15 Outubro 2018

EM RESUMO

  • Desapontante comunicado do Pentágono rejeita responsabilidades pelas vítimas civis.
  • Ataques da coligação destruíram 80% de Raqqa e mataram centenas de civis.
  • Investigação contínua da Amnistia Internacional revela provas de dezenas de novas vítimas civis.

A repetida recusa da coligação liderada pelos Estados Unidos da América (EUA) em admitir – e em investigar adequadamente – a chocante escala de mortes de civis e de destruição que provocou em Raqqa é uma bofetada na cara dos sobreviventes que tentam reconstruir as suas vidas e a sua cidade, sustenta a Amnistia Internacional ao assinalar-se um ano passado da ofensiva lançada para expulsar daquela região o grupo armado autoproclamado Estado Islâmico (EI).

A 17 de outubro de 2017, ao fim de uma feroz batalha de quatro meses, as Forças Democráticas Sírias (SDF) – forças curdo-sírias aliadas no terreno – anunciaram ter vencido o EI, o qual usara civis como escudos humanos e que cometeu outros crimes de guerra na cercada Raqqa. O triunfo nesta batalha foi obtido com um terrível e elevado custo: quase 80% da cidade foi destruída e muitas centenas de civis mortos, a maioria nos bombardeamentos feitos pela coligação militar liderada pelos EUA.

Numa carta enviada à Amnistia Internacional, a 10 de setembro de 2018, o Departamento de Defesa norte-americano – cujas forças efetuaram a maior parte dos raides aéreos e todos os bombardeamentos de artilharia sobre Raqqa – deixou claro que não aceita qualquer responsabilidade pelas vítimas civis que os seus ataques causaram. A coligação liderada pelos EUA não pretende ressarcir os sobreviventes e familiares de quem foi morto em Raqqa e recusa-se a prestar mais informações sobre as circunstâncias dos bombardeamentos que mataram e feriram civis.

“É perturbante que o Pentágono nem sequer pareça disposto a apresentar desculpas pelas centenas de civis mortos na sua ‘guerra de aniquilação’ em Raqqa. Isto é um insulto para as famílias que – após terem sofrido a brutalidade do regime do EI – perderam entes amados na cataclísmica barragem de poder de fogo da coligação”, frisa o secretário-geral da Amnistia Internacional, Kumi Naidoo, acabado de regressar de uma visita a Raqqa.

“É perturbante que o Pentágono nem sequer pareça disposto a apresentar desculpas pelas centenas de civis mortos na sua ‘guerra de aniquilação’ em Raqqa. Isto é um insulto para as famílias que – após terem sofrido a brutalidade do regime do EI – perderam entes amados na cataclísmica barragem de poder de fogo da coligação.”

Kumi Naidoo, secretário-geral da Amnistia Internacional

O responsável da organização de direitos humanos nota que “um ano depois de a batalha ter terminado, os obstáculos à obtenção de justiça são ainda insuperavelmente elevados para as vítimas e para as suas famílias”. “É absolutamente condenável que a coligação [liderada pelos EUA] se negue a reconhecer o papel que teve na maior parte da perda de vidas que a batalha causou. É mesmo repugnante que, até no que é feita a admissão de responsabilidades, [a coligação] não aceite ter obrigações em relação às vítimas”, critica.

Informação sobre vítimas civis repleta de falhas

O falhanço da coligação liderada pelos EUA em cumprir os seus próprios compromissos de levar a cabo investigações no terreno sobre o impacto dos seus bombardeamentos é uma das razões porque a contabilização de vítimas civis que faz são tão duvidosamente baixas.

Antes da publicação do relatório da Amnistia Internacional “‘War of annihilation’: Devastating Toll on Civilians, RaqqaSyria” (“Guerra de aniquilação”: o custo devastador para os civis em Raqqa, Síria), em junho passado, a coligação reconhecera ter causado apenas 23 mortes de civis durante toda a ofensiva sobre Raqqa. E, de forma totalmente inacreditável, o Ministério da Defesa do Reino Unido continua a manter que as centenas de raides aéreos que fez contra Raqqa não causaram nenhuma vítima civil – uma improbabilidade estatística.

Após uma série de tempestuosas negações feitas por responsáveis militares e políticos, já no final de julho a coligação veio reconhecer muito discretamente que os seus ataques tinham afinal causado mais 77 mortos civis do que antes admitido – praticamente todos os que tinham sido documentados no relatório da Amnistia Internacional.

Apesar da admissão de responsabilidades naqueles casos – que representam um aumento de 300% em relação a informações anteriormente prestadas –, a coligação insiste em recusar-se a providenciar pormenores sobre as circunstâncias em que estes civis foram mortos.

“Obviamente que perante as centenas de civis mortos impõe-se fazer a pergunta sobre o que é que correu mal. Foi mau funcionamento das armas, deficiente recolha de informações ou essencialmente negligência?”

Kumi Naidoo, secretário-geral da Amnistia Internacional

“Obviamente que perante as centenas de civis mortos impõe-se fazer a pergunta sobre o que é que correu mal. Foi mau funcionamento das armas, deficiente recolha de informações ou essencialmente negligência? A coligação falhou em confirmar os alvos apropriadamente ou foi uma questão de má escolha das munições usadas? Estes detalhes são cruciais para determinar os factos e para avaliar a legalidade [dos bombardeamentos], assim como para aprender as lições necessárias de forma a evitar erros semelhantes no futuro, o que é fundamental para minimizar os danos para os civis – algo que constitui uma obrigação legal”, sublinha Kumi Naidoo.

