8 Fevereiro 2019

 

 

No rescaldo da eleição de Jair Bolsonaro com base numa agenda abertamente contrária aos direitos humanos, um clima de medo permanece no Brasil. Ainda assim, jovens estão a erguer-se e a fazer ouvir as suas vozes. A Amnistia Internacional encontrou sete ativistas pelos direitos humanos que revelam como é viver em Salvador, no Brasil, e como estão a enfrentar a violência contra as mulheres, o racismo e a homofobia…

 

 

 

“Vivo num estado de medo desde pequena” – Lidiane, 33 anos


Eles estão aqui para te proteger, mas podem magoar-te a qualquer momento. Desde que era uma rapariga pequena, esta é a imagem que tenho da polícia. A minha infância foi cheia do som de tiros. Ao crescer, eu não me apercebia do que eram, mas hoje sei o quanto são fatais.

Vivo numa favela, a polícia vem frequentemente à minha comunidade. Eles nunca oferecem qualquer informação nem dizem quem procuram, mas atacarão alguém que se atravesse no seu caminho. Nos últimos anos, a situação agravou-se, por isso estamos a estabelecer toques de recolher e monitorizamos constantemente a situação.

Vivo num estado de medo desde que era uma rapariga pequena. Isso é comum em Salvador, no Brasil. Este medo alimentou a minha paixão pela luta por justiça. Quando fui para a Universidade, eu queria estudar Direito. Era uma forma de estar dentro do sistema e representar as necessidades e assuntos das pessoas na minha comunidade.

No entanto, essa luta por justiça revelou os seus obstáculos. Enquanto mulher negra, eu tenho acesso limitado a certas oportunidades. Enfrento diariamente três estereótipos – sou da periferia, sou uma mulher e sou negra.

Integrar a Amnistia Internacional foi um ponto de viragem. Eu passei a minha vida a lutar pelos direitos humanos e a questionar a desigualdade de género. Quando compareci à minha primeira reunião, conheci pessoas que tinham histórias semelhantes à minha. Elas queriam assumir um rumo diferente e transformar as suas comunidades.

Enquanto advogada em exercício, estou a trabalhar sobre dois casos na minha comunidade, providenciando apoio àqueles que não podem custeá-lo. Quero provar aos outros que nós temos direito a sonhar e que é possível ultrapassar as barreiras que enfrentamos. Podemos estar à beira de um estado crescentemente ditatorial mas, se nos unirmos, a minha esperança é que possamos juntar-nos, resistir e mudar a direção deste país.

 


“A minha mãe foi espancada tantas vezes” – Nubia, 33 anos


O meu pai era alcoólico. Todos sofremos por causa disso. Ele chegava a casa do trabalho e batia na minha mãe, em mim e nas minhas irmãs. Às vezes, escapávamos durante a madrugada e procurávamos refúgio em casa da minha família até o meu pai partir para o trabalho. Ele tinha uma espingarda, e a minha mãe temia o que ele pudesse fazer com ela.

Eu aprendi a aguentar – não tinha outro remédio. A minha mãe não tinha forças para partir, por isso, como eu era a mais velha, era eu quem mais enfrentava o meu pai. Eu colocava-me no meio da briga para proteger a minha mãe. Eu não queria vê-lo bater com a cabeça dela contra a parede ou a quebrar-lhe as costas.

O meu pai parou de beber há cerca de quatro anos, mas eu sinto que ainda não lidei plenamente com aquilo que aconteceu. Eu não fiz nenhum tipo de terapia e, quando falo sobre o que vivi, ainda sinto o mesmo turbilhão de emoções.

Encontrei esperança na defesa de outras mulheres que sofriam com violência doméstica. Muitas das minhas amigas e vizinhas também sofreram violência de género. É por isso que esta causa é tão importante para mim, e que quero empoderar as mulheres para saírem destas situações.

Integrar o Grupo de Jovens da Amnistia Internacional em Salvador fez-me perceber que não estou sozinha. É importante fazer parte de algo maior, especialmente tendo em conta o clima atual.

