15 Junho 2016

Os planos da União Europeia (UE) em cooperar mais estreitamente com a Líbia sobre migrações têm o risco inerente de alimentar os já galopantes maus-tratos e detenções por períodos indefinidos e em condições horríveis de milhares de refugiados e migrantes naquele país do Magrebe, alerta a Amnistia Internacional na sequência de uma missão à Sicília e à Apúlia, em maio, de investigadores da organização de direitos humanos.

A UE anunciou no mês passado planos para prolongar a missão naval anti tráfico humano no Mediterrâneo – a Operação Sofia – por mais um ano, e para treinar, desenvolver as capacidades e partilhar informação com a Guarda Costeira líbia, na sequência de um pedido feito nesse sentido pelo Governo daquele país. Mas testemunhos recolhidos pelos investigadores da Amnistia Internacional vêm revelar abusos chocantes cometidos por agentes da Guarda Costeira e em centros de detenção de migrantes e refugiados na Líbia.

A equipa da Amnistia Internacional entrevistou 90 pessoas que sobreviveram à traiçoeira travessia marítima entre a Líbia e a Itália, incluindo pelo menos 20 refugiados e migrantes que descrevem incidentes em que guardas-costeiros dispararam contra ou agrediram pessoas que estavam a resgatar das águas, e também casos de tortura lancinante e outros maus-tratos em centros de detenção. Num dos casos reportados, uma patrulha da Guarda Costeira líbia não prestou ajuda a um barco cujo motor deixou de trabalhar, abandonando as cerca de 120 pessoas que se encontravam a bordo em vez de as resgatar.

“A Europa não devia sequer ponderar quaisquer acordos de cooperação sobre migrações com a Líbia se os mesmos resultam, direta ou indiretamente, em tão chocantes violações de direitos humanos. A UE tem mostrado repetidamente que quer impedir refugiados e migrantes de chegarem ao continente europeu a qualquer custo, com os direitos humanos a serem relegados para segundo lugar”, critica a vice-diretora interina da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África, Magdalena Mughrabi.

Esta perita frisa que “é claro que as capacidades de busca e salvamento da Guarda Costeira líbia têm de melhorar para resgatarem as pessoas do mar, mas a triste realidade agora é que os guarda-costeiros líbios estão a intercetar e a forçar milhares de pessoas a irem para centros de detenção onde sofrem tortura e outros abusos”. “É crucial que qualquer apoio prestado pela UE não alimente e perpetue as horríveis violações de direitos humanos das quais as pessoas de outras nacionalidades estão tão desesperadamente a tentar escapar na Líbia”, avança ainda.

A 7 de junho, a Comissão Europeia anunciou mais planos para alargar a cooperação e parcerias com uma série de países-chave terceiros na região fronteiriça à Europa para gerir os fluxos migratórios. A Líbia foi identificada como um dos países prioritários.

Apesar da violência e do estado sem lei em que a Líbia está imersa, com o reacender dos conflitos armados desde 2014, centenas de milhares de refugiados e migrantes – na maioria oriundos da África subsariana – continuam a viajar através daquele país, em fuga da guerra, de perseguição e de pobreza extrema em países como a Eritreia, a Etiópia, a Gâmbia, Nigéria e Somália, frequentemente na esperança de alcançarem a Europa. Outros vivem na Líbia há vários anos mas querem sair do país porque, sem proteção de nenhum Governo, vivem em medo constante de serem abordados, agredidos e roubados por grupos criminosos locais e mesmo pela polícia.

De acordo com os dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR, UNHCR na sigla em inglês), mais de 2 100 pessoas morreram na tentativa de fazerem a perigosa travessia marítima para a Itália só nos primeiros cinco meses de 2016. Mais de 49 000 sobreviveram à arriscada viagem até território italiano – praticamente todos foram resgatados das águas por forças navais europeias, por missões de organizações não-governamentais ou por navios mercantes.

Abusos cometidos pela Guarda Costeira líbia

Pelo menos 3 500 pessoas foram intercetadas no mar por guardas-costeiros líbios entre 22 e 28 de maio de 2016 e transferidos para centros de detenção.

Abdurrahman, de 23 anos e oriundo da Eritreia, relatou aos investigadores da Amnistia Internacional os abusos a que foi submetido quando o barco em que viajava, sobrelotado – estavam 120 pessoas na embarcação, com capacidade para 50 –, foi abordado por agentes da Guarda Costeira líbia em janeiro de 2016. “Obrigaram toda a gente a sair do barco e agrediram-nos com mangueiras de borracha e varas de madeira… depois alvejaram um homem num pé. Esse homem foi o último a sair do barco, por isso perguntaram-lhe onde estava a pessoa que pilotava a embarcação, e quando o homem disse que não sabia eles responderam ‘então isso quer dizer que és tu’ e dispararam contra ele”.

