- Investigação detalha 18 ataques aéreos e terrestres a escolas e hospitais
- Rússia e Síria visaram deliberadamente alguns dos alvos
- Provas sólidas indiciam envolvimento direto da Rússia em ataques ilegais
A Amnistia Internacional insta o Conselho de Segurança da ONU a manter a ajuda a civis, na zona noroeste da Síria, que tem sido palco de crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Este apelo surge a pouco tempo de expirar uma resolução que permite que a assistência humanitária alcance Idlib.
Hoje, a organização apresenta um novo relatório, intitulado Nowhere is safe for us: Unlawful attacks and mass displacement in north-west Syria (“Nenhum lugar é seguro para nós: Ataques ilegais e deslocamento em massa no noroeste da Síria”) onde estão documentados 18 ataques das forças do governo sírio e/ou da Rússia. A maioria foi registada entre janeiro e fevereiro, tendo atingido instalações médicas e escolas, em Idlib, Alepo e Hama.
Heba Morayef, diretora para o Oriente Médio e Norte de África da Amnistia Internacional“A última ofensiva seguiu um padrão desprezível de ataques generalizados e sistemáticos, destinados a aterrorizar a população civil”
Profissionais de saúde e civis foram mortos e feridos. No terreno, a Amnistia Internacional detetou componentes de munições de fabrico russo, que estão proibidos à luz da lei internacional.
Como consequência das incursões militares, que aconteceram antes do cessar-fogo de 5 de março, quase um milhão de pessoas de Idlib foram forçadas a fugir, ficando novamente sujeitas a condições precárias. Mais de 80 por cento eram mulheres e crianças.
“Mesmo para os padrões da crise calamitosa registada há nove anos na Síria, o deslocamento e a emergência humanitária provocados pelo mais recente ataque a Idlib não tem precedentes. O Conselho de Segurança da ONU não pode cortar a linha vital de ajuda humanitária transfronteiriça, quando milhares de vidas estão em risco”, afirma a diretora para o Oriente Médio e Norte de África da Amnistia Internacional, Heba Morayef.
“A última ofensiva seguiu um padrão desprezível de ataques generalizados e sistemáticos, destinados a aterrorizar a população civil. Entretanto, a Rússia continua a fornecer apoio militar incondicional – inclusivamente através de ataques aéreos ilegais”, complementa a mesma responsável.
Dos relatos às provas sólidas
A Amnistia Internacional entrevistou 74 pessoas, incluindo deslocados internos, professores, médicos e trabalhadores humanitários. Relatos de testemunhas foram comprovados por vídeos, fotografias, análises de imagens de satélite feitas por especialistas, relatórios de voo e comunicações intercetadas da força aérea russa e síria. No caso dos registos em áudio das transmissões dos aviões de guerra, estes fornecem provas sólidas do envolvimento dos militares russos em pelo menos um ataque ilegal, que atingiu um hospital.
De acordo com as autoridades de saúde de Idlib, ataques sírios ou russos danificaram ou destruíram um total de dez instalações médicas, em Idlib e Alepo, entre dezembro de 2019 e fevereiro de 2020. Nove pessoas morreram, entre as quais profissionais de saúde. Dezenas de outras unidades tiveram de ser fechadas.
Médico sobrevivente de um ataque“O meu amigo e colega estava a morrer, enquanto eu conseguia ouvir os gritos de crianças e mulheres”
A Amnistia Internacional documentou ainda ataques que resultaram no encerramento de cinco hospitais localizados em áreas controladas por grupos armados da oposição. Um médico que sobreviveu a um desses ataques – foram três, ocorridos junto ao hospital de al-Shami, em Ariha, no dia 29 de janeiro de 2020 – relatou que pelo menos dois edifícios residenciais foram destruídos. Onze civis morreram, incluindo um colega deste homem, e mais de 30 ficaram feridos. “Senti-me tão impotente. O meu amigo e colega estava a morrer, enquanto eu conseguia ouvir os gritos de crianças e mulheres”, afirmou.
Com base em testemunhos corroborados e outras informações credíveis, particularmente comunicações de voos, a Amnistia Internacional concluiu que este ataque ilegal foi realizado pelas forças russas.
Ataques a escolas
De acordo com a Hurras Network, uma ONG síria de proteção à criança, 28 escolas foram atingidas por ataques aéreos e terrestres, nos dois primeiros meses de 2020. Só no dia 25 de fevereiro, dez instituições de ensino foram atacadas e nove civis morreram.