Naquilo que descreveu como a sua “resposta definitiva” à Amnistia Internacional, o Departamento de Defesa dos EUA declarou que não se considera obrigado a esclarecer mais nenhumas perguntas sobre as circunstâncias e as razões inerentes aos ataques que mataram e feriram tantos civis.

Afirmações espúrias

O Departamento de Defesa norte-americano afirmou também de forma espúria que investigadores da Amnistia Internacional amplamente experimentados e peritos militares e legais não compreendem a lei internacional humanitária – as leis da guerra.

Foi mesmo sugerido que a Amnistia Internacional baseou o seu caso de prima facie (prova suficientemente sólida para permitir a consolidação de facto, a menos que refutada) na premissa de que as leis tinham sido violadas apenas nas mortes de civis. Com esta argumentação, o Departamento de Defesa escolheu ignorar provas que – nos casos documentados pela organização de direitos humanos – indicam que combatentes do EI não estavam presentes nos locais bombardeados em que os raides aéreos mataram e feriram civis, o que constitui uma parte essencial da análise. A Amnistia Internacional está convicta de que estas provas consolidam um caso de prima facie de que aqueles ataques violaram a lei internacional humanitária.

“A questão crucial que a nossa investigação coloca é a de saber se a coligação tomou todas as precauções necessárias para minimizar potenciais danos para os civis, como é exigido pelas leis da guerra. Apesar de a coligação se recusar a prestar essa informação, as provas que recolhemos mostram que não o fez”, avança Kumi Naidoo.

O secretário-geral da Amnistia Internacional reitera que “proteger os civis passa por bem mais do que fazer promessas e usar palavras bonitas”. “É algo que requer investigação proativa às vítimas civis, transparência e vontade em aprender com os erros cometidos e corrigir procedimentos que falham no dever de minimizar os danos para os civis. Requer igualmente que se reconheça a total escala dos danos causados e se proporcione às vítimas a possibilidade de obterem justiça, clarificação de responsabilidades e ressarcimento”, elenca.

“O secretário da Defesa [norte-americano] James Mattis argumentou que as forças dos Estados Unidos são ‘os bons’. Ora, ‘os bons’ cumpririam as leis da guerra e fariam tudo o que estivesse ao seu alcance para garantir que civis inocentes que sofrem devido às suas ações obteriam a justiça que merecem.”

Kumi Naidoo, secretário-geral da Amnistia Internacional

“O secretário da Defesa [norte-americano] James Mattis argumentou que as forças dos Estados Unidos são ‘os bons’. Ora, ‘os bons’ cumpririam as leis da guerra e fariam tudo o que estivesse ao seu alcance para garantir que civis inocentes que sofrem devido às suas ações obteriam a justiça que merecem”, considera ainda o secretário-geral da Amnistia Internacional.

Provas novas de um padrão mais amplo de vítimas civis

Perante a falta de um verdadeiro esforço por parte das forças da coligação liderada pelos EUA em investigarem, até à data, o impacto para os civis resultante da ofensiva que lançaram sobre Raqqa, a Amnistia Internacional continua a recolher mais provas que permitam determinar os padrões generalizados e amplos de vítimas civis naquela cidade da Síria.

Entre outras abordagens, tal é feito com base nas quatro investigações já feitas no terreno em Raqqa – a mais recente das quais realizada na semana passada – assim como na fiabilidade de peritos militares e na análise abrangente de perícia de imagens de satélite.

“Apesar de a coligação permanecer com a cabeça enfiada na areia, nós continuaremos a trabalhar no terreno e a usar todas as ferramentas que temos disponíveis para expor a extensão total das vítimas civis e para exigir justiça e o completo ressarcimento para as vítimas e familiares.”

Kumi Naidoo, secretário-geral da Amnistia Internacional

A Amnistia Internacional apurou recentemente detalhes de muitos mais casos que não tinham ainda sido documentados e em que ataques da coligação mataram civis em locais em cuja proximidade não se encontravam aparentemente nenhuns combatentes do EI à altura dos bombardeamentos. Aqui se incluem 20 civis das famílias Merbad e Al-Tadfi, em dois raides aéreos separados, um em junho e o outro em setembro de 2017.

A organização de direitos humanos fez ainda mais investigação à última de uma série de ataques por parte da coligação em que foram mortos 39 membros da família Badran e mais outros dez civis. A coligação admitiu anteriormente a responsabilidade na morte de 44 destas mortes e rejeitou as demais considerando-as “não credíveis”. Mas novos pormenores apurados pela Amnistia Internacional determinaram a data e o momento exato do último raide aéreo a 10 de setembro de 2017, em que foram mortos dois membros da família Badran e outros três civis, incluindo um homem de 70 anos que fora procurador-geral de Raqqa.

A Amnistia Internacional divulgará em breve os detalhes completos deste e de muitos outros casos documentados recentemente e que alcançam numerosas vítimas civis que continuam a não ser reconhecidas pela coligação.

“Apesar de a coligação permanecer com a cabeça enfiada na areia, nós continuaremos a trabalhar no terreno e a usar todas as ferramentas que temos disponíveis para expor a extensão total das vítimas civis e para exigir justiça e o completo ressarcimento para as vítimas e familiares”, assevera Kumi Naidoo.

  • 50 milhões

    50 milhões

    Pela primeira vez desde a II Guerra Mundial, mais de 50 milhões de pessoas foram obrigadas a abandonar as suas casas. A maior parte devido a conflitos armados. (ACNUR, 2014)
  • 12,2 milhões

    12,2 milhões

    No final de 2014, 12,2 milhões de sírios – mais de metade da população do país – dependiam de ajuda humanitária. (UNOCHA)

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