Outro cidadão eritreu, Mohamed, de 26 anos, contou que os agentes da Guarda Costeira líbia que mandaram parar o barco em que seguia acabaram depois por abandonar à deriva o bote de borracha, cujo motor avariou, com cerca de 120 pessoas a bordo. “Um dos guardas-costeiros passou do barco da patrulha para o nosso, para nos levar de volta à Líbia. Íamos a meio caminho quando o motor avariou. [O guarda-costeiro] ficou muito frustrado e decidiu regressar ao barco patrulha. Ouvi-o dizer ‘se vocês morrerem, morrem’ antes de entrar no barco da patrulha, que se afastou e nos deixou à deriva no mar”.

Mais tarde, as pessoas no bote conseguiram reparar o motor, mas o barco continuava a perder pressão de ar e não tiveram outra escolha se não a de regressarem à Líbia.

Em outubro de 2013, a Amnistia Internacional documentou o naufrágio de uma traineira que ficou danificada quando saía das águas líbias e uma outra embarcação, não identificada, abriu fogo contra ela. O barco danificado começou a meter água e subsequentemente afundou, com 200 homens, mulheres e crianças a bordo. Alguns dos sobreviventes contaram que os tiros foram disparados pela Guarda Costeira líbia. As conclusões de uma investigação feita a este incidente nunca foram tornadas públicas.

Abusos terríveis nos centros de detenção na Líbia

Segundo responsáveis da Guarda Costeira líbia, refugiados e migrantes que são intercetados na tentativa de fazerem a travessia marítima para a Europa acabam por rotina a serem enviados para centros de detenção de migrantes na Líbia.

Desde 2011, a Amnistia Internacional coligiu numerosos testemunhos de pessoas que estiveram detidas em centros na Líbia – homens, mulheres e crianças não acompanhadas – que detalham as condições terríveis, a violência e os abusos sexuais que ocorrem naqueles locais por todo o país. As provas mais recentemente obtidas pela organização de direitos humanos indicam que os abusos continuam a ser cometidos, e sem diminuição.

Os centros de detenção recaem na supervisão do Departamento de Combate à Migração Irregular, que está nominalmente sob a tutela do Ministério do Interior, mas na prática aqueles centros são geridos por membros de grupos armados. O Governo de união nacional na Líbia, apoiado internacionalmente, ainda não tomou o controlo daqueles centros. E, de acordo com o ACNUR, existem 24 centros de detenção por toda a Líbia.

A legislação do país penaliza a entrada, saída e permanência irregulares na Líbia, e permite a detenção por tempo indeterminado de cidadãos de outras nacionalidades para sua posterior deportação. As pessoas detidas naqueles centros ficam assim retidas durante vários meses sem acesso a familiares, advogados nem juízes, e sem capacidade para contestarem a detenção ou de acederem à proteção que lhes é devida devido à ausência de um sistema ou lei nacional de asilo na Líbia. As deportações são executadas sem nenhumas salvaguardas, nem avaliação dos pedidos individuais de asilo.

“O facto de ser possível deter uma pessoa indefinidamente na Líbia, com base apenas no estatuto de migração, é revoltante. Em vez de lhes ser prestada proteção, refugiados e migrantes acabam a ser torturados e sujeitos a maus-tratos sob detenção. Como um primeiro passo, a Líbia tem de acabar urgentemente com as detenções ilegais, a tortura e os maus-tratos de cidadãos de outros países, e aprovar legislação de asilo para assegurar que quem precisa de proteção internacional obtém refúgio”, sustenta Magdalena Mughrabi.

Vários entrevistados pela Amnistia Internacional que estiveram nos centros de detenção – incluindo pessoas resgatadas no mar e cidadãos de outros países detidos nas ruas da Líbia – relataram incidentes em que guardas os agrediam todos os dias com paus, mangueiras, cabos elétricos e espingardas, além de serem submetidos a choques elétricos.

Um eritreu de 20 anos, cujo barco em que viajava foi abordado pela Guarda Costeira líbia em janeiro de 2016, contou ter sido enviado diretamente para um centro de detenção em Al-Zawiya, na Líbia ocidental, onde foi repetidamente espancado.

