No Dia Mundial do Ambiente, viajamos até ao Peru, onde as comunidades dos Andes e da Amazónia uniram-se para defender a saúde das pessoas e famílias afetadas pela poluição causada por metais tóxicos. Para conseguir isso, formaram uma plataforma, que contou com o apoio da Amnistia Internacional e, recentemente, recebeu o Prémio Nacional de Direitos Humanos do país.
As mulheres indígenas, rurais e urbanas são especialmente afetadas por esta luta diária e, agora, estão determinadas a acabar com a contaminação que afeta os seus corpos, rios e territórios. Ao Estado, pedem que apure responsabilidades e forneça soluções imediatas.

 

 

 

Estudos realizados pelo governo encontraram níveis alarmantes de metais tóxicos em fontes de água na região. Após conhecer os resultados dos testes feitos ao filho, Carmen Chambi soube que esta terrível realidade tinha afetado quem lhe é mais querido.

 

 

“Quando descobri que o meu filho tinha 17 metais tóxicos [no corpo], tomei uma posição e disse: ‘Isto não pode continuar’”

Carmen Chambi, líder comunitária de Alto Huancané, localizada na província de Espinar, a mais de 4000 metros acima do nível do mar.

 

 

“’Estar a sofrer assim faz-me querer morrer”

Melchora Surco – uma pioneira na luta pelo acesso à saúde nesta parte do país.

 

Em La Oroya, na província de Junín, no centro dos Andes do Peru, vive Yolanda Zurita, outra líder comunitária. O Instituto Blacksmith classificou a cidade como um dos dez lugares mais poluídos do planeta. Hoje, esta mulher incentiva outras a lutar pelo presente e pelo futuro dos filhos da sua comunidade.

O Complexo Metalúrgico de La Oroya opera há quase um século na região. O pai de Yolanda Zurita trabalhou na fundição durante por mais de 30 anos, até 1992. De acordo com a filha, sofreu de sérios problemas neurológicos, incluindo convulsões frequentes.

Yolanda Zurita revela que não foi fácil deixar de ser vítima da poluição e passar a estar na linha da frente da luta pela defesa dos direitos humanos da sua família e comunidade, especialmente afetadas pelos altos níveis de chumbo, em concreto no sangue. O momento decisivo, nota, foi quando descobriu que os efeitos da exposição a este metal são irreversíveis.

“Disse para mim mesma, o teu futuro já foi destruído. Mas a responsabilidade passa por trabalhar para garantir que as gerações futuras não passem pela mesma coisa”

Yolanda Zurita

O Centro Nacional de Epidemiologia, Prevenção e Monitorização de Doenças do Ministério da Saúde do Peru documentou 4867 casos de peruanos que foram expostos a metais pesados. O número, no entanto, é parcial e subestima os verdadeiros impactos da poluição na água e na saúde humana. Os representantes da Plataforma Nacional de Pessoas Afetadas por Metais Tóxicos afirmam que há muito mais pessoas expostas diariamente a uma mistura tóxica de poluentes químicos que inclui arsénico, cádmio, chumbo e mercúrio, entre outros.

O impacto que estes metais têm na saúde humana é que não levanta dúvidas. Segundo a Organização Mundial da Saúde, uma exposição prolongada causa vários problemas crónicos, incluindo perda de memória, infertilidade, abortos, danos irreversíveis no desenvolvimento dos fetos, perda de visão, diabetes, doenças hepáticas, insuficiência renal e cancro.

Muitos dos afetados dizem que a responsabilidade pela poluição histórica que prejudica as pessoas e coloca vidas em risco recai principalmente nos megaprojetos da indústria extrativa, que continua em andamento por todo o Peru – sobretudo, mineração e extração de combustíveis fósseis –, e na indiferença do Estado.

Um problema sem fim

Dados oficiais mostram 8448 “passivos ambientais” relacionados com a mineração no Peru. Estes “passivos ambientais” referem-se a instalações de mineração, fluxos de resíduos, emissões e depósitos de resíduos de minas ativas, inativas ou abandonadas que representam um risco para a saúde humana e para o ambiente.

 

Além disso, nos últimos anos, o gasoduto Norperuano derramou, repetidamente, petróleo nos rios e canais da bacia amazónica. Os registos da Agência de Supervisão ​​de Investimentos em Energia e Minas (OSINERGMIN) documentam 51 derrames, entre junho de 1997 e março de 1998.

Em janeiro de 2016, mais de 3000 barris de petróleo foram derramados no rio Chiriaco, na Amazónia, passando depois para Marañon. Este é o território do povo indígena Awajún, o segundo grupo indígena mais populoso do Peru. De acordo com uma resolução do Ministério do Ambiente, o petróleo causou danos significativos na saúde humana, nas fontes de água, nos solos, bem como na fauna e flora da região.

Luisa Teets, uma líder indígena Awajún da comunidade de La Curva, em Chiriaco, lembra-se bem desta tragédia. A mulher viu o derrame “cobrir todo o riacho com petróleo bruto”. À semelhança do Ministério do Ambiente, afirma que a poluição teve um impacto nas culturas e na pesca das quais dependem o modo de vida e subsistência da comunidade.

“A terra mudou. Já não é fértil, as yuccas morrem, apodrecem e o mesmo acontece com os peixes”

Luisa Teets, uma líder indígena Awajún da comunidade de La Curva

Para alimentar a família, Luisa Teets dedica-se à agricultura e pesca no rio. Desde que foi escolhida para desempenha o tradicional papel de Awajún de “Mãe Indígena”, continua a dedicar-se à denúncia dos problemas causados ​​pelo derrame e já conseguiu fazer com que as autoridades locais ouvissem as suas propostas. “Nunca desisto”, garante.

