Diários de Angola
FOME, AINDA?

26-27/10/2019

Nos quimbos dos arredores da aldeia de Chiange, a cerca de 100 quilómetros do Lubango, setenta e seis famílias não têm o que comer. Os homens partiram para outros lugares. Uns ligam, ou tentam fazer com que chegue alguma mensagem, dando notícias suas ou procurando saber como estão as famílias, outros desapareceram e não dão mais sinal de vida. Nenhum consegue mandar dinheiro. Outros voltam com as peles do gado que não sobreviveu à seca e à falta de capim para comer, mesmo nos sítios longínquos que procuraram e onde estiveram.

Foram, por isso, e sobretudo, mulheres e crianças quem encontrámos nas aldeias.

As marcas de subnutrição são evidentes, sem mais diagnósticos. De braços delgados, de barrigas inchadas, crianças, recém-nascidos, mulheres, jovens mães ou idosas mostram-nos que no mundo (ainda que longe da nossa vista) há coisas que teimam não mudar. Os direitos humanos aqui parecem ganhar outra escala. A escala da incompreensão.

A Amnistia Internacional tem um programa que se chama “relief fund”. Um dos projetos mais diretos da organização, pois destina-se a ajuda e capacitação de emergência daqueles sobre quem trabalhamos e protegemos. Ao abrigo desse programa, levámos os carros cheios de sacos de 25 quilos de arroz, fuba, feijão, sal, óleo. Tudo isto suportado pelos apoiantes financeiros, anónimos doadores que partilham o pouco ou muito que podem para nos ajudar a existir e a fazer o nosso trabalho.

Nada disto durará muito tempo, mas alivia, enquanto não chove, enquanto o trabalho que estamos a fazer de investigação, advocacia e campanha de pressão pública não repõe justiça social a estas pessoas: as terras comunitárias têm de ser devolvidas para usufruto das comunidades e seu sustento, como sempre foi.

Não esperava encontrar ainda esta realidade de subnutrição, quinze anos depois de estar em Angola como voluntário no pós-guerra. Dezassete anos depois dessa mesma guerra ter terminado, já não há razão nenhuma, aceitável ou inaceitável, para que esta realidade persista.

Ao longo do dia fomos ouvindo agradecimentos. Em tempos de desespero como o que vimos, a gratidão quase nos causa mais dor e aflição de não conseguirmos ajudar ainda mais, como se fossem tantas as frentes de trabalho necessário, que às vezes nem sabemos para onde nos virar.

Aqui não há distância que possamos usar para nos proteger, a realidade entra-nos adentro a 360º, a toda a nossa volta.

Pedro