“Eles [os guardas] batiam-nos três vezes por dia com um cabo elétrico que dobravam três vezes para doer mais”, descreveu um outro homem que esteve no centro de detenção Abu Slim, em Trípoli, a capital do país, onde a missão de apoio das Nações Unidas na Líbia (UNSMIL) contabiliza que estão detidas pelo menos 450 pessoas. Esta testemunha reportou que os detidos em Abu Slim dormem ao relento, sem nenhum abrigo do calor extremo nem do frio. Os guardas frequentemente “varrem” a área com mangueiras de água e obrigam os detidos a dormir no chão molhado.

Charles, nigeriano de 35 anos, esteve em cinco centros de detenção diferentes após ter sido detido numa rua da capital da Líbia em agosto de 2015. Este homem contou aos investigadores da Amnistia Internacional: “Eles batem-nos constantemente, todos os dias… numa das vezes partiram-me um braço. Levaram-me a um hospital mas não me foram dados nenhuns medicamentos. Eles usam paus, as armas, para nos espancar, e, às vezes, choques elétricos”. Quando os guardas num dos centros de detenção por onde passou ameaçaram deportá-lo, Charles respondeu apenas: “qualquer outra coisa é melhor do que este inferno”.

Um outro entrevistado pela organização de direitos humanos, etíope, de 28 anos, que foi detido junto com a mulher num posto de controlo quando tentavam chegar à zona ocidental da Líbia, passou quatro meses no centro de detenção de Kufra, no sudeste do país. Descreveu ser agredido frequentemente, enfiado numa caixa, chicoteado e queimado com água a ferver. A mulher deste homem contou que o diretor do centro de detenção a agredia regularmente, assim como às outras mulheres que lá se encontravam. Eventualmente, o casal conseguiu pagar para que fossem libertos.

Nenhum dos centros de detenção sob a supervisão formal do Departamento de Combate à Migração Irregular têm guardas mulheres, o que aumenta ainda mais os riscos de abusos sexuais das detidas.

Muitas pessoas dizem ter assistido a refugiados e migrantes a morrerem nos centros de detenção, alguns alvejados, outros espancados até à morte, pelos guardas.

“Os guardas batiam-nos se disséssemos que tínhamos fome. Forçavam-nos a deitarmo-nos de barriga no chão e dois deles espancavam-nos com mangueiras. Vi um homem que era do Chade a ser alvejado a tiro, sem nenhuma razão, mesmo à minha frente. Levaram-no para o hospital, mas ele morreu depois de o trazerem de volta, ali, naquela prisão. Nos registos, declararam que o homem morreu num acidente de carro. Sei isto porque me obrigaram a trabalhar [sem remuneração] um dia inteiro na sala dos ficheiros”, relatou um jovem eritreu, de 19 anos, que esteve detido no centro de Abu Slim.

Um outro cidadão oriundo da Eritreia, que passou cinco meses num centro de Al-Zawiya, desde outubro de 2015, contou ter também testemunhado um incidente em que um detido foi espancado até à morte pelos guardas. Depois, embrulharam o cadáver num cobertor e levaram-no. Num outro caso ainda a que este eritreu assistiu, os guardas dispararam contra sete homens que se encontravam dentro da cela que com ele partilhavam por não terem compreendido as ordens dadas, em árabe, para se levantarem.

Em abril de 2016, a UNSMIL instou a uma investigação à morte a tiro de quatro pessoas que tentaram escapar-se às condições horríveis em que se encontravam em Al-Zawiya.

Antigos detidos naquele centro de detenção reportaram também falta de alimentos e de água potável, fracos cuidados de saúde e condições de higiene terríveis devido à insuficiência de instalações sanitárias que, apontaram muitas testemunhas, resultam em doenças de pele. Estas pessoas contaram ainda que até quando os médicos de organizações humanitárias se deslocavam aos centros, apenas lhes era permitido ver um pequeno número de detidos, os quais estavam normalmente demasiado aterrorizados para reportarem quaisquer ferimentos causados pelos guardas. Os medicamentos que lhes eram dados acabavam por ser confiscados pelos guardas.

“A UE não pode ignorar estas histórias de terror sobre os abusos chocantes que estão a ser cometidos todos os dias na Líbia contra cidadãos de outras nacionalidades. Antes de serem concebidas e acordadas quaisquer políticas e programas sobre migrações, têm de ser asseguradas salvaguardas sólidas de que os direitos dos refugiados e migrantes são totalmente respeitados na Líbia – algo que é muito improvável de se verificar no futuro próximo”, sustenta a vice-diretora interina da Amnistia Internacional para o Médio Oriente e Norte de África.

