31 Dezembro 2014

 

Uma sucessão de notícias de sofrimento e injustiças empilharam-se ao longo de 2014, vindas de todos os cantos do mundo. Mas quer isso dizer que este foi um ano sem nenhuma esperança? O secretário-geral da Amnistia Internacional, Salil Shetty, lembra neste artigo que não: houve muitos e importantes sucessos a celebrar. E quanto a 2015? A luta corajosa e resiliente contra as violações de direitos humanos vai ser ainda mais necessária do que nunca.

A julgar pelas aparentemente intermináveis histórias de morte, de sofrimento e de injustiça a que assistimos nas notícias este ano não haveria muito para celebrar em 2014.

Perderam-se milhares de vidas em conflitos por todos os cantos do mundo: desde a República Centro Africana à Síria e à Ucrânia. Outros milhares de pessoas foram executadas pelos seus próprios Governos em países que ainda não aboliram a pena de morte. E milhões de outras ainda continuaram a ser perseguidas e discriminadas.

A situação na Nigéria deteriorou-se, com crimes de guerra a serem cometidos tanto pelo [grupo armado islamita] Boko Haram como pelo Exército do país. E no México, registámos um aumento terrível de 600 por cento no número de casos de denúncias de tortura e maus-tratos.

2014 foi um ano inspirador de muitas preocupações no que toca a direitos humanos. Mas será um erro concluir que este foi um ano sem esperança.

Sucessos históricos

As boas notícias nem sempre fazem as manchetes e os títulos como o fazem as crises, mas na Amnistia Internacional sabemos que foram alcançados alguns sucessos históricos – graças ao trabalho do maior movimento mundial de ativistas de direitos humanos.

Em setembro, por exemplo, ao fim de duas décadas de campanha incansável pela Amnistia Internacional e organizações parceiras, um tratado internacional para controlar o irresponsável comércio de armas alcançou 50 ratificações nas Nações Unidas.

Estima-se que meio milhão de pessoas morrem todos os anos devido à violência armada, frequentemente resultante de repressão por parte dos Estados e às mãos de grupos criminosos.

O Tratado sobre o Comércio de Armas Convencionais tornou-se lei internacional ainda em dezembro de 2014, ajudando a travar o fluxo de armamento para Governos que usam as armas para cometer atrocidades. Este é o primeiro tratado vinculativo da sua natureza de sempre, e constitui um verdadeiro testemunho do trabalho determinado e do empenho dos mais de um milhão de ativistas que lutaram para o alcançar.

Noutro aspeto, um desenvolvimento positivo este ano chegou em julho, quando o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem emitiu uma decisão histórica sobre a cumplicidade do Governo da Polónia no infame programa de detenções da [agência de serviços secretos norte-americana] Central Intelligence Agency, mantendo no país uma série de prisões secretas.

Quando visitei a Polónia há quatro anos, numa das minhas primeiras deslocações oficiais como secretário-geral da Amnistia Internacional, era impossível imaginar que se chegasse a uma decisão como aquela; porém, a determinação dos ativistas permitiu aproximar-nos da verdade. Tenho esperança que as mais recentes revelações, [com a divulgação do sumário] do relatório do Senado dos Estados Unidos, tragam ainda mais força aos nossos apelos para que toda a verdade seja conhecida, para que os responsáveis sejam julgados e para que as vítimas sejam compensadas, inclusive na obtenção de justiça.

Outro passo significativo na direção certa foi dado com o anúncio da Comissão Europeia de que vai abrir procedimentos por infração contra a República Checa por violação da legislação anti discriminação da União Europeia que respeita à discriminação de crianças da etnia cigana na educação. De novo, este é um assunto no qual os ativistas da Amnistia Internacional se empenharam fortemente em campanha.

E talvez mesmo uma das mais felizes vitórias do ano foi conseguida no Paraguai, onde o Senado aprovou uma lei que vai permitir que a comunidade indígena Sawhoyamaxa recupere direitos totais sobre as suas terras. Este foi um objetivo crucial no trabalho de pressão institucional da Amnistia Internacional nos últimos anos e constitui um triunfo para aquela comunidade, que lutou por isto ao longo de mais de duas décadas.

Dizer as verdades ao poder

A Amnistia Internacional desempenha um papel único no mundo ao dizer as verdades a quem está no poder.

