Diários de Angola
TAMBÉM NÓS ÍAMOS À ESCOLA

24/10/2019

Madrugámos para partir para o Lubango. O dia foi, por isso, de logística. O voo foi tranquilo. A turbulência anunciada pelo piloto não se verificou e fomos sobrevoando Angola junto à costa até virarmos para leste e começarmos a descida.

Impressiona o imenso verde das montanhas que circundam esta região. E por entre as montanhas vão-se vendo vales sulcados pela água. De longe, não vejo a água a passar ou talvez ela já lá nem passe por se ter esquecido daquele caminho. Damos-lhe o nome de seca. O tempo do estio que com esperança queremos que termine rapidamente. Algumas nuvens pelo céu já disso vão dando sinal. A água é um bem escasso, mas por vezes parece que precisamos de lhe sentir a falta para percebermos o quão importante nos é.

Já a aterrar, uma mina a céu aberto e as máquinas em laboração. A riqueza dos países está à vista de todos, mas em vez de esta ser uma bênção, parece ser uma maldição.

No Lubango, a segunda maior cidade do país, o ar é diferente. Mais seco, mais quente, mais parecido com o nosso tempo de verão em Portugal.

Depois de nos instalarmos, foi tempo de reuniões de preparação para os próximos dias, foi tempo de nos abastecermos dos bens necessários para o que virá. A Tunda dos Gambos fica ainda longe daqui e a viagem será vagarosa. Em dia de trabalho mais reservado, fui conversando mais calmamente com o David, o nosso investigador e autor principal do relatório. Conheci-lhe um pouco da sua história pessoal e não pude deixar de me espantar com a sorte que tenho em chamar-lhe colega.

O David nasceu em Moçambique, ainda durante a guerra colonial, mas dela não se recorda porque era muito pequenino. Da guerra civil que lhe sucedeu lembra-se, e das três vezes que teve de escapar às forças militares que o queriam recrutar, a ele e a todas as crianças nessa altura.

Contou-me que, então jovem estudante, participava como costume aos sábados na limpeza da sua escola. Enquanto estava nessa tarefa, apareceu um camião de militares para o levar e aos seus colegas para fazerem deles militares também.

A segunda vez que isto aconteceu foi num dia de semana, quando estava na carrinha, a “chapa”, a caminho da escola. Um grupo de militares mandou parar a carrinha e entraram nela alguns. Disseram a todos os miúdos – foi assim que os chamaram – que se levantassem, saíssem e entregassem o bilhete de identidade. A partir daquele momento eram soldados. Os jovens disseram que estavam a caminho da escola e não podiam faltar. Os militares retorquiram-lhes que isso não lhes interessava, pois também eles estavam na escola quando foram recrutados.

O David voltou a escapar, essa e uma outra vez, até que terminado o secundário refugiou-se na África do Sul. Foi sozinho para ir estudar. O pai deu-lhe do melhor que tinha, um casaco grosso “made in Sarajevo” que aguentasse o frio. O David foi e estudou e anos mais tarde foi para o Canadá prosseguir estudos, até terminar o doutoramento. Hoje tenho o privilégio de caminhar com ele, e de estar ao lado dele enquanto ele está ao lado de quem mais precisa.

Que caminho David. Que orgulho pelo que estás a dar ao mundo.
Recolhemo-nos cedo. O cansaço já tomou o seu lugar.

Pedro