3 Novembro 2016

A pressão exercida pela União Europeia sobre a Itália para que este país “endureça” as suas políticas e práticas sobre os refugiados e migrantes tem resultado em expulsões ilegais e maus-tratos que, em alguns casos, constituem atos de tortura, é revelado em novo relatório da Amnistia Internacional.

Espancamentos, choques elétricos e humilhação sexual estão entre as numerosas denúncias de abusos documentados neste relatório – intitulado “Hotspot Italy: How EU’s flagship approach leads to violations of refugee and migrant rights” (Foco de crise: como a principal abordagem da UE resulta em violações dos direitos de refugiados e migrantes) e divulgado esta quinta-feira, 3 de novembro. A investigação da Amnistia Internacional demonstra que a “abordagem de foco de crise” sustentada pela União Europeia (UE) para o processamento dos fluxos de refugiados e migrantes nos pontos de chegada destas pessoas ao espaço europeu está não só a debilitar os seus direitos a requererem asilo mas tem também alimentado abusos chocantes.

“Na determinação em reduzir os fluxos de chegada de refugiados e migrantes para outros Estados-membros, os líderes da UE levaram as autoridades italianas ao limite – e para lá – do que é legal”, critica o investigador da Amnistia Internacional Matteo de Bellis, perito em Itália. “O que daqui está a resultar é que pessoas profundamente traumatizadas, que chegam a Itália após viagens terríveis, são sujeitas a avaliações repletas de falhas e, em alguns casos, a abusos pavorosos às mãos da polícia, assim como a expulsões ilegais”, prossegue.

Esta “abordagem de foco de crise” foi criada para identificar e registar as impressões digitais de recém-chegados aos países de fronteira da UE como a Itália, avaliar rapidamente as suas necessidades de proteção e, de seguida, processar os seus requerimentos de asilo ou fazê-los regressar aos países de origem. O relatório, baseado em entrevistas a mais de 170 refugiados e migrantes, expõe graves falhas em cada uma destas fases.

No esforço ostensivo de reduzir a pressão sobre os países de fronteira do espaço europeu – como a Itália – a “abordagem de foco de crise” foi combinada com um mecanismo de recolocação de requerentes de asilo em outros Estados-membros da UE. Porém, o componente de solidariedade nesta abordagem tem vindo a demonstrar-se profundamente ilusório: até à data foram recolocadas 1 200 pessoas em Itália, das 40 000 vagas que foram prometidas, enquanto mais de 150 000 chegaram já ao país este ano por via marítima. Dados os enormes perigos inerentes às viagens pelo mar, as autoridades italianas têm liderado os esforços de busca e resgate no Mediterrâneo.

Impressões digitais tiradas à força

A “abordagem de foco de crise”, introduzida em 2015 sob recomendação da Comissão Europeia, requer que a Itália registe as impressões digitais dos recém-chegados ao país. Porém, quem pretenda requerer asilo em outros Estados-membros da UE – talvez porque tenham familiares já ali localizados – deve, no seu melhor interesse, evitar que lhe sejam tiradas as impressões digitais pelas autoridades italianas, para evitar o risco de serem forçados a regressar a Itália, ao abrigo do sistema do Regulamento de Dublin (que consagra o estatuto de refugiado e os procedimentos e obrigações dos Estados nesta matéria).

Sob pressão dos governos e instituições da UE, a Itália introduziu uma série de práticas coercivas para obter as impressões digitais de refugiados e migrantes no país. A Amnistia Internacional coligiu numerosos e consistentes relatos de detenções arbitrárias, de intimidação e uso de força física excessiva por parte das autoridades para coagir homens, mulheres e até crianças recém-chegados à Itália a darem as suas impressões digitais.

A organização de direitos humanos recolheu 24 testemunhos de maus-tratos, 16 dos quais envolvem agressões físicas. Uma mulher eritreia de 25 anos alegou ter sido esbofeteada na cara repetidas vezes por um polícia até ter acedido a registar as suas impressões digitais.

Em vários casos documentados pela Amnistia Internacional neste relatório, refugiados e migrantes contaram terem sido submetidos a choques elétricos com cassetetes de atordoamento. Um rapaz de 16 anos oriundo do Darfur descreveu os maus-tratos a que foi sujeito: “Deram-me choques com um cassetete, muitas vezes na perna esquerda, depois na direita, no peito e na barriga. Eu estava muito fraco, não conseguia resistir e então eles agarraram-me nas mãos e puseram-nas na máquina [de registo das impressões digitais]”.

Um outro adolescente, também com 16 anos, e um homem de 27 alegaram terem sido humilhados sexualmente pela polícia e que lhes infligiram dor nos órgãos genitais. O homem contou aos investigadores da Amnistia Internacional que agentes da polícia em Catânia o espancaram e lhe infligiram choques elétricos antes de o forçarem a despir-se e o torturarem com alicates de três pontas: “Fizeram-me sentar numa cadeira de alumínio, com uma abertura no assento. Seguraram-me nos ombros e nas pernas e apertaram-me os testículos com os alicates e puxaram, duas vezes. Nem consigo descrever como foi doloroso”.

