2 Dezembro 2015

O elevado número de jovens da Eritreia que fogem ao recrutamento, que funciona na prática por tempo indefinido naquele país, está a avolumar ainda mais a crise global de refugiados. Estas pessoas têm o direito a aceder a proteção internacional, sustenta a Amnistia Internacional em novo relatório publicado esta quarta-feira, 2 de dezembro.

“Just Deserters: Why indefinite national service in Eritrea has created a generation of refugees” (Apenas desertores: Como o recrutamento por tempo indefinido na Eritreia criou uma geração de refugiados) demonstra que, apesar de as autoridades do país garantirem que o serviço militar se limita a 18 meses, este prolonga-se na verdade por tempo indefinido, frequentemente durando várias décadas. O recrutamento engloba rapazes e raparigas mesmo com apenas 16 anos, assim como idosos, e chega a ter contornos de trabalho forçado.

Na tentativa de evitarem o recrutamento nacional, estas pessoas tornaram-se no terceiro maior grupo de refugiados daqueles que tentam chegar à Europa. Porém, e apesar desta realidade, os Estados europeus estão a rejeitar cada vez mais requerimentos de asilo de cidadãos oriundos da Eritreia.

“A situação que os recrutas enfrentam na Eritreia é desesperada e expõe a falta de verdade nos argumentos feitos por alguns países de que a maior parte dos eritreus a chegarem às suas fronteiras são migrantes económicos”, explica a vice-diretora da Amnistia Internacional para a África Oriental, Corno de África e Grandes Lagos, Michelle Kagari. “Estas pessoas – e muitas são menores – são refugiados em fuga de um sistema que tem os contornos de trabalho forçado a uma escala nacional e que lhes rouba o direito a fazerem escolhas sobre aspetos essenciais das suas vidas”, prossegue a perita da organização de direitos humanos.

Assente em entrevistas com 72 eritreus que fugiram do país natal desde meados de 2014, este relatório expõe as condições terríveis que os recrutas enfrentam na Eritreia e os métodos brutais usados pelos militares contra aqueles que tentam escapar-se ao recrutamento. Algumas das pessoas ouvidas pela Amnistia Internacional declararam terem sido mantidas no serviço durante mais de dez anos, ou mesmo 15 anos, antes de conseguirem fugir do país. Outros tiveram pais e maridos no sistema por mais de 20 anos.

Em alguns casos, vários membros de uma mesma família e de diferentes gerações estão no serviço militar ao mesmo tempo e separados geograficamente, o que lhes nega o direito ao gozo da vida familiar. Uma mulher de 18 anos contou aos investigadores da Amnistia Internacional que a chamada a um novo recrutamento para mulheres mais velhas se traduziu para ela em ter todos os seus familiares diretos a cumprir serviço ou a terem de fugir do país para o evitar.

Alguns antigos recrutas descreveram terem passado vários anos sem lhes ser dada autorização para terminarem o serviço militar. Aqueles a quem não é dada autorização de saída e o fazem mesmo assim ficam em risco de penas de prisão – e, se não são encontrados, familiares seus acabam por ser condenados a cumprir a pena no seu lugar.

Este sistema de recrutamento nacional na Eritreia tem um impacto particularmente negativo nas crianças. Muitas abandonam a escola muito cedo para evitar serem recrutadas e as raparigas são casadas em idades muito jovens na esperança de que isso as torne inelegíveis para o serviço. Outras crianças ainda, cujos pais ficam longos tempos sujeitos ao serviço militar, tiveram de assumir as responsabilidades financeiras pelas suas famílias.

O serviço militar no país não só é muito prolongado e decorre por tempo indeterminado mas também é extremamente mal pago.

Todos os antigos recrutas entrevistados pelos investigadores da Amnistia Internacional asseveraram ser impossível sustentarem as suas famílias com o salário que recebem. O salário mensal bruto de base de uma pessoa no serviço nacional na Eritreia é de 450 a 500 nakfa (entre 40 e 45 dólares).

Quem é apanhado a tentar fugir ao serviço militar, incluindo a saída do país, é detido, frequentemente por períodos indeterminados e em condições chocantes. Estas pessoas são mantidas em celas subterrâneas ou em contentores comerciais. Esse mesmo destino é o que mais provavelmente espera aqueles que tentaram chegar a outros países e viram os seus requerimentos de asilo serem negados, na Europa e em outras regiões do mundo. Há na Eritreia um risco generalizado de detenções arbitrárias e de tortura e outros maus-tratos para todos os que tentam obter asilo e acabam forçados a regressar ao país natal.

E tentar atravessar a fronteira terrestre com a Etiópia comporta o risco de ser alvo de tiros pelas autoridades fronteiriças eritreias.

O Governo da Eritreia defende que o sistema de serviço nacional é necessário como mecanismo de autodefesa do país, devido à duradoura hostilidade existente com a vizinha Etiópia, mas nem todos os que são recrutados cumprem serviço militar. Muitos são alocados a tarefas civis, incluindo a agricultura, construção, ensino e outras tarefas civis. Apesar do que é dito pelas autoridades, de que o período de serviço nacional se restringe a 18 meses, a investigação da Amnistia Internacional demonstra que não é isso que acontece.

“O serviço nacional continua a decorrer por tempo indefinido para um elevado número dos recrutas, e às vezes dura décadas. Pessoas mais velhas chegam a ser recrutadas uma segunda vez, e aqueles que tentam escapar-se são detidos arbitrariamente e mantidos presos sem lhes ser deduzida nenhuma acusação”, frisa Michelle Kagari.

A vice-diretora da Amnistia Internacional para a África Oriental, Corno de África e Grandes Lagos aponta que “a Eritreia está a perder toda a sua juventude”. “As crianças fazem-se ao caminho para outros países, frequentemente sem estarem acompanhadas dos pais, para se escaparem a vidas de trabalhos forçados perpétuos e baixíssimos salários, sem acesso à educação nem a oportunidades de trabalho. E o facto de escolherem esta via de fuga da Eritreia, encetando viagens tão pouco seguras e precárias, rumo a supostos refúgios seguros, reflete a gravidade das violações de direitos humanos que enfrentam caso fiquem no país natal”.

A Amnistia Internacional exorta a Eritreia a pôr fim a este sistema de serviço nacional por tempo indefinido. A organização de direitos humanos insta também todos os países a reconhecerem que este mecanismo constitui uma violação de direitos humanos.

O chamado serviço nacional da Eritreia foi adotado em 1995 e requer que todos os maiores de 18 anos no país cumpram 18 meses. Mas, na prática, este sistema é estendido de forma indefinida no tempo para uma proporção muito significativa dos recrutados.

Acresce que na Eritreia não existe nenhuma provisão legal que contemple a objeção de consciência e permita aos recrutas optarem por um qualquer serviço civil em vez do serviço militar invocando objeções de natureza religiosa, ética ou de consciência.

Em 2014 e 2015, alguns países – incluindo o Reino Unido e a Dinamarca – entenderam que se tinham verificado melhoras na experiência vivida pelos recrutas no serviço nacional ao ponto de já não se considerar que aqueles que fogem da Eritreia por essa razão tenham direito a asilo. Em resultado desta política, no segundo trimestre de 2015 (entre 1 de abril e 30 de junho), o Governo britânico recusou em primeira instância 66% dos requerimentos de asilo apresentados por cidadãos eritreus.

 

Artigos Relacionados