22 Janeiro 2015

O Parlamento de El Salvador fez finalmente justiça a Guadalupe Vásquez, que cumpria uma pena de 30 anos de prisão por ter sofrido um aborto espontâneo, ao aprovar um há muito tempo pedido indulto. Esta decisão deve agora servir de precedente para as outras 15 mulheres que permanecem presas devido à injusta e cruel penalização total do aborto no país e abrir a porta à necessária mudança da lei.

Ainda há pouco mais de uma semana, as autoridades salvadorenhas tinham-se recusado a dar aval ao perdão a Guadalupe Vásquez. Mas em novo voto que decorreu ontem em El Salvador (madrugada em Portugal), a petição submetida ao Parlamento foi aprovada e seguirá agora para o Presidente, Salvador Sánchez Cerén, para ratificação, um passo que os ativistas julgam que decorrerá sem atribulações.

Uma das maiores defensoras de Guadalupe Vásquez é Morena Herrera – figura de proa da luta pela liberdade em El Salvador, feminista ferrenha e ativista dos direitos sexuais e reprodutivos – que aqui explica as razões porque a penalização total do aborto naquele país tem de ser anulada.

“Fui comandante da guerrilha. Fui ativista pelas mudanças sociais desde muito nova”, recorda. E mesmo quando a guerra civil terminou em El Salvador, em 1992, e foram assinados os acordos de paz, ela soube que a luta estava longe de terminar. “Os acordos deixaram lacunas enormes no que toca aos direitos das mulheres. Percebi que tinha de lutar de outras formas. Os direitos das mulheres são direitos humanos e têm de ser uma prioridade”, sustenta.

Desde 2009, Morena Herrera tem estado a lutar dessas “outras formas”, através da associação que lidera – o Agrupación Ciudadana por la Despenalización del Aborto (Grupo de Cidadania pela Despenalização do Aborto). Um dos casos defendidos por esta associação foi Beatriz, que quase morreu por lhe ter sido negado terminar uma gravidez inviável que ameaçava a sua vida; outro é o do grupo de 17 mulheres, ainda contando com Guadalupe, que atualmente têm recursos as decorrer às condenações que foram pronunciadas contra elas por “delitos” relacionados com a gravidez.

Todas estas mulheres ficaram com as suas vidas devastadas pela penalização total e brutal do aborto em El Salvador.

Ácidos e ganchos

Não foi sempre assim. Antes de 1997, a interrupção da gravidez era permitida em três casos excecionais: de risco de vida da grávida, violação e anomalias fetais.

“Nesses tempos, era possível fazer um aborto em segredo e não se era acusada nem presa. Algumas mulheres usavam ácidos e ganchos para abortarem, porque o aborto era ilegal à exceção daqueles casos. Porém, quando as coisas corriam mal, essas mulheres podiam ir ao hospital e receber tratamento sem medo de serem detidas”, conta Morena Herrera.

Depois de 1997, porém, a reforma do Código Penal salvadorenho consagrou a penalização total e absoluta do aborto, do que resultou um intensificar da cultura de incriminar e criminalizar as mulheres.

“E agora as mulheres que vão aos hospitais com hemorragias na sequência de um aborto espontâneo são imediatamente acusadas”, frisa a líder do Agrupación Ciudadana por la Despenalización del Aborto. “Sem sequer uma investigação dos factos, estas mulheres são acusadas. Em alguns casos, o delito de aborto é até mudado para homicídio agravado. E aí as sentenças são draconianas, de 30 anos, até mesmo 50 anos de pena de prisão”.

Escolhas impossíveis

Neste cenário, Morena Herrera reconhece que o trabalho da sua associação é muito difícil.

“Um dia recebi um telefonema. Era uma estudante que estava na casa de banho de uma escola, com uma hemorragia. Pedi a uma colega que a levasse a um hospital privado. Ela tinha sido violada nas imediações da universidade [e engravidado], mas não contou a ninguém. Tomou umas cápsulas feitas de soda cáustica, que lhe destruíram as paredes das artérias – mas continuava grávida. Para nós, este é o dilema: preferimos ver esta pessoa morta ou na prisão? É esta a realidade que vivemos todos os dias. É excruciante”, descreve.

As gravidezes indesejadas são uma realidade dolorosa para muitas mulheres jovens e raparigas em El Salvador. Como Morena Herrera salienta, em 36 por cento dos nascimentos registados em hospitais as parturientes têm entre 9 e 18 anos. Sem uma educação sexual adequada, com um acesso muito limitado a anticoncetivos e a proibição total do aborto, as jovens são deixadas sem nenhuma outra saída – a não ser a dos abortos clandestinos (35.000 por ano) ou do suicídio (com uma taxa de 57 por cento das mortes durante a gravidez).

“Tenho quatro filhas, três delas de pais diferentes. Conheço bem a aflição que se sente quanto ficamos grávidas sem o desejar. Só com a minha quarta filha fiz uma escolha consciente. E é assim que todas as crianças devem vir ao mundo”, conta a ativista.

Desafios

Morena Herrera e as outras ativistas no Agrupación Ciudadana por la Despenalización del Aborto enfrentam uma série de desafios legais, mas também muitos sociais.

“As pessoas dizem que estamos a cometer um crime por sensibilizarmos a opinião pública para este problema, por darmos apoio às mulheres e por as defendermos. Nós respondemos dizendo que estamos a lutar para que uma lei injusta seja mudada. Isto não pode ser ilegal. Não aceitamos isso”, garante.

“Já recebemos mesmo ameaças e foram difundidas algumas histórias nos jornais e na televisão que eram extremamente estigmatizantes”, conta Morena Herrera.

É aqui que a Amnistia Internacional pode desempenhar um papel positivo. “Quando a [missão da] Amnistia esteve em El Salvador e foi lançado o relatório [“On the brink of death: Violence against women and the abortion ban in El Salvador”] isso deu-nos alguma paz de espírito. Pensámos que não estamos doidas, que temos o apoio de outros. O mais importante é que a Amnistia Internacional consiga fazer com que outros Governos oiçam este apelo para que pressionem as autoridades de El Salvador. As nossas vozes nem sempre são ouvidas, pelo que isso ajudar-nos-ia muitíssimo”, explica a ativista.

Sucessos

Por entre os muitos contratempos, também há sempre alguns sucessos. Morena Herrera recorda a primeira mulher que o grupo que lidera ajudou a libertar:

“Era a mãe de três crianças que tinha sido condenada a 30 anos de prisão. Descobrimos o caso dela num artigo que tinha sido publicado no [diário norte-americano] New York Times e começámos a investigar. Como tenho o mesmo apelido que ela, consegui visitá-la na prisão como se fosse uma familiar. E foi aí que me contou o que lhe acontecera. Examinámos o processo e com a ajuda de médicos forenses da Argentina, Guatemala e Espanha, conseguimos demonstrar que houvera um erro judicial no julgamento. Passámos quatro anos a fazer campanha pela sua libertação”.

Quando aquela mulher foi finalmente libertada, Morena Herrera ficou felicíssima. “Andei três dias sempre a sorrir. Foi muito gratificante. E, passado algum tempo, ela também se tornou ativista e começou a defender os direitos de outras mulheres”, conta.

 

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