnistia Internacional e as respostas dos acusados.