5 Maio 2018

por Anna Błuś, investigadora da Amnistia Internacional sobre direitos das mulheres na Europa

Aproximadamente nove milhões de mulheres na União Europeia foram violadas antes de terem 15 anos. É um número chocante. E igualmente alarmante é o facto de poucos países na Europa tratarem este crime com a seriedade devida – tanto na lei como na prática.

Apenas nove em 33 países europeus reconhecem a verdade simples de que o sexo sem consentimento é violação (contanto as três jurisdições do Reino Unido separadamente).

Que mensagem é que isto dá aos perpetradores? O que é que isto diz às nossas sociedades, onde quem sobrevive a uma violação é esmagadoramente culpada por ter sido sexualmente atacada?

A falta de reconhecimento legal de que o sexo sem consentimento é violação alimenta a perceção de que é responsabilidade das mulheres protegerem-se a si mesmas de violação. Estas atitudes são perigosas e têm de mudar.

A Inglaterra e o País de Gales, a Escócia, a Irlanda do Norte e a República da Irlanda, assim como a Bélgica, Chipre, Luxemburgo, a Alemanha e a Islândia, todos estes países têm definições legais baseadas no consentimento. Dos países nórdicos, amplamente considerados como exemplos da igualdade de género – a Islândia é o único que já introduziu no quadro legal a definição baseada no consentimento.

Mas os restantes países europeus estão muito para trás, com as suas leis penais a definirem ainda a violação com base no uso de força física ou ameaça, coerção ou a incapacidade de autodefesa. Portugal é um dos países que não definiu ainda a violação com base no consentimento.

“A falta de reconhecimento legal de que o sexo sem consentimento é violação alimenta a perceção de que é responsabilidade das mulheres protegerem-se a si mesmas de violação.”

Anna Błuś, investigadora da Amnistia Internacional

O deputado islandês Jón Steindór Valdimarsson, que defendeu a mudança legislativa na Islândia, explicou à revista Reykjavik Grapevine: “Irá provavelmente evitar atos sexuais em que não há consentimento. Esse é a meu ver o principal impacto desta lei”.

Será que o resto dos países nórdicos e toda a Europa seguirão o exemplo?

Países vinculados a consagrarem a base do consentimento

Na Noruega, os políticos desperdiçaram recentemente a oportunidade de o fazerem. A 5 de abril passado, o Parlamento norueguês rejeitou essa reforma legislativa, no mesmo dia em que o Comité de Direitos Humanos das Nações Unidas criticou o Governo do país devido à lei que vigora. Já na vizinha Suécia, o Governo mostra-se determinado em aprovar uma nova “lei do consentimento” antes do verão. E na Dinamarca e na Finlândia estão a ser discutidas ou promovidas por numerosos ativistas e organizações propostas similares.

A definição legal de violação com base na ausência de consentimento não é nova nem inaudita. É um reconhecido padrão internacional de direitos humanos. A Convenção do Conselho da Europa para a prevenção e combate à violência contra as mulheres e a violência doméstica – Convenção de Istambul – largamente aclamada como o mais abrangente enquadramento legal para resolver a violência contra mulheres e raparigas, vincula os signatários a criminalizarem todos os atos sem consentimento de natureza sexual. Apesar de a Convenção de Istambul ter sido ratificada por mais de vinte Estados europeus, a maioria deles ainda não fizeram as reformas devidas às suas definições legais de violação.

“Apesar de a Convenção de Istambul ter sido ratificada por mais de vinte Estados europeus, a maioria deles ainda não fizeram as reformas devidas às suas definições legais de violação.”

Anna Błuś, investigadora da Amnistia Internacional

Nos últimos cinco anos, o Comité das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (Comité CEDAW) tem instado vários países da Europa a alinharem as suas legislações nacionais sobre violação com os padrões internacionais, incluindo com a Convenção de Istambul, e a definirem legalmente a violação com base na ausência do consentimento.

