14 Abril 2020

Dia e noite, saem de casa, deixando para trás a família e um caminho até ao trabalho que já não se faz como dantes. Chegados ao destino, começa a “luta diária e ingrata” por equipamentos de proteção individual, conta à Amnistia Internacional Portugal uma médica interna, sob anonimato, que trabalha num centro hospitalar português.

“A máscara cirúrgica que nos é fornecida no início do turno protege o contágio do próprio para os outros, mas não protege o profissional que a usa, se este contactar com pessoas infetadas que estejam sem máscara – o que infelizmente ainda acontece. Para além de aumentar a tensão entre os profissionais, a ausência de material de proteção aumenta os níveis de ansiedade individual, o que provavelmente se repercutirá numa maior probabilidade de erro”, descreve esta médica.

“São estes profissionais de saúde que, juntos, forram os teclados com papel aderente, improvisam salas de respiratórios, compram óculos para se protegerem, assim como baldes, pinças e pastilhas para a sua desinfeção”

Médica de um centro hospitalar

Na linha da frente de observação dos doentes suspeitos ou confirmados com COVID-19 estão médicos, enfermeiros e auxiliares “bem equipados e protegidos, embora com turnos longos e material limitado, que implica a utilização da mesma máscara 12 horas seguidas”. As normas dizem que deve ser mantida durante quatro a seis horas ou até ficar húmida. Já o descanso prolonga-se por escassos minutos, dentro do chamado “covidário”.

“Ultrapassar o medo é fundamental para manter a humanização dos cuidados. Ultrapassar o medo é necessário para vencer esta pandemia, cuidando das pessoas. Para ultrapassar o medo, os profissionais de saúde precisam de material de proteção individual”

Médica de um centro hospitalar

Na unidade de saúde de onde nos chega este relato, datado do início de abril, existem outras limitações de materiais. “Continua a existir um validador que rejeita a realização de zaragatoas, uma equipa que não consegue dar resposta a todos os pedidos das mesmas, um número de testes limitado e uma espera de 24 a 72 horas por um resultado”, prossegue a médica. E quando há contacto com doentes infetados? “O profissional de saúde fica a aguardar indicações por parte do serviço de saúde ocupacional, sem capacidade de resposta rápida e, muitas vezes, sem diretrizes uniformes principalmente para os casos assintomáticos, atrasando o seu regresso ao trabalho. Dentro de uma ambiguidade de critérios, sem certeza se infetados ou não, lá regressam com diferentes indicações. No entanto, são estes profissionais de saúde que, juntos, forram os teclados com papel aderente, improvisam salas de respiratórios, compram óculos para se protegerem, assim como baldes, pinças e pastilhas para a sua desinfeção, entre muitos outros exemplos”.

Os corredores que ninguém quer percorrer

Apesar de menos pessoas terem procurado cuidados de saúde, há casos inevitáveis. Entre estes, que até podem ter sido triados como “não-COVID-19”, existiam infetados, que estariam assintomáticos e foram atendidos por profissionais sem a devida proteção. A médica que partilhou o testemunho com a Amnistia Internacional refere: “Mais grave ainda é pensar que, enquanto não se suspeitou do foco de infeção, outros doentes presentes nesta enfermaria tiveram alta e estão agora nas suas casas em contato com os seus familiares”.

A cada dia que passa, milhares de profissionais de saúde desdobram-se em esforços e, por recearem ser uma fonte de contágio, chegam a dormir fora de casa, longe das suas famílias. “Ultrapassar o medo é fundamental para manter a humanização dos cuidados. Ultrapassar o medo é necessário para vencer esta pandemia, cuidando das pessoas. Para ultrapassar o medo, os profissionais de saúde precisam de material de proteção individual”.

É uma pandemia, e agora?