Flor de María Paraná, uma indígena da comunidade Kukama de Cuninico, na Amazónia, também não baixa os braços para levar os responsáveis ​​pela contaminação a resolver os danos que causaram. A mulher exige que o Estado toma uma posição nesta área, de forma que ela e as famílias da sua comunidade não sejam obrigadas a viver com metais tóxicos no corpo, como se isso fosse normal.

Quando o verão chega e as chuvas param, Flor de María Paraná utiliza a água do rio para beber e cozinhar. Estudos do governo concluíram que os níveis de metais pesados encontrados ​​nessas águas ultrapassam os limites recomendáveis para o consumo humano. “Estamos a envenenar os nossos próprios filhos”, alerta. A contaminação das fontes de água tradicionais é um problema que permanece por resolver para muitas comunidades.

Estado tóxico

Um relatório da Amnistia Internacional, publicado em 2017, fez soar o alarme sobre a situação em Cuninico e Espinar, concluindo que o Estado peruano havia violado o direito à saúde das pessoas que pertencem a essas comunidades. A organização exigiu ainda que fosse prestada assistência médica especializada a quem tem metais tóxicos no corpo.

 

Além disso, a Amnistia Internacional  instou o Estado a investigar e publicar as descobertas sobre as fontes de poluição dos recursos hídricos, a fim de controlá-las. Desta forma, podem ser adotadas medidas urgentes para garantir que as comunidades não dependem de água contaminada.

Outras organizações fizeram um trabalho semelhante e instituições académicas investigaram e documentaram os impactos da exposição a metais pesados ​​na saúde e nas fontes de água. Todos chegaram a conclusões semelhantes: as consequências são terríveis para a saúde humana. Até hoje, o Estado não cumpriu com as suas obrigações de fornecer tratamento holístico e eficaz às pessoas expostas a estes poluentes.

Uma nova esperança

A Plataforma Nacional de Pessoas Afetadas por Metais Tóxicos nasce a partir deste contexto, em 2017, tendo o apoio de organizações de direitos sociais e humanos, como a Amnistia Internacional. Missão? Apostar na consciencialização e procurar soluções para os graves problemas de saúde enfrentados por milhares de peruanos.

A plataforma, que representa as pessoas afetadas de 12 regiões, exige a implementação efetiva de uma política nacional e um plano para tratar os problemas de saúde e ambientais causados ​​por metais tóxicos. Paralelamente, pede a criação urgente de uma comissão multidisciplinar de alto nível que priorize este grave problema.

Os esforços já resultaram em conquistas importantes. Antes da formação da plataforma, muitas comunidades afetadas pela poluição tinham de enfrentar sozinhas a interminável luta por apoio. Agora, fortaleceram as suas ligações e capacitaram-se através de troca de experiências, desenvolvimento de competências e trabalho de advocacia com as autoridades e os média.

A plataforma promoveu mudanças políticas e conseguiu colocar a causa que defende na agenda. Em 2018, o Ministério da Saúde aprovou o enquadramento para uma política nacional que prevê o tratamento de pessoas expostas a metais pesados ​​em todo o país – a primeira do género no Peru. Em outubro de 2019, o governo comprometeu-se a criar a comissão multidisciplinar que tinha sido exigida.

Apesar de terem sido registados avanços, todos os dias, milhares de pessoas continuam expostas a poluentes tóxicos e sem acesso a água potável. Para a plataforma, a luta ainda não acabou.

Exemplos de força

Os testemunhos, o trabalho e as propostas de Carmen, Melchora, Flor de María, Luisa, Yolanda e muitas outras mulheres foram fundamentais para pressionar as autoridades a tomarem medidas imediatas, mobilizando milhares de pessoas de forma a defender os seus direitos e a colocar este grave problema de saúde pública, historicamente ignorado, na agenda pública.

“As pessoas [da minha comunidade] confiaram em mim”, diz Teresa Cuñachi, outra mulher indígena Awajún da plataforma, oriunda de Bagua, outro lugar na região amazónica fortemente afetado por derrames de petróleo. “Com esta determinação, estou aqui, hoje, para dizer que vamos ter sucesso. Fiz a promessa ao meu povo: lutar até o fim. Se puder, darei a minha vida para defender a minha terra, a minha água”, assegura.

No entanto, há um preço elevado por defender o ambiente e o território no Peru: difamação, ameaças, criminalização e muito mais. Em 2017, a Amnistia Internacional documentou este padrão de ataques no relatório A Recipe for Criminalization: Defenders of the environment, territory and land in Peru and Paraguay.

Os riscos não enfraqueceram a determinação destas mulheres. A luta pelos direitos à saúde, a água potável e a um ambiente saudável tem-se tornado cada vez mais forte e cada vez mais desconfortável para as autoridades nacionais, que, em diversos momentos, desconsideram as comunidades distantes da capital.

Através da plataforma, foi construída uma agenda diferenciada, com perspetiva de género e exigências de maior participação das mulheres na tomada de decisões. Como revelam os testemunhos, elas são as mais afetadas pela contaminação e assumem a responsabilidade de alimentar e cuidar das suas famílias.

Os principais responsáveis do Ministério da Saúde e da Presidência do Conselho de Ministros do Peru conhecem de perto esta realidade, já que têm falado pessoalmente com as mulheres que integram a plataforma. Mais do que acordos, fotografias ou promessas no papel, o objetivo passa por “exigir resultados”, sublinha Carmen Chambi.

Para elas, é uma questão de vida ou morte. E elas, melhor do que ninguém, sabem o que deve ser feito.