11 Março 2014

No mundo inteiro, centenas de milhões de pessoas, na esmagadora maioria jovens e sobretudo do sexo feminino, estão em risco devido à inação dos governos ou a uma ingerência abusiva sobre a esfera da vida sexual e reprodutiva dos cidadãos. Na semana em que se assinalou o Dia Internacional da Mulher, a 8 de março, a Amnistia Internacional conta quatro histórias que exigem pró-atividade para impedir um futuro cheio de riscos para a saúde e vida de milhões de pessoas.

Sahar Gul: forçada a casar aos 11 anos, sofreu abusos por se recusar à exploração sexual

Sahar Gul contou à Amnistia Internacional que tinha 11 anos quando a família a vendeu como noiva a um homem de 30 anos. O marido, Ghulam Saki, soldado no exército afegão, comprou-a por 260 mil AFN (cerca de 3.340 euros) e levou-a para a casa onde vivia com a família.

“Casei-me com apenas 11 anos. Era muito pequena e não fazia ideia nenhuma do que era a vida de casada e o que acontecia depois de uma pessoa se casar. Quando as mulheres chegaram a minha casa para me levar comecei a chorar. Não queria ir com elas. Mas ninguém se preocupou com as minhas lágrimas, ninguém me ouviu. Eu não queria ir viver noutro sítio, com outras pessoas. Estava tão assustada”, lembra.

Pouco após o casamento, Sahar esteve desaparecida durante vários meses e os pais acabaram por reportar o seu desaparecimento à polícia local. Os agentes descobriram-na quase inconsciente, cheia de ferimentos e incapaz de falar ou de se pôr em pé. Tinha sido fechada numa cave húmida, às escuras, na casa dos sogros. Tinham-na espancado e abusado por ela se recusar a ter sexo com outros homens.

Sahar relatou à Amnistia Internacional que os sogros lhe batiam repetidamente, a queimavam com cigarros ou ferros em brasa, lhe arrancavam as unhas e cabelo. Isto durou seis meses. Quando ela contou aos vizinhos o que lhe estava a acontecer, os sogros prenderam-na na cave. Não lhe davam quase nenhuma comida, nem água. E apesar de os vizinhos terem denunciado o caso à polícia, as autoridades não agiram de imediato para pôr fim àquele tormento e a protegerem. Antes a deixaram ficar na casa dos sogros.

O marido e o cunhado de Sahar fugiram ambos quando a polícia finalmente foi à casa. Continuam em fuga. A sogra, nora e sogro foram detidos, acusados de tentativa de homicídio e condenados a dez anos de prisão. Recorreram: no primeiro recurso, a sentença foi confirmada, mas já em instância superior, no Tribunal de Cabul, a mesma acabou por ser anulada e os sogros e nora de Sahar foram libertados da prisão ao fim de um ano e meio cumprido da pena inicial. Em novo recurso, receberam uma sentença de cinco anos de prisão.

Histórias como a de Sahar Gul são comuns no Afeganistão, onde as autoridades negligenciam com frequência as denúncias de violência doméstica, considerando que estes casos são questões de família, e muitos rejeitam intervir para proteger as mulheres que sofrem estas violações de direitos humanos.

Sahar tem agora 16 anos e vive com a mãe num abrigo para mulheres. Voltou à escola. E está decidida a impedir que outras raparigas sofram a mesma devastadora experiência que ela viveu. Quer vir a ser política no Afeganistão.

“O meu objetivo é tornar-me ativista dos direitos das mulheres, abrir abrigos para mulheres que se encontram em risco no Afeganistão e ajudar outras mulheres que foram sujeitas a violência. Quero proteger outras mulheres. Penso muitas vezes em como podia ter sido morta pelos meus sogros e que não tinha ninguém para me proteger. Quero acabar com esta violência no Afeganistão. Não quero que nem mais uma outra mulher sofra como eu sofri ou de qualquer outra forma”.

Roger Jean-Claude Mbede: três anos na prisão e uma morte evitável por causa de uma mensagem de amor

Em 2011, Roger Jean-Claude Mdebe enviou uma mensagem a dizer “amo-te muito”. Como estava nos Camarões e a mensagem foi enviada para outro homem, Roger foi preso. A polícia interrogou-o ao longo de vários dias, despiram-no e espancaram-no.

Ao fim de um julgamento no qual nem sequer lhe foi possível ter advogado, Roger foi condenado a três anos de prisão pelo crime de “homossexualidade e homossexualidade na forma tentada”. Enviaram-no para uma prisão sobrepovoada onde foi atacado sexualmente, viu ser-lhe recusado tratamento médico que lhe era necessário e foi amiúde espancado pelos guardas prisionais.

A Amnistia Internacional acompanhou o caso, designou Roger Jean-Claude Mbede um prisioneiro de consciência, encorajou ativistas pelo mundo inteiro a defenderem-no e apelou às autoridades dos Camarões para que o libertassem.

Roger Mbede acabou por ser libertado no Verão passado, com base em razões médicas, devido a uma hérnia que requeria hospitalização. De acordo com o testemunho do seu advogado, a família de Roger, que o renegara, recusou também que lhe fossem prestados os cuidados médicos de que precisava. Morreu em janeiro passado. Tinha 34 anos.