Expectativas sociais falaciosas

Uma sondagem da Comissão Europeia sobre violência de género, de 2016, mostra que quase um terço das pessoas inquiridas consideram que relações sexuais sem consentimento podem ser justificáveis “em algumas circunstâncias”. Nelas se incluem, por exemplo, se a pessoa se encontra embriagada ou sob o efeito de drogas, se vai voluntariamente com alguém para casa, se veste roupas reveladoras, se não diz “não” ou se não ripostar.

Mas, apesar da expectativa de que uma vítima “modelo” de violação riposta contra o atacante, ficar sem reação face ao confronto de um ataque sexual foi identificada como sendo uma resposta fisiológica e psicológica comum, na qual a pessoa fica incapaz de se opor à investida feita contra ela, frequentemente ao ponto de ficar imóvel.

Por exemplo, um estudo clínico feito na Suécia em 2017 revelou que 70% das 298 sobreviventes de violação avaliadas tiveram “paralisia involuntária” durante o ataque.

Num processo em curso no Norte de Espanha, a autópsia da vítima – Diana Quer, que desapareceu em 2016 – não permitiu determinar se a jovem tinha sido violada com base em provas biológicas devido ao grau de decomposição do corpo. Mas o caso desencadeou debates importantes sobre as expetativas falaciosas de que uma mulher resista fisicamente à violação, depois de alguns órgãos de comunicação social terem especulado que a jovem fora morta precisamente por ter ripostado a ataque sexual.

Não só as expectativas sociais, mas também muitos sistemas de justiça penal colocam nas mulheres o ónus de ripostarem em vez de o porem em que os perpetradores não violem. Como demonstra o caso de Diana Quer, quando as mulheres resistem, podem pagá-lo com a vida, quando não ripostam, frequentemente não acreditam nelas.

“Quando as mulheres resistem, podem pagá-lo com a vida, quando não ripostam, frequentemente não acreditam nelas.”

Anna Błuś, investigadora da Amnistia Internacional

Numerosos obstáculos no acesso à justiça

Na Irlanda do Norte, a muito divulgada absolvição por violação e outros crimes sexuais de quatro jogadores de rugby de Ulster provocou um debate por todo o país sobre a adequabilidade dos processos judiciais e a forma como as queixosas são tratadas pelo sistema de justiça.

Durante aquele julgamento, a queixosa foi inquirida por quatro advogados de defesa ao longo de oito dias e a sua ensanguentada roupa interior exibida em tribunal. Esta conduta provocou uma vaga de solidariedade para com a mulher que fora violada tanto na Irlanda do Norte como na República da Irlanda, com milhares de pessoas a participarem em manifestações em Belfast, Cork, Dublin e em outras cidades, e a expressarem apoio através da hashtag#IBelieveHer e de uma página no Facebook onde muitas outras pessoas partilhavam também as suas histórias.

O que o julgamento de Belfast demonstrou com clareza é que até numa jurisdição onde a violação é definida legalmente com base na ausência de consentimento, subsistem numerosos obstáculos no acesso de uma mulher à justiça em casos de violação.

“Com o movimento #MeToo, as vozes das mulheres estão a ser ouvidas como provavelmente nunca o foram. Mas não recai apenas nos ativistas fazer pressão por mudanças.”

Anna Błuś, investigadora da Amnistia Internacional

As definições de violação baseadas no consentimento e as reformas legais não são soluções definitivas para resolver e impedir este crime recorrente. São antes pontos de partida muito significativos.

A implantação e a prevenção são obstruídas por preconceitos generalizados, pela culpabilização da vítima, por estereótipos e mitos, que persistem frequentemente entre quem tem a responsabilidade de evitar que a violação ocorra e de capacitar o acesso das vítimas à justiça.

Com o movimento #MeToo, as vozes das mulheres estão a ser ouvidas como provavelmente nunca o foram. Mas não recai apenas nos ativistas fazer pressão por mudanças. Viver livre de violação é um direito humano. É mais do que chegada a hora de os Estados assumirem a sua responsabilidade e tomarem a iniciativa de reconhecer na lei que o sexo sem consentimento é violação.

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