MEGA CENTRAIS SOLARES

Quando a transição “verde” NÃO É JUSTA

Já há muito que está em marcha o plano estratégico de energia e do clima definido pelo governo junto da Europa até 2030. As metas são ambiciosas, mas o caminho escolhido está a provocar contestação entre as populações.

Dois movimentos cívicos de Santiago do Cacém, no Alentejo, garantem que o modelo centralizado escolhido para a produção de eletricidade através do solar “vai destruir vastas áreas do território nacional”. Dizem ser urgente “acautelar os direitos das populações e os limites dos ecossistemas”, argumentos que levaram ao parlamento no início de maio e que também já chegaram aos tribunais. Na semana passada, um outro movimento cívico no Algarve fez uma denúncia semelhante. Acusam o governo de querer implementar mais um projeto em plena Reserva Ecológica Nacional. Em causa, está a construção de centrais fotovoltaicas de grandes dimensões e em áreas sensíveis.

Com uma média de mais de 267 dias sem chuva no último ano, terrenos com pouco declive e baixa densidade populacional, o sul do país está na dianteira da aposta para a produção solar no combate às alterações climáticas e pela descarbonização. Mas as pegadas deixadas por dezenas de projetos previstos tanto para o Alentejo como para o Algarve estão a agitar as águas no país.

“Não pode haver fundamentalismo, tem de haver equilíbrio. Ninguém é contra os painéis fotovoltaicos, o que não posso tolerar são estes projetos megalómanos passando por cima de tudo”. O desabafo vem de um agricultor e produtor de gado à sombra de um sobreiro centenário em pleno Alentejo. O tom é de preocupação, um sentimento que este homem já não esconde depois de saber que a sua herdade vai ficar paredes meias com dois megaprojetos fotovoltaicos previstos para o concelho de Santiago do Cacém.

Um deles é a Central Fotovoltaica Fernando Pessoa, na freguesia de São Domingos e Vale de Água, cujo promotor é a empresa espanhola Iberdrola. Depois de dois chumbos, o projeto recebeu em fevereiro parecer favorável da Agência Portuguesa do Ambiente (APA). Se avançar, será o maior do país e da Europa. Vai ocupar mais de 1200 hectares e a sua construção implica o abate de mais de um milhão e meio de árvores.

Não é só a escala desta mega central que está a causar alarme social e ambiental, mas também a escolha dos terrenos que, neste e noutros casos, abrangem áreas classificadas como Reserva Ecológica Nacional (REN) e Reserva Agrícola Nacional (RAN). Uma opção que dez organizações garantem estar a tornar-se prática e por isso lançaram uma petição a alertar para o uso destes solos tanto na construção de mais habitação como na instalação de projetos de grandes dimensões, como é o caso do solar.

LISBOA

PORTO

Legenda: Comparação do projeto da Central Fotovoltaica Fernando Pessoa com as áreas de Lisboa e do Porto

O sul do país, um oásis para megaprojetos

Grande parte da Central Solar Fernando Pessoa, em São Domingos e Vale d’Água ocupará terrenos de Reserva Ecológica Nacional. O critério para a localização destes projetos tem sido a existência ou não de linhas de alta tensão, infraestruturas caras e que, de outra forma, teriam de ser construídas pelos promotores.

Para Nuno Brito, presidente da Coopérnico, uma cooperativa criada há uma década com a missão de promover projetos e investimentos assentes na democracia energética, esse é apenas um dos problemas da estratégia do governo.

“Não há qualquer especificação em relação aos locais onde a energia vai ser produzida, desde que estejam perto de pontos de injeção na rede. O que significa que à priori não são tidos em conta os impactos sociais e ambientais. Deveríamos ter uma espécie de avaliação prévia dos locais onde estes projetos podem ser implementados.” Na verdade, em janeiro, o Laboratório Nacional de Energia e Geologia, sob alçada do Ministério do Ambiente e Ação Climática, publicou um relatório com o mapeamento das áreas com menor sensibilidade (ambiental e patrimonial) a nível nacional para instalar projetos de eletricidade renovável. Segundo o documento “sensivelmente 12% do território de Portugal continental” está apto, mas nem a central de São Domingos e Vale d’Água ou a do Cercal (também no mesmo concelho) são abrangidas. Ambas parecem estar claramente em áreas consideradas sensíveis pelo relatório, o que choca com a luz verde dada pela APA.

Mais a sul, no Algarve, está em processo de consulta pública um outro projeto que também está a criar polémica por causa da localização. A futura Central Fotovoltaica de Estói vai abranger os concelhos de Faro, Olhão, São Brás de Alportel e Tavira. Segundo a associação cívica Probaal, a maioria dos 156 hectares serão implementados em Reserva Ecológica Nacional.