Os primeiros casos de COVID-19 em Portugal foram registados a 2 de março. A Organização Mundial da Saúde acabou por declarar o novo coronavírus como uma pandemia a 11 de março. Dois dias depois, uma médica interna de Medicina Geral e Familiar de um centro de saúde da zona centro foi convocada para uma “reunião relâmpago”: “A Unidade de Saúde Familiar onde eu estou a terminar o meu internato tentava preparar-se para um tsunami que, infelizmente, ninguém via, nem sabia como orientar. O que fazemos a partir de segunda-feira? Cancelamos as consultas todas? Apenas as dos grupos de risco (idosos, diabéticos, etc.)? Devemos todos usar máscaras? Temos máscaras suficientes no serviço? Como fazemos a triagem dos utentes com queixas respiratórias que poderão ou não ser positivos?”.

Esta profissional, que também falou com a Amnistia Internacional Portugal sob anonimato, denuncia a falta de respostas e alguma desorganização, questionando: “As orientações e os apoios vindos da direção tinham sempre três, quatro dias de atraso quando, perante uma pandemia da magnitude desta, apenas algumas horas de imprudência representarão quantos mais utentes e profissionais de saúde infetados?”.

“Contra qualquer orientação vinda das chefias do nosso Agrupamento de Centros de Saúde, improvisámos uma triagem, em que todos os doentes com queixas respiratórias eram vistos apenas por dois médicos – que utilizaram os escassos Equipamentos de Proteção Individual disponíveis”

Médica de um centro de saúde

Para minimizar ao máximo o impacto para os doentes da unidade de saúde onde trabalha, a médica relata a decisão tomada e aplicada no dia 16 de março: “Contra qualquer orientação vinda das chefias do nosso Agrupamento de Centros de Saúde, improvisámos uma triagem, em que todos os doentes com queixas respiratórias eram vistos apenas por dois médicos – que utilizaram os escassos Equipamentos de Proteção Individual [EPI] disponíveis – de modo a utilizarmos apenas o mínimo essencial, sem gastar o pouco que tínhamos. Desmarcámos todas as consultas presenciais de grupos de risco e fizemos o máximo de contactos telefónicos aos nossos utentes mais frágeis, de modo a os protegermos e orientarmos, sem eles terem de sair de casa”.

No entanto, o problema dos EPI manteve-se, existindo um “número contado” de kits completos, que devem ter bata impermeável, tapa sapatos, máscara FP2, touca e óculos. A unidade em questão também só tinha uma caixa de máscaras cirúrgicas (50 unidades) e um frasco de SABA, ainda que, “em ocasiões normais”, receba cerca de 200 utentes por dia – entre consultas presenciais, pedidos de receituário, cuidados de enfermagem, marcação de consultas e outros atendimentos.

Engenho e solidariedade

Na ausência de respostas, os profissionais acabaram a contactar “todas as lojas de bricolage do concelho” para conseguirem aceder a material de proteção individual. “Contactámos também mães de colegas, maridos de utentes, entre outros, no sentido de nos confecionarem scrubs [vulgo pijamas cirúrgicos], de modo a não contaminarmos a nossa roupa pessoal que, no final do dia, levamos para casa para junto das nossas famílias”. Ao longo das semanas seguintes, seguiram-se inúmeras manifestações de solidariedade, com a chegada de máscaras cirúrgicas e KN95, viseiras improvisadas com uma impressora 3D e uma folha de acetato ou acrílicos para proteger os trabalhadores.

“Inúmeras pessoas […], através da sua boa vontade, solidariedade e sentido de dever cívico, tentaram colmatar as inúmeras falhas constantes, diárias e muito graves”

Médica de um centro de saúde

“Portanto, quando o Sr. primeiro-ministro António Costa diz ‘até agora não faltou nada e não é previsível que venha a faltar’, esta premissa apenas pode ser, numa pequena parte, verdadeira, se tivermos em conta as inúmeras pessoas que, através da sua boa vontade, solidariedade e sentido de dever cívico, tentaram colmatar as inúmeras falhas constantes, diárias e muito graves no dia a dia de todos os profissionais de saúde do país”, conclui a médica.

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