O presidente Bolsonaro está a semear palavras contrárias aos direitos humanos. Contudo, eu tenho esperança em que as pessoas abram os olhos e vejam que existe outra maneira de viver. Quando trabalhamos juntos, encontramos pessoas que viveram as mesmas realidades que nós, e toda a gente é bem acolhida e representada. Ao trabalharmos juntos, damo-nos uma voz.

 


“Eu vou ser alguém” – Paulo, 29 anos


Nasci e fui criado numa povoação rural na Baía, Brasil, onde o racismo é parte do quotidiano.

Os meus pais compreenderam a importância da educação. Apesar do pouco dinheiro que tínhamos, enviaram-me para uma escola privada. Eu era um de apenas dois alunos negros. Era muito insultado por alunos e professores. Um dos professores chamou-me “pretinho” e, numa ocasião, ameaçou dar-me um murro no rosto.

Eu percebi que o professor estava a ser preconceituoso, por isso decidi ignorar o caso. Pensei para mim mesmo, “Eu vou ser alguém”.

Estudei Teologia na Universidade e, mais tarde, prossegui para um Mestrado em Estudos de Género. Quando estava na Universidade, envolvi-me mais com os movimentos juvenis, incluindo com a Amnistia Internacional, e aprendi sobre direitos humanos.

Por ironia do destino, hoje sou docente na mesma escola onde sofri discriminação e preconceito. Atualmente estou a trabalhar num projeto para garantir que a educação para os direitos humanos se torna uma parte fundamental do currículo escolar, e já ensino direitos humanos nas minhas próprias aulas.

Embora vivamos tempos desafiantes no Brasil, os movimentos sociais estão a fortalecer-se.  A educação para os direitos humanos é uma semente que pode transformar a nossa forma de ver o mundo. Tenho esperança que todas as sementes que planto desabrochem em algo para o mundo.


“A minha mãe foi assassinada pelo seu ex-marido” – Maira, 32 anos


Quando eu tinha 20 anos de idade, a minha mãe foi assassinada pelo seu ex-marido. Ele não conseguiu aceitar o fim do seu relacionamento.

No Brasil, a violência contra as mulheres é corrente – e o caso da minha mãe é um entre muitos. Eu passei um ano em luto. Era difícil encontrar forças para continuar. Pensei que nunca mais voltaria a rir. Tinha sido sempre apenas eu e a minha mãe – ela era a pessoa mais importante na minha vida.

Inicialmente, foi-me difícil trabalhar em temas como a violência de género e o feminismo, por mexerem tanto comigo. Hoje, tenho mais coragem para falar sobre estas coisas.

Eu retirei força de outras mulheres fortes, como as minhas duas tias – uma das quais é como uma segunda mãe. Sem elas, eu não seria a mulher que sou hoje. Elas apoiaram-me tanto que me deram uma razão para continuar a viver.

Desde que a minha mãe morreu, assistir a injustiça é algo que me afeta realmente. Estimulou-me a aderir ao grupo de jovens da Amnistia Internacional em Salvador. Eu percebi o sentido da vida, a sua riqueza e valor. É espantoso fazer parte de um grupo de pessoas com opiniões semelhantes.  Elas apoiam as minhas ideias e fazemo-las acontecer!

Os próximos anos serão difíceis. No entanto, há uma força interior, um poder dentro de nós, e não ficaremos calados. Há um movimento de unidade no Brasil – não desistiremos.

 

“Os meus direitos são atacados quase todos os dias” – Jamille, 26 anos


Enfrentei tantas barreiras apenas por ser uma mulher negra – os meus direitos são atacados quase todos os dias. Sou aluna na Universidade em Salvador. Estou aqui para preencher quotas de diversidade, por isso as pessoas acham que eu não mereço o meu lugar na Universidade, quando tenho todo o direito de aqui estar.