Discriminação religiosa

Os cristãos estão em risco acrescido de sofrerem maus-tratos nos centros de detenção na Líbia. Omar, eritreu de 26 anos, que esteve num centro de detenção em Al- Zawiya, contou: “Eles odeiam os cristãos. Se és cristão… tudo o que posso dizer é que Deus te ajude se eles o descobrem. Se eles veem uma cruz ou uma tatuagem [religiosa] batem muito mais”.

Um outro detido, oriundo da Nigéria, descreveu que os guardas do centro de detenção em Misurata separam os homens uns dos outros conforme a confissão religiosa que professam e chicoteiam aqueles que são cristãos. “De início disse que não ia mudar a minha religião mesmo estando num país muçulmano. E eles pegaram em mim e chicotearam-me. Então, da vez seguinte, menti, disse-lhes que era muçulmano”, contou.

Também Semre, eritreu de 22 anos, que foi espancado no centro de detenção para onde foi transferido depois de o barco em que tentava fazer a travessia ter sido intercetado em janeiro passado, reportou que os cristãos são muito mais mal tratados. “Bateram-me, tiram-me todo o dinheiro e deitaram fora a minha Bíblia e a cruz que eu tinha num fio ao pescoço. A primeira coisa que fazem é ver se temos dinheiro nos bolsos, depois pegam num cabo elétrico e chicoteiam-nos”.

Explorados, roubados e vendidos aos traficantes

Os testemunhos recolhidos pelos investigadores da Amnistia Internacional nesta missão à Sicília e à Apúlia sugerem que a única esperança de saída das pessoas detidas nos centros na Líbia é a fuga, ou pagar para se conseguirem escapar ou serem vendidos aos traficantes. Muitos são explorados e sujeitos a trabalhos forçados, sem nenhuma remuneração, ou enfrentam extorsão financeira. São também forçados a trabalhar nos centros de detenção ou são dados a cidadãos líbios que pagam aos guardas pelo trabalho feito pelos detidos.

Daniel, de 19 anos e oriundo do Gana, que foi detido em março de 2014, descreveu que a única opção que teve para se escapar aos espancamentos repetidos a que foi sujeito e aos maus-tratos que sofreu durante a sua detenção era fugir. Não tinha dinheiro para pagar aos guardas o que estes lhe exigiam para o libertar do centro.

“Fiquei lá três meses porque não tinha como pagar à polícia. Fizeram-me escravo, tive de fazer todo o tipo de trabalhos, agricultura, carregar areia e pedras… nunca fui pago. Quando tinha fome e o dizia, eles gritavam comigo. Houve vezes em que me deram água com petróleo misturado. Ou misturavam sal na água, apenas para nos punir”, recordou este jovem ganês. Daniel contou ainda que os guardas lhe trouxeram um telefone para que entrasse em contacto com familiares e lhes pedisse dinheiro para ser liberto. “Mas eu não tenho família, a minha mãe e o meu pai morreram. Não havia ninguém a quem pudesse telefonar, e, por isso, eles bateram-me e recusaram-se a dar-me comida”.

Em alguns casos, os detidos conseguiram fugir ou foram libertos pelas pessoas para quem foram forçados a trabalhar; nalguns casos tendo sido ajudados a entrar num barco para fazer a travessia, como paga pelo trabalho prestado.

Noutros casos, os traficantes negoceiam a libertação dos detidos – frequentemente subornando guardas dos centros – para que estes lhes paguem uma nova viagem marítima, com o custo de cerca de mil dólares cada (cerca de 890 euros). Mohamed, que esteve num centro em Al-Zawiya desde que o barco em que viajava foi intercetado em janeiro de 2016, contou que os traficantes dão aos guardas “carros cheios de coisas” em troca da libertação dos detidos.

“A Europa não pode continuar a fugir às suas responsabilidades nesta crise global de refugiados sem precedentes. Para evitar ser cúmplice no ciclo de abusos abomináveis em que refugiados e migrantes estão presos na Líbia, a UE tem de centrar os seus esforços em garantir que a Guarda Costeira líbia leva a cabo as suas operações em cumprimento com os direitos humanos, que nenhum refugiado nem migrante é detido ilegalmente, e que, em primeiro lugar, existem alternativas a esta perigosa viagem. E tal significa que é preciso reforçar de forma radical a reinstalação na Europa e conceder admissões humanitárias e vistos de entrada no território europeu”, remata Magdalena Mughrabi.

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