A conduta da generalidade dos agentes da polícia permanece profissional e a vasta maioria de impressões digitais registadas decorre sem quaisquer incidentes, mas aquilo que foi apurado nesta investigação suscita graves preocupações e demonstra que é necessária uma análise independente das práticas correntes.

Triagens

Ao abrigo da “abordagem de foco de crise”, os recém-chegados à Itália passam por uma triagem em que os requerentes de asilo são separados daqueles que as autoridades consideram ser migrantes irregulares. Isto significa que as pessoas, frequentemente exaustas e traumatizadas pelas viagens que fizeram e sem acesso a informação adequada nem aconselhamento sobre os procedimentos de requerimento de asilo, têm de responder a perguntas com implicações potencialmente profundas para os seus futuros.

Uma mulher nigeriana de 29 anos contou à Amnistia Internacional: “Nem sei como é que chegámos aqui, eu estava a chorar… havia tantos polícias, senti-me assustada. Os meus pensamentos estavam longe, nem sequer me conseguia lembrar dos nomes dos meus pais”.

É obrigatório que a polícia peça aos recém-chegados que expliquem por que razões foram para Itália, em vez de se limitarem a questioná-los se pretendem requerer asilo. Uma vez que o estatuto de refugiados não é determinado pelas razões que levaram uma pessoa a entrar num país mas sim pela situação que enfrentam se forem forçados a regressar ao país de origem, aquela abordagem está ferida de falhas fundamentais.

Com base nas extremamente curtas entrevistas feitas aos recém-chegados, os agentes da polícia, que não têm o treino adequado para as conduzir, estão de facto a tomar uma decisão sobre as necessidades de proteção das pessoas. E àquelas a quem não é reconhecido o direito a asilo é emitida ordem de expulsão – incluindo através da repatriação forçada para o país de origem –, a qual os pode expor a graves violações de direitos humanos.

Expulsões

Sob a pressão exercida pela UE, a Itália tem tentado aumentar o número de migrantes que faz regressar aos seus países de origem. Tal inclui a negociação de acordos de readmissão com países que cometem atrocidades chocantes.

Um desses Memorandos de Entendimento (MdE) foi assinado entre a Itália e as autoridades policiais sudanesas em agosto passado, permitindo um processo de identificação sumário que, em algumas circunstâncias, pode até ocorrer no Sudão, depois de a expulsão do território italiano ter ocorrido. Mesmo quando o processo de identificação é feito em Itália, este é tão superficial e tão profundamente delegado nas autoridades sudanesas que não permite fazer a determinação individualizada de que a pessoa não ficará em risco real de ser sujeita a graves violações de direitos humanos ao regressar ao país de origem. O processo resultou já em casos de expulsões ilegais, como é documentado no relatório.

A 24 de agosto passado, 40 pessoas identificadas como cidadãos sudaneses foram postas num avião em Itália rumo a Cartum. Os investigadores da Amnistia Internacional entrevistaram um homem de 23 anos oriundo do Darfur que fez este voo e o qual descreveu como as forças de segurança os aguardavam quando aterraram na capital do Sudão: “Levaram-nos para uma zona especial no aeroporto. Vi um homem ser agredido… Fomos interrogados um a um… Agora tenho medo que [os agentes de] segurança andem à minha procura e, se me encontrarem, do que me farão”.

“A ‘abordagem de foco de crise’, concebida em Bruxelas e executada em Itália, aumentou, não diminuiu, a pressão sobre os países das linhas de fronteira [da UE]. E está a resultar em chocantes violações dos direitos de pessoas desesperadamente vulneráveis pelas quais as autoridades italianas têm direta responsabilidade e os líderes europeus têm responsabilidade política”, frisa Matteo de Bellis.

O investigador e perito da Amnistia Internacional avança ainda que “os países europeus podem remover as pessoas dos seus territórios mas não podem eliminar as suas obrigações ao abrigo da lei internacional”. “As autoridades italianas têm de pôr fim às violações e garantir que as pessoas não são enviadas de volta para países onde ficam em risco de perseguição ou tortura”, remata.

Pedidos de clarificação sem resposta

A Amnistia Internacional levou a cabo quatro missões de investigação em Itália em 2016, tendo entrevistado refugiados e migrantes e feito reuniões com as autoridades italianas e organizações não-governamentais em Roma, Palermo, Agrigento, Catânia, Lampedusa, Taranto, Bari, Génova, Ventimiglia e Como.

Os investigadores da organização de direitos humanos entrevistaram detalhadamente 174 refugiados e migrantes e conversaram brevemente com muitos mais.

A Amnistia Internacional pediu repetidas vezes clarificações e reuniões para discutir estas matérias documentadas no relatório “Hotspot Italy” com o ministro do Interior italiano. A organização não recebeu ainda nenhuma resposta a estas solicitações.

A Amnistia Internacional sustenta que parte da solução para a atual crise de refugiados passa por quatro palavras: eu acolho os refugiados. É esta a declaração de dignidade, de humanidade e de partilha da responsabilidade feita pela organização de direitos humanos. Faça-a também: assine o manifesto!

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