0
Centrais em Portugal com licença de produção (>100 hectares)
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Área a ocupar (aprox.)
0
Centrais no Alentejo com licença de produção (>100 hectares)
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Área a ocupar (aprox.)
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Centrais em Portugal com parecer favorável (>100 hectares)
5000
Área a ocupar (aprox.)
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Centrais no Alentejo com parecer favorável (>100 hectares)
0
Área a ocupar (aprox.)

A Amnistia Internacional questionou o ministério do Ambiente sobre as opções políticas do país em termos de produção de energia solar, a dimensão e a escolha dos terrenos. Não obtivemos qualquer resposta.

Dados compilados pela AI Portugal para centrais solares com parecer favorável (AIA) e dimensão ≥100 ha

Desertificar regiões em seca extrema

Para o produtor de gado, os efeitos de projetos desta dimensão são imprevisíveis e põem em causa o ecossistema do montado, em especial, os sobreiros. “Não estou a pensar na minha geração, mas na dos meus filhos e na dos meus netos. Quando questionei a responsável pelo estudo de impacto ambiental, foi-me dito que realmente se previu um aumento da temperatura e diminuição da pluviosidade. Ora, nós já estamos com menos água do que o necessário”.

Enquanto a Amnistia Internacional percorreu a região não faltam exemplos de falta de água. É o caso da barragem de Santa Clara, a um terço da capacidade total o que motivou a ministra da Agricultura a assinar um despacho no final de maio que proíbe a criação de novas culturas de forma a garantir a rega para as existentes, para a indústria e para o consumo doméstico da região. As reservas atuais duram no máximo até ao início do próximo ano, asseguram alguns residentes ouvidos pela Amnistia Internacional. Isto se chover, coisa que por aqui, garantem, é cada vez menos frequente.

É assim também na barragem de Fonte de Serne, que ao que tudo indica vai entrar neste verão, com quase 20% a menos de água armazenada do que o previsto para esta altura do ano.

- 0 %
de água armazenada do que o previsto para esta altura do ano na barragem de Fonte de Serne

“Há mais de dez anos que não chove o suficiente para a encher”, conta-nos um proprietário local enquanto aponta para as margens, há muito secas. O maior receio está também nos impactos em termos de calor e precipitação por causa do que pode nascer a menos de um quilómetro de distância, ou seja, a futura Central Fernando Pessoa.

“Quando soube dos painéis, a minha primeira reação foi pensar que ia ser excelente. Se era solar seria energia verde, não ia contaminar. O problema foi quando percebi a dimensão. Uma coisa é serem 50 ou até mesmo 100 hectares, outra são 1262. Toda esta mancha verde vai desaparecer e não houve nenhum estudo para os aquíferos da zona”.

A mesma denúncia faz a Probaal do Algarve que garante que a mega central de Estói está projetada para um vale que é uma zona de recarga de aquíferos, com impacto direito em ribeiras e no armazenamento de água nos solos.

Depois das estufas, um mar de painéis

Há quem tenha trocado o litoral alentejano pelo interior para fugir ao que por aqui se chama o “mar de estufas”. Mas não imaginavam a onda que viria na sua direção. É este o relato que nos faz outra moradora e empresária na região. “É o abacate, os olivais, os amendoais, as estufas e agora os painéis solares. Não tenho dúvidas de que é mais uma “monocultura”. Só vai trazer mais desertificação, não só para o ambiente, mas também em termos sociais”.

Esta mulher chegou há menos de uma década para investir todo as poupanças numa pequena propriedade e num negócio cujo foco é a regeneração dos solos. Fala com desalento e cansaço, depois de quase quatro anos de luta contra a construção da Central Fotovoltaica do Cercal, o outro megaprojeto solar previsto para o concelho de Santiago do Cacém, com uma área de 816 hectares.

“Não há uma transição verde, porque não há uma transição. Vão trocar o petróleo pelo sol, mas a mentalidade é a mesma”.

Moradora e empresária na região

Uma das principais críticas destes moradores está na forma como o governo e a autarquia têm conduzido os processos: “Não faz sentido haver um projeto desta dimensão sem se ouvir a população local, sem que a população realmente participe. Não houve diálogo, as pessoas não foram escutadas. A reunião da consulta pública foi a uma sexta-feira e o período para submeter as participações encerrava na segunda. As pessoas é que passaram a palavra, foi um desrespeito brutal à população”.

Metas do Solar em Portugal até 2030

Área a ocupar do Solar até 2030

Uma Consulta Pública pouco pública

É um dos alertas dado por Nuno Brito, para quem o desenvolvimento sustentável só é possível envolvendo os cidadãos. “A energia solar é a resposta óbvia às necessidades energéticas do país, mas há várias coisas que poderiam estar a ser feitas de uma maneira diferente”, explica.