A organização de direitos humanos une as vozes de muitos através de campanhas poderosas como a Maratona de Cartas, que somou dois milhões de apelos e ações nas semanas mais recentes. Quando falo com os líderes deste ou daquele país sobre a sua situação concreta de direitos humanos, eles sabem que o nosso movimento está de olhos postos neles e que os responsabilizará pelas suas decisões. Por isso, não há dúvidas nenhumas de que somos ouvidos por quem tem o poder de decisão pelo mundo fora.

As autoridades em Moçambique, por exemplo, abandonaram este ano um projeto-de-lei que, se fosse aprovado, teria permitido que violadores conseguissem evitar ser julgados e condenados se casassem com as suas vítimas – isto aconteceu graças à pressão exercida pelos ativistas de direitos humanos no mundo inteiro.

E dúzias de ativistas detidos e presos injustamente foram libertados em 2014: o bielorrusso Ales Bialiatski, a sudanesa Meriam Yehya Ibrahim, e ainda Ángel Colón, o qual estava preso no México.

Em fevereiro passado reuni-me com o Presidente mexicano para conversarmos sobre a situação de direitos humanos e a cultura de impunidade no país. A resposta vergonhosa que as autoridades deram ao horrível desaparecimento de 43 estudantes no estado de Guerrero, em setembro, constitui um triste sinal de um Governo que não ouviu desde cedo os nossos apelos.

Ainda há poucas semanas, o Senado das Filipinas decidiu abrir um inquérito ao recurso generalizado à tortura por parte da polícia no país. A impunidade, profundamente enraizada e doentia, tem permitido à polícia agir sem qualquer controlo nas Filipinas. Tenho esperanças de que o anúncio feito pelo Senado filipino seja um sinal de que o Governo está finalmente pronto a assumir seriamente as suas responsabilidades num combate verdadeiro à tortura.

Devemos também orgulhar-nos da forma como estamos a introduzir as tecnologias na luta pelos direitos humanos. A Amnistia Internacional tem vindo a trabalhar com organizações parceiras para produzir uma formidável nova ferramenta que facilita aos defensores de direitos humanos fazerem o seu trabalho: a inovadora aplicação Panic Button tem o poder de transformar um smart phone num sistema de alarme que pode ser ativado para alertar outros ativistas em caso de emergência de risco e violação de direitos humanos.

Junto com outras ONG parceiras, a Amnistia Internacional também avançou com uma ação judicial contra as agências de serviços secretos britânicas, numa contestação clara das suas atividades de vigilância maciça de comunicações.

Há, portanto, alguns sucessos bastante importantes em 2014 que o movimento de defensores de direitos humanos pode e deve celebrar. Cada um desses êxitos lembra-nos que a mudança é possível quando as pessoas estão determinadas em alcançá-la.

Ativistas e sobreviventes corajosos

Sinto-me particularmente afortunado por ter tido a oportunidade de conhecer muitas pessoas extraordinárias este ano.

Das dezenas de mulheres corajosas injustamente presas em El Salvador, país que condena à prisão mulheres que tiveram abortos espontâneos – sob a acusação de terem violado as leis antiaborto extremamente rígidas no país –, às gerações de sobreviventes da catástrofe ambiental e humana de Bhopal, na Índia, que, em solidariedade, continuam a longa batalha por justiça e indemnizações. Dos advogados que trabalham em defesa dos prisioneiros de consciência aos ativistas e campaigners que pressionam os legisladores a favor da mudança, e aos defensores de direitos humanos que são tão fundamentais em tanto do trabalho da Amnistia Internacional.

Com o ano a chegar ao fim, estamos muito orgulhosos por termos agora no terreno os nossos investigadores, campaigners e “construtores” do movimento em África e na região da Ásia-Pacífico. E por estarmos prestes a ter esse pé bem assente no terreno também com equipas regionais na América Latina e no Médio Oriente e Norte de África já em 2015.

Em nome da Amnistia Internacional, quero agradecer aos milhões de membros, de apoiantes, ativistas e a todos os que nos desejam bem e sucesso pelo tempo que dão a esta causa que todos partilhamos.

A justiça é possível

Juntos enviámos ao mundo a mensagem poderosa de que a justiça é possível quando gente suficiente está decidida em consegui-la.

Face à aparentemente intransponível dimensão de problemas que o mundo enfrenta nos anos que se avizinham, a luta contra as violações de direitos humanos é mais necessária do que nunca. Sinto-me encorajado e animado, porém, pela força e resiliência dos ativistas que temos connosco.

 

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