Professor sobrevivente de um ataque“Dois estudantes estavam à minha frente. Um morreu logo e o outro, milagrosamente, sobreviveu. Tenho a certeza de que foi uma munição de fragmentação”
Bombas-barril, lançadas pelas forças sírias, e munições de fragmentação foram utilizadas em seis ataques investigados pela Amnistia Internacional. Um professor relatou: “Um explosivo caiu perto dos meus pés e senti a carne a ser arrancada. A dor era insuportável. Senti um calor como se os meus pés estivessem a ser queimados. Dois estudantes estavam à minha frente. Um morreu logo e o outro, milagrosamente, sobreviveu. Tenho a certeza de que foi uma munição de fragmentação porque ouvi várias explosões. Conheço muito bem o som de um ataque deste tipo. Ouve-se uma série de pequenas explosões. Como se do céu estivessem a chover estilhaços em vez de água”.
A Amnistia Internacional identificou ainda explosivos 9M27K de 220 mm, fabricados na Rússia e transferidos para o exército sírio. Contêm munições de fragmentação 9N210 ou 9N235, que são proibidas pelas leis internacionais.
Civis deliberadamente visados
O relatório agora divulgado detalha como os alvos civis continuaram a ser visados, configurando uma grave violação do direito internacional humanitário. Além disso, o facto de representarem crimes de guerra obriga à responsabilização criminal de quem ordenou ou cometeu tais atos. Durante os conflitos, os hospitais e outras instalações médicas, bem como os profissionais de saúde e as crianças também estão sujeitos a proteções especiais.
Muitas das infraestruturas visadas estavam numa lista que a ONU tinha partilhado com as forças russas, turcas e da coligação liderada pelos Estados Unidos da América na Síria. Esta destacava os locais que não podiam ser atacados.
Heba Morayef, diretora para o Oriente Médio e Norte de África da Amnistia Internacional“Os responsáveis das Nações Unidas já descreveram Idlib como uma ‘história de horror’ humanitária. Isto só vai piorar, a não ser que o Conselho de Segurança vá além das manobras políticas”
O mais recente ataque a Idlib obrigou quase um milhão de pessoas – mais de 80 por cento eram mulheres e crianças – a fugir para áreas próximas à fronteira da Turquia, entre dezembro de 2019 e março de 2020. Uma mãe de três filhos, cuja família foi deslocada duas vezes nos últimos oito meses, disse: “Minha filha, que está no primeiro ano, tem sempre medo. Ela já me perguntou: ‘Por que é que Deus não nos mata? Nenhum lugar é seguro para nós’”.
Encurralados em faixas territoriais cada vez mais restritas, estes civis continuam a estar sujeitos a condições de vida precárias, numa altura em que a resposta humanitária mantém-se sob enorme pressão. Mais do que nunca, é necessário apoio adequado e sustentado.
Linha de ajuda sob ameaça
Em julho de 2014, o Conselho de Segurança da ONU aprovou, por unanimidade, uma resolução que autoriza a ajuda transfronteiriça no noroeste da Síria e noutras partes do país controladas por grupos armados da oposição. Este apoio não exigiria o consentimento do governo sírio.
A resolução foi prorrogada, repetidamente, desde então – embora com maior dificuldade nos últimos anos e uma redução do seu alcance a partir de janeiro de 2020. A duração da sua vigência vai vigorar até ao dia 10 de julho.
A Síria e os seus aliados estão a tentar terminar o acordo e canalizar a ajuda através de Damasco, o que pode dificultar o trabalho da ONU e de todos os parceiros humanitários. O governo sírio tem procurado restringir as operações através de requisitos burocráticos. Além disso, elaborou uma “lista negra” e perseguiu trabalhadores humanitários que estão associadas a áreas controladas pela oposição. Grupos armados como o Hay’at Tahrir al-Sham também impediram organizações de realizar o trabalho no terreno de forma eficaz.
“Os responsáveis das Nações Unidas já descreveram Idlib como uma ‘história de horror’ humanitária. Isto só vai piorar, a não ser que o Conselho de Segurança vá além das manobras políticas e mantenha a preciosa linha de ajuda humanitária transfronteiriça”, defende Heba Morayef.