“Há uma série de boas práticas que poderiam ser incentivadas ou praticadas pelos promotores para incluir as populações. O que acaba por acontecer é uma abordagem que tipicamente se chama “de cima-para baixo”. O grande investidor chega, monta o projeto e vai-se embora.”

A prática é confirmada no terreno. “Fui alertado por um colaborador, que me disse: “- Então, sabia que vai haver aqui um campo de painéis solares muito grande à volta?”, conta-nos o produtor de gado. “Ao princípio, eu não liguei. Só quando percebi com uns vizinhos a dimensão disto é que fiquei bastante preocupado”.

Também outro proprietário da zona afirma que “soube por acaso” do projeto. “Já tinham passado 20 dos 30 dias para nos pronunciarmos em consulta pública. Não houve informação da Câmara. Não houve informação da Junta, não houve informação por parte ninguém”, garante.

Para Nuno Brito “regulamentarmente, não tem sido garantida de forma nenhuma a participação e o envolvimento das populações”. Apesar de até poderem estar a ser cumpridos os requisitos mínimos em termos de consultas públicas “não é suficiente para uma sociedade moderna como a de Portugal que quer ser pioneira das energias renováveis”.

Até agora, participaram pelo menos 715 pessoas e organizações em consultas públicas ligadas ao solar, ainda que pareça não haver nenhuma relação entre o número de contributos e os pareceres emitidos pelo governo. Não estão também incluídos os processos em curso, como o que está a decorrer no Algarve. A Probaal assegura que já recolheu mais de 178 contributos da população contra o megaprojeto e garante: “iremos até onde for preciso”.

Já com pareceres favoráveis por parte da APA, para os dois movimentos cívicos de Santiago do Cacém a única alternativa são agora os tribunais. “A visão que impera é a do lucro, não a visão ambiental. Todas as objeções das populações foram rejeitadas com o argumento simples de que os projetos fazem parte da estratégia nacional do governo”. “Não vale tudo”, argumentam.

“Greenwashing” à portuguesa

Visitamos o local onde vai nascer a mega central do Cercal na companhia de um dos residentes na freguesia. “Esta é uma área essencialmente agrícola, são os melhores solos desta zona. Vão ser implantados aqui mais de meio milhão de painéis solares e isso vai transformar este solo agrícola durante gerações”, assegura.

Esta mega central está numa fase mais avançada do que o projeto vizinho de São Domingos, já foram emitidas as licenças de produção embora a construção ainda não tenha começado por causa da linha de alta tensão que, neste caso, terá de ser construída para transportar a energia produzida e injetá-la na rede.

“É um microcosmo do que vai acontecer. No Alentejo serão mais de 12 centrais. Segundo o Ministério do Ambiente será ocupado apenas 0,2% do território nacional, mas isto é uma falácia. Só este projeto corresponde a 6% da freguesia do Cercal.”

Segundo números da Direção Geral de Energia e Geologia, desde 2016, no Alentejo, foram emitidas dez licenças de produção para projetos com área superior a 100 hectares (o equivalente a cerca de 100 campos de futebol) num total de 28 emitidas a nível nacional (duas das quais já em funcionamento. Comparando com os dados públicos no site da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), foi dada luz verde por esta entidade a mais oito projetos no Alentejo e há pelo menos mais dez em aberto ou em análise.

No Algarve, a Probaal acusa a empresa promotora, a Iberdrola, de fugir ao diálogo, de esconder informação e de já ter comprado e arrendado terrenos quando ainda nem foi feita a Avaliação de Impacto Ambiental (AIA). “Os poucos documentos a que tivemos acesso estão numa linguagem técnica, muitas pessoas daqui não têm sequer um email para poder participar ou colocar questões.”

Um processo obscuro

Na semana passada, o movimento cívico algarvio tentou falar com os promotores e a APA ao saber que haveria uma visita ao local da futura central. “Tínhamos uma carta aberta da população que ninguém aceitou receber, nem sequer nos quiseram dizer um endereço eletrónico para onde a poderíamos enviar”, reiteram.

É neste ponto que reside outra das críticas de quem aponta o dedo à forma como o modelo de descarbonização está a ser implementado pelo governo. “A obrigatoriedade de realizar um processo de AIA é do promotor dos projetos. Portanto estes estudos, na maior parte das vezes, não são feitos para rejeitar um projeto, são feitos para encontrar as melhores medidas de mitigação e de minimização dos impactos que aquele projeto pode ter”, explica Nuno Brito.

