9 Junho 2015

Mulheres e raparigas grávidas têm as vidas e a saúde em risco na Irlanda, alerta a Amnistia Internacional com base num novo relatório da campanha global “O Meu Corpo, os Meus Direitos” que analisa a lei de interrupção voluntária da gravidez naquele país.

O relatório, intitulado “She is not a criminal: The impact of Ireland’s abortion law” (Ela não é uma criminosa: o impacto da lei do aborto na Irlanda) e publicado esta terça-feira, 9 de junho, documenta uma série de casos chocantes em que as autoridades irlandesas recusaram a mulheres e raparigas cuidados de saúde que lhes eram necessários, dando prioridade à vida do feto – que está protegido ao abrigo de uma emenda à Constituição do país feita em 1983.

Ao permitir a interrupção voluntária da gravidez apenas em caso de risco de vida da grávida, a lei do aborto irlandesa é uma das mais restritivas em todo o mundo, e força pelo menos 4.000 mulheres e raparigas a viajarem todos os anos para fora do país para abortarem, com muito significativos custos psicológicos, físicos e financeiros. As raparigas e mulheres que não podem fazer essa viagem ficam sem acesso aos cuidados de saúde de que necessitam, ou arriscam-se a ser criminalmente penalizadas caso procedam à interrupção da gravidez na Irlanda.

“O recente referendo sobre a igualdade no casamento civil mostrou um país que se orgulha em ser uma sociedade aberta e inclusiva, mas nem tudo está bem na República da Irlanda. Os direitos humanos de mulheres e raparigas são violados todos os dias por causa de uma Constituição que as trata como não mais do que meios de gestação de filhos”, critica o secretário-geral da Amnistia Internacional, Salil Shetty. “As mulheres e raparigas que precisam de fazer um aborto são tratadas como criminosas, estigmatizadas e obrigadas a viajarem para outros países, o que tem um peso enorme na sua saúde psíquica e física. O Estado irlandês não pode continuar a ignorar esta realidade, nem o impacto terrível que esta situação tem para milhares de pessoas todos os anos”, prossegue.

“Medo pela minha vida”

O novo relatório apresenta testemunhos de mulheres que fizeram abortos fora da Irlanda, algumas das quais sofreram abortos espontâneos e tiveram de continuar a carregar dentro delas um feto morto ou inviável ao longo de várias semanas, na esperança vã de obterem na Irlanda os cuidados de saúde de que precisavam.

Róisín foi forçada a ter na barriga um feto morto durante semanas porque os médicos queriam ter a certeza absoluta de que não se verificava a existência de batimento cardíaco fetal. Esta mulher contou à Amnistia Internacional: “Neste momento não estou disposta a confiar nos serviços para as mulheres que há no país”.

E Lupe, que carregou um feto sem batimento cardíaco durante 14 semanas, testemunhou à Amnistia Internacional que teve de viajar até ao seu país-natal, Espanha, para obter tratamento médico adequado. “Eu não me senti nada segura… Estava aterrorizada porque ficou claro para mim que, se surgisse alguma complicação, estas pessoas deixar-me-iam morrer”.

Não são só as mulheres que pretendem fazer uma interrupção da gravidez que veem ser-lhes negados cuidados de saúde devido à prioridade dada ao feto. Profissionais médicos recusaram a Rebecca H., que se encontrava gravemente doente, fazer uma cesariana temendo que o procedimento pudesse de alguma forma magoar o feto. Em vez disso, obrigaram-na a passar por 36 horas de trabalho de parto, argumentando que o que tinha de ser feito era “cuidar do bebé” e que “o bebé está primeiro”.

Rebecca H. contou à Amnistia Internacional: “Temo pela minha vida se tiver outro filho na Irlanda”.

O médico Peter Boylan, obstetra, ginecologista e antigo diretor clínico do Hospital/Maternidade Nacional da Irlanda, descreveu à Amnistia Internacional a corda-bamba legal e ética em que os profissionais de saúde são forçados a andar: “Ao abrigo [da atual lei], temos de esperar até a mulher ficar suficientemente doente antes de podermos intervir. Quão próximo da morte temos de ficar? Para isso não há resposta”.

Uma das mais restritivas leis de aborto no mundo

A Irlanda é o único país na Europa – à parte de Andorra, Malta e São Marino – que proíbe as mulheres de interromperem voluntariamente a gravidez até em casos de violação, de malformação grave ou fatal do feto ou de risco para a saúde da grávida, o que constituem direitos humanos ao abrigo da lei internacional.

A Amnistia Internacional lança este 9 de junho uma campanha em que insta a Irlanda a mudar a lei do aborto, de maneira a que mulheres e raparigas possam interromper voluntariamente a gravidez pelo menos naqueles casos.

A lei irlandesa considera mesmo crime que médicos e conselheiros clínicos forneçam às mulheres informação completa sobre os tratamentos de que precisam e sobre as formas de obterem o aborto de forma segura. Vários profissionais de saúde contaram à Amnistia Internacional a frustração que sentem por força do Ireland’s Regulation of Information Act (regulamento que determina a informação que pode ser prestada às mulheres) – e que vários grupos de direitos humanos na Irlanda querem ver anulado.

“As leis draconianas da Irlanda criaram um clima de medo em que os profissionais que prestam aconselhamento podem ser multados por explicarem às mulheres como obter cuidados médicos e, devido a isso, algumas mulheres estão a evitar irem ao médico”, sublinha o diretor executivo da Amnistia Internacional Irlanda, Colm O’Gorman.

“A Irlanda faz vista grossa quando as mulheres viajam para fora do país para fazerem um aborto, e é-lhe indiferente o sofrimento que isso envolve. Condena as mais fracas, pobres e vulneráveis, que não podem viajar, a tornarem-se criminosas por tomarem decisões sobre os seus próprios corpos, decisões que às vezes são questões de vida ou morte”, prossegue.

Colm O’Gorman sustenta que “a Irlanda tem de fazer uma reforma à Constituição e retirar a proteção do feto”. “Isto tem de acontecer com urgência pois as atuais leis irlandesas estão a pôr as vidas de mulheres e raparigas em risco todos os dias”, remata.

Campanha sem precedentes na Irlanda

A Amnistia Internacional lança esta campanha na Irlanda, dando-lhe arranque com a publicação do relatório “She is not a criminal”, potenciando a força global dos sete milhões de ativistas da organização de direitos humanos contra os esforços governamentais no país em controlar e criminalizar as mulheres.

É a primeira vez que a Amnistia Internacional lança uma campanha desta envergadura na Irlanda em defesa de um tema de direitos humanos, envolvendo a assinatura de petições, a realização de manifestações e o envio de cartas para os líderes irlandeses.

O relatório anterior publicado no âmbito da campanha global da Amnistia Internacional “O Meu Corpo, os Meus Direitos” documenta o impacto da lei do aborto em El Salvador, que criminaliza a interrupção voluntária da gravidez em todas as circunstâncias. Os dois relatórios mostram como as mulheres podem ser empurradas para a morte por causa de leis restritivas.

A reter: casos e factos e números

 

Junto com este relatório, a Amnistia Internacional promove uma petição em que se instam as autoridades na Irlanda a mudarem as leis draconianas do país que atualmente tiram às mulheres o direito à sua própria saúde, às suas escolhas, e põem as suas vidas em risco. Assine!

 

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