Mas eu ainda tenho esperança. Viver nesta sociedade inspira-me diariamente. Tenho orgulho em dizer que sou uma ativista pelos direitos humanos. É uma maneira de reafirmar às pessoas que os direitos humanos são para toda a gente, e que temos de os defender.

Dado o clima atual, eu receio que nada mude, mas a minha esperança é que, juntos, criemos um mundo que acolha melhor a diversidade e seja menos desigual. Cabe-nos a nós criarmos este mundo, juntos.


“Sou negro. Sou gay. Sou um educador para os direitos humanos” – Israel, 28 anos


A minha história de ativismo começa comigo mesmo – e com aquilo por que passei. Eu sou um homem negro, um homem gay e um educador para os direitos humanos.

Salvador é um lugar perigoso para se crescer, particularmente quando se é jovem, pobre e negro. A cor da nossa pele torna-nos muito mais vulneráveis à violência. Porém, para mim, a parte mais difícil de crescer nesta sociedade foi saber que era gay. A minha família é muito cristã e eu pensei que iria para o inferno se lhes contasse a verdade.

Quando conheci o meu marido, eu sabia que tinha que dizer aos meus pais. Ao início, eles disseram estar bem com isso. Uma semana depois, a minha mãe gritou que ‘os demónios da homossexualidade’ deviam deixar a casa. Eu estou com o meu marido há oito anos e adotámos duas crianças, mas a minha família continua a não querer conhecer-nos.

Mergulhei de cabeça no ativismo. Muitos homens não acham bom ser-se gay, mas eu quero fazer-lhes saber que é. Por isso, desenvolvo nas escolas públicas um projeto no qual ensino os miúdos sobre ‘bullying‘, diversidade, género, sexualidade e direitos humanos. Também faço parte do Grupo de Jovens da Amnistia Internacional em Salvador. Todas as pessoas que integram o grupo são muito corajosas. Erguem-se por toda a gente, independentemente de raça, género, classe ou sexualidade, e lutam por justiça.

Estou a fazer ouvir a minha voz através da educação – ela é chave para os direitos humanos, e uma forma de abrir caminho através da violência. O meu trabalho torna-me realmente receoso. A defensora dos Direitos Humanos Marielle Franco foi atingida a tiro e assassinada somente por defender os direitos de outros. Também pode acontecer-me, mas a luta continua.

“Descobrir pessoas que estão a lutar pelos direitos humanos” – Blenda, 24 anos


Salvador tem a maior população negra no Brasil mas, mesmo assim, eu enfrento muito racismo.

Quando eu tinha 13 anos, os miúdos na escola gozavam com o meu cabelo. Costumavam atirar-me bolas de papel e colavam-me pastilhas no cabelo. Em resultado, cresci com uma baixa autoestima, e com uma ansiedade que conduziu a depressão.

Eu interesso-me pelo trabalho de beneficência desde os meus 12 anos. Mas, muitas das organizações para as quais me voluntariei nunca abordaram assuntos raciais. Quando a Amnistia Internacional Brasil lançou a sua campanha Jovem Negro Vivo em Salvador, eu fiquei muito entusiasmada porque ainda não tinha visto nenhuma outra ONG a trabalhar neste tema.

Já sou ativista há três anos. Um dos destaques é a forma como usamos a QuilomBOX para desenvolver o nosso trabalho. A QuilomBOX é uma caixa que contém ferramentas de mobilização e que pode servir também como projetor. A caixa de materiais fornece uma oportunidade para discutir direitos humanos através da palavra falada, da dança e do hip-hop. Foi criada por diferentes ativistas pelos direitos humanos de várias regiões do Brasil, com o apoio da Amnistia Internacional. É um recurso incrível, porque significa que podemos aprender com outros jovens no país. Este é o tipo de instrumentos de que necessitamos no Brasil. Os próximos anos vão ser difíceis, especialmente para a juventude negra.

É importante descobrir as pessoas que estão a lutar por melhores condições de direitos humanos. Foram estas pessoas que me ajudaram e que me tornaram parte de algo maior.

Fotos: Shona Hamilton/Amnesty International

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