Independentemente da causa da morte, os abusos que sofreu às mãos da polícia, das autoridades prisionais, de vizinhos e da própria família conduziram a que lhe fosse recusado acesso ao tratamento de que carecia, tanto na prisão como em casa.

Kopila: a discriminação de género e o prolapso uterino no Nepal (tema de foto)

Kopila tem 30 anos. É uma mulher brahmin que vive do distrito de Kailali, no Nepal. Casou aos 17 anos e teve o primeiro filho um ano mais tarde. É agora mãe de quatro crianças, que têm entre seis e 12 anos. Apesar de os brahmins serem um grupo dominante na hierarquia de castas que existe no país, Kopila é oriunda de uma família pobre e nunca foi à escola.

A família possui um pequeno terreno rural onde Kopila trabalha e vigia o gado. É ela quem faz todo o trabalho doméstico e toma conta dos quatro filhos do casal. Nesta família, como em muitas outras no Nepal, Kopila dá o comer às crianças, depois ao marido e só por fim lhe é permitido comer.

Se Kopila se sentir doente, é o marido quem decide se o problema é suficientemente sério para que ela vá ao posto médico local. Kopila contou à Amnistia Internacional que já esteve grávida após o nascimento do filho mais novo, mas o marido decidiu que ela tinha de terminar aquelas gravidezes através de aborto.

Três dos quatro filhos que teve nasceram em casa, o outro no hospital. Kopila contou que só pode descansar entre 10 a 12 dias após os partos antes de voltar ao trabalho. Tanto durante as gravidezes como logo após os partos teve de carregar muitos pesos, incluindo troncos de madeira, fardos de erva e estrume.

Em resultado destas práticas, Kopila começou a ter sintomas de prolapso uterino (ou útero descaído) aos 24 anos. “Doze dias após o parto, eu já estava a cortar madeira com um machado. O meu marido pediu-me água e tivemos uma discussão. Ele bateu-me com toda a força. Não sei se o meu útero descaiu enquanto estava a cortar madeira ou se foi quando ele me bateu. Mas foi nesse dia que o problema apareceu. Isto foi há seis anos”, conta ela.

Depois começou a sentir dores nas costas e no estômago e não conseguia estar de pé nem sentada. “Sinto muitas dores no baixo abdómen e também nas costas sempre que faço algum trabalho físico duro”, frisa. Kopila conta ainda que o marido a obriga a ter relações sexuais mesmo quando ela não o quer. Se tenta recusar-se, ele bate-lhe.

A única vez em que Kopila pode procurar assistência clínica para a condição de que sofre foi pouco após ter tido os primeiros sintomas. O marido ausentara-se e ela pediu a um irmão que a acompanhasse ao posto médico. “Mostrei ao médico o que se passava e ele empurrou o meu útero de novo para dentro. E disse-me que se o útero voltasse a descair então ser-me-ia posto um anel pessário [dispositivo de látex ou silicone inserido na vagina para suportar o útero]. O médico recomendou-me descanso, mas eu não posso descansar. Tenho muito trabalho para fazer nos campos, tenho de tratar do gado, e cuidar das crianças, muito trabalho pesado. Por isso não voltei ao médico quando o meu útero voltou a cair”.

Kopila explicou à Amnistia Internacional que numa outra ocasião em que se sentiu doente e foi ao médico durante uma ausência do marido, este a espancou quando descobriu, e de forma tão violenta que ela passou a ter medo de regressar ao posto clínico.

Savita Halappanavar: uma vida perdida nos custos de uma confusão

Em 2012, Savita Halappanavar foi hospitalizada com uma gravidez em risco de perda do feto. Ela pediu nessa altura que lhe fosse permitido abortar, mas tal foi-lhe negado. Acabou por entrar em choque séptico e morreu ao fim de poucos dias depois de ter dado entrada no hospital.

Apesar de uma investigação ter concluído que a morte de Savita se deveu a negligência médica, não tendo os médicos reconhecido que o seu estado clínico se estava a deteriorar ao ponto de a pôr em risco de vida, este caso voltou a chamar as atenções para as restritivas leis contra o aborto que estão em vigor na Irlanda.

O aborto é ilegal na Irlanda, com exceção única nos casos em que exista um risco “real e substancial” para a vida – em vez de para a saúde – da mulher. Esta exceção foi regulada por um acórdão do Supremo Tribunal irlandês, em 1992, emitido no caso de uma rapariga de 14 anos que ficou grávida em resultado de uma violação e à qual foi diagnosticado risco de suicídio.

Mas a interrupção voluntária da gravidez continua a ser ilegal para as mulheres que engravidam na sequência de violação ou incesto, ou caso seja a sua saúde que está em risco ou ainda em que existem más formações fatais do feto. A lei consagra penas que podem ir até aos 14 anos de prisão pelo crime de aborto ilegal.

Devido a este quadro legislativo, mais de 150 mil mulheres foram ao Reino Unido, entre 1980 e 2012, para fazerem um aborto – esta é uma média de 12 por dia. Só em 2012, o Ministério da Saúde britânico registou 3.982 mulheres que viajaram para o Reino Unido para interromper voluntariamente uma gravidez.

 

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