Diários de Angola
A JUVENTUDE E A EDUCAÇÃO PARA OS DIREITOS HUMANOS

23/10/2019

Chegámos ao último dia em Luanda.

O dia foi dedicado à juventude. De manhã organizámos um encontro para jovens ativistas de várias organizações e grupos de jovens de Luanda.

Desde jovens universitários, a estudantes do ensino secundário, a jovens desempregados que se manifestam e procuram trabalho digno, a grupos de jovens LGBTI+ que se veem numa situação de discriminação tão grave, que os ignora como se não existissem. Tínhamos 50 pré-inscrições. A adesão foi tão grande que cada jovem parece ter trazido outro. A participação e o entusiasmo foi tão grande que vieram quase em dobro.

O único problema foi o lanche, preparado para as inscrições que havia, mas ninguém ficou sem comer. A solidariedade e a partilha dizem-se, mas sobretudo, vivem-se.

Conheci e conversei com dois jovens daqui que me sensibilizaram muito, o Manuel e a Manuela (nomes fictícios), ele gay, ela lésbica. Disseram-me que não têm acesso à saúde adequadamente neste país que lhes nega a existência. Não são, por isso, considerados, nem as suas necessidades. Desabafaram que o governo, no passado, negou ajuda externa para implementar um programa de educação sexual, de saúde e de educação para os direitos humanos e contra a discriminação destas pessoas, porque afirmou que não existem gays em Angola e, por isso, não os contempla, não sendo necessários esses programas.

Ouvi ainda relatos de jovens que se manifestaram fez ontem poucos dias contra a falta de trabalho e, nessa manifestação pacífica, foram reprimidos com violência.

Mas a manhã não foi de constatações resignadas. Pelo contrário. Vimos nestes jovens muita garra, espírito de solidariedade, procura de soluções comuns para todas as pessoas.

Vi jovens que, como ativistas, se veem como construtores de uma sociedade nova e que, quando se manifestam, é para sonhar alto esse mundo e não para criticar ou reclamar com o que quer que seja. Uma reivindicação, se não apresenta soluções torna-se vazia. Foi isso que me ensinaram nestas horas intensas, onde vi os meus colegas das campanhas brilhar e trabalharem juntos como uma verdadeira equipa, juntos os do escritório do sul de África e o Paulo, que me acompanha a cada dia e a cada passo desde Lisboa até onde for preciso, assegurando-se que tudo acontece bem e nada falha nunca. Dão-se por inteiro, personificando uma entrega abnegada e bondosa. Nele e neles, recordo também a equipa que está em Portugal, sempre em apoio e que todos os dias se dedica intensamente e de forma muito profissional aos direitos humanos na Amnistia Internacional, que vão fazendo e confiando tudo o que lhes peço. Acreditam no que fazem e acreditam que fazemos parte de algo maior que o nosso contributo individual para o mundo. Com eles, connosco, os ativistas, os membros e os apoiantes da Amnistia Internacional que fazem tudo isto acontecer e que fazem com que o mundo, passo a passo fique mesmo melhor, sejam quais forem os contextos ou as dificuldades.

Tenho muito a agradecer, começando nas nossas famílias e às distâncias que suportam, a tantas pessoas que fazem o movimento da Amnistia Internacional cumprir-se a cada dia sendo nossos membros, ativistas, apoiantes e profissionais, todos a trabalhar para o mesmo.

Da parte da tarde seguimos para uma visita a uma escola num dos bairros mais pobres de Luanda. O bairro da Lixeira. Naquela zona erguia-se literalmente uma montanha de lixo. Com a guerra civil e a pobreza extrema que se vivia nas províncias, muitas pessoas fugiram para a capital do país e instalaram-se na lixeira, construíram as suas casas humildes sobre a lama e o lixo.

A escola que visitámos era dos Salesianos de Dom Bosco, contando com mais de 7 000 alunos e programas de ensino básico, medio, pré-universitário e profissional. Com o trabalho destes missionários, milhares de crianças e jovens eram capacitados para, pelo seu pé e inteligência, poderem sair da pobreza a que foram condenados à nascença.

Ao lado do bairro da Lixeira, fica o bairro da Boavista, que de boa vista só tem o nome, pois é um morro que dá para o mar e para os petroleiros que nele aportam. A pobreza é omnipresente se olharmos em quase todas as direções. Casas humildes, telhados de chapa de zinco, não há água corrente, nem sequer saneamento, e quando vem alguma chuva, as poças de água parada já se acumulam com o lixo e alguma lama. Daqui a alguns meses, com a época das chuvas em força e afastado o cacimbo, esta será a combinação ideal para o mosquito que mais pessoas mata no mundo através da malária.

A pobreza é omnipresente em quase todas as direções, menos numa. O monte de miramar, onde fica a residência do antigo presidente José Eduardo dos Santos. A proximidade do Miramar com a Lixeira e o bairro da Boavista fez-nos entorpecer as entranhas. Boavista e Miramar. Não distam mais de 400 metros um do outro. José Eduardo dos Santos com tudo o que ele significa e os mais pobres de entre os pobres. Tão perto. Tão longe.

Muitas casas já vêm sendo demolidas há vários anos e o Padre Aguinaldo, missionário salesiano, explicou-nos que pintam a soleira da porta a tinta vermelha para marcar as casas a demolir, para assim dar espaço a empreendimentos de luxo ou outras infraestruturas. As famílias são enviadas para pequenas casas sociais a mais de 50kms de distância, longe de todas as infraestruturas de saúde e educação que missionários e demais organizações não-governamentais criaram no local.

Amanhã seguimos cedo para o Lubango, onde vamos ter com as comunidades afetadas pelo desvio de terras comunitárias para dar lugar a fazendas comerciais particulares e fechadas.

À medida que os dias passam, vou cimentando ainda mais a convicção da importância e centralidade e essencialidade do nosso trabalho, da importância do esforço e compromisso de tantas pessoas que de que falei acima e que nos acompanham e apoiam.

Sei que os próximos dias serão duros. A realidade não vai dar tréguas e o sentido de justiça social terá de prevalecer sempre em nós, para que não desanimemos perante os desafios e os problemas de direitos humanos que vivemos no mundo.

Mesmo que às vezes me sinta sozinho e incapaz de fazer o que tem de ser feito diante de realidades tão avassaladoras, sei bem que não o estou. Somos tantas pessoas neste caminho. Somos tantas pessoas com esta convicção, entusiasmo e esperança.
A luta continua. O mundo muda, cada dia mais um pouco.

Coragem! Nunca duvidemos.

Pedro