Apesar desta aplicação da AIA, vale a pena ler o princípio 17 da Declaração do Rio, que define esta ferramenta e segundo o qual: “Deverá ser empreendida a avaliação do impacto ambiental, enquanto instrumento nacional, de certas atividades suscetíveis de terem impacto significativo adverso no ambiente e que estejam sujeitas a uma decisão por parte de uma autoridade nacional competente“.

A Amnistia Internacional chama a atenção para a maneira como estão a ser usados estes instrumentos e para o potencial desrespeito dos direitos das populações, do ambiente (como consta no artigo 66º da Constituição Portuguesa) e do próprio direito internacional.

No caso de Portugal, é a Agência Portuguesa do Ambiente a entidade, ainda que tutelada pelo Ministério do Ambiente, responsável por gerir e executar todos os passos necessários, incluindo os processos de consulta pública, para a emissão de um parecer sobre o Estudo de Impacto Ambiental. Após esta fase, as licenças de produção e exploração dos projetos são analisadas e emitidas pela Direção Geral de Energia e Geologia. Já as decisões políticas e estratégicas, quanto às metas e aos modelos a seguir, são da responsabilidade do governo.

Uma oportunidade perdida

Nesta rede de decisores e procedimentos, a burocracia e a falta de participação pública são apontadas por Vera Ferreira, investigadora em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, para uma crescente tensão.

“Os mecanismos que estão a ser aplicados não são inclusivos, nem eficazes, nem garantem que haja justiça energética. As pessoas não são envolvidas nos processos de tomada de decisão”, explica.

Para a investigadora falta transparência, honestidade e simplificação capazes de dar às pessoas ferramentas para poderem participar ativamente nestes projetos.

Para vários residentes do Cercal não há dúvidas. “A transição energética é uma oportunidade de sonho que está a ser transformada num grande pesadelo pelo governo. Estes projetos não servem a comunidade. Nós estamos a repetir exatamente os mesmos passos do que fizemos com os combustíveis fósseis só que agora é “verde””, dizem com ironia.

Já Nuno Brito garante que não faltam bons exemplos na Europa de um outro caminho possível, capaz de dar oportunidade às comunidades de participarem e beneficiarem destes processos. O presidente da Coopérnico conta-nos sobre o exemplo da Holanda, o mais ambicioso em termos de democracia energética, em que todos os novos projetos em terra, tanto de eólica ou de solar, têm de obrigatoriamente ter participação cidadã em até 50% no investimento ou na titularidade. E acrescenta: “Há outros casos mais simples. Na Alemanha foram criadas condições para que as cooperativas de energia conseguissem concorrer aos leilões onde antigamente dominavam só os gigantes. Portanto há uma série de boas práticas que podem ser implementadas em Portugal se houver vontade política para o fazer”.

Meia dúzia de empregos

Os números diferem e são dados pelos promotores. Após a construção e instalação das mega centrais, que concentram a grande maioria da mão-de-obra, a contratação de trabalhadores residual e feita essencialmente para assegurar a manutenção e a limpeza dos painéis, o que muitas vezes também é feito com recurso a um veículo de apoio.

No caso da mega central do Cercal está prevista a criação de quatro postos de trabalho permanentes. Em São Domingos, a Iberdrola assegura que serão algumas dezenas, sem precisar, contudo, para que funções.

A população teme mais uma vez os impactos destes projetos nos empregos de outros setores. “Quantos postos de trabalho vão-se perder pelo turismo?”, lança uma das moradoras para logo depois acrescentar: “o turismo vai diminuir, porque ninguém vem para cá ver painéis solares, as pessoas querem estar no meio da natureza”.

Para o produtor de gado, outra das atividades em risco é a dos tiradores de cortiça. “Se houver menos montado, estas pessoas vão ser altamente penalizadas também.”

Ainda não há estudos em Portugal sobre estes efeitos, mas para Vera Ferreira é já clara a sensação de “sacrifício de determinados objetivos de sustentabilidade, de proteção dos ecossistemas e do território local em função destas metas”.

A investigadora alerta que a agenda de transição energética não deve ser usada pelo Estado português e pela União Europeia como “escudo para atropelar processos democráticos”. E lembra que tem de haver discussão sobre os benefícios e as contrapartidas a longo prazo destes projetos.

A Amnistia Internacional Portugal reconhece as vantagens da energia solar face à energia obtida a partir de combustíveis fósseis, mas apela a que os planos para o país sejam capazes de envolver toda a população, de forma inclusiva e transparente.

A AI acredita que o respeito pelos direitos humanos e a justiça climática só são possíveis se as soluções forem capazes de manter o foco na sustentabilidade e o horizonte no planeta que queremos deixar às futuras gerações.

Dados compilados pela AI Portugal para centrais solares com parecer favorável (AIA) e dimensão ≥100 ha