15 Junho 2016

A teimosa renúncia das autoridades venezuelanas em reconhecerem a atual crise no país a par da recusa em pedirem ajuda internacional estão a pôr as vidas e os direitos de milhões de pessoas em grave risco, avalia a Amnistia Internacional na esteira de uma missão de investigação no país.

Uma equipa da organização de direitos humanos reuniu-se com responsáveis governamentais, representantes de organizações não-governamentais, defensores de direitos humanos, advogados e sobreviventes de violações de direitos humanos em Caracas, em Guarenas, no estado de Mirandas, e também no estado de Táchira, já na fronteira com a Colômbia. Os testemunhos recolhidos indicam uma falta crónica de produtos alimentares e de medicamentos essenciais, com o país a enfrentar uma das maiores crises económicas em décadas.

“A teimosia política está a afetar severamente milhões de pessoas. A combinação letal da grave escassez de alimentos e de medicamentos com os elevadíssimos índices de criminalidade, com persistentes violações de direitos humanos e com políticas mal concebidas, que se focam em tentar manter as pessoas caladas em vez de responderem aos seus pedidos desesperados, constituem uma receita para uma catástrofe épica”, sustenta a diretora da Amnistia Internacional para a região das Américas, Erika Guevara-Rosas.

Esta perita da organização de direitos humanos frisa que “o tempo para as politiquices chegou ao fim”. “O Governo do Presidente [Nicolás] Maduro, a oposição, os empresários, sindicatos e associações profissionais e a comunidade internacional têm de urgentemente encetar um diálogo significativo para identificar e pôr em prática mecanismos inovadores, eficientes e não-discriminatórios, visando fazer chegar ajuda crucial aos milhões de pessoas que dela dependem para sobreviver. Todos os agentes políticos têm de deixar à porta os seus interesses pessoais e pensar nas pessoas que é suposto servirem”, prossegue.

“Se aqueles que estão no poder não fizerem inversão de marcha no caminho que estão a seguir para solucionar esta crise drástica, aquilo que é já uma situação extremamente grave transformar-se-á num pesadelo inimaginável”, avalia ainda a diretora da Amnistia Internacional para a região das Américas.

Escassez de alimentos

A falta de produtos alimentares e de outros bens e serviços essenciais tem vindo a aumentar por todo o país ao longo dos meses recentes.

Na tentativa de mitigar a crescente inflação, o Governo criou um sistema de “preços regulados” para um conjunto de produtos básicos em que se incluem a farinha, o arroz, as massas, óleo alimentar e papel higiénico, entre outros. Estes produtos são vendidos a preços significativamente mais baixos em supermercados privados e estatais. Oficialmente, é permitido aos cidadãos fazerem as suas compras apenas uma vez por semana, sendo as mesmas rastreadas através do número de identificação individual das pessoas.

Porém, dezenas de cidadãos que foram entrevistados pelos investigadores da Amnistia Internacional reportaram que os produtos com preços regulados frequentemente não estão disponíveis, o que força as pessoas a terem de se virar para o mercado negro, onde os preços são proibitivamente altos.

O salário médio na Venezuela é de aproximadamente 30 a 60 dólares mensais (entre os 27 e os 54 euros, variação dependente da taxa de câmbio usada). Um quilo de farinha é vendido nos mercados não regulados por cerca de 2,20€, um litro de leite por 1,80€ e um quilo de massa alimentar por 3,10€. Açúcar e produtos de higiene são difíceis de encontrar.

Centenas de pessoas têm de fazer filas às portas dos supermercados desde a madrugada para garantirem acesso aos produtos, mesmo sem saberem o que estará disponível nas prateleiras.

Esperanza, de 59 anos e avó de duas crianças que reside na cidade de Guarena, a uns 30 minutos de carro de Caracas, contou à equipa da Amnistia Internacional que estava na fila há cinco horas e ainda não tinha conseguido comprar comida nenhuma. “Não como há um dia e meio. Se não conseguir comprar nada hoje, irei para a cama outra vez sem jantar. E terei de deitar os meus netos mais cedo para que eles não me peçam comida”, desabafou.

Várias pessoas entrevistadas pela Amnistia Internacional reportaram que diminuíram drasticamente a quantidade de alimentos que ingerem por dia e que, presentemente, as arepas (panquecas de farinha de milho) são a base da sua nutrição.

Médicos nos hospitais públicos em Guarenas e em San Cristóbal contaram aos investigadores da Amnistia Internacional que têm assistido a um aumento dos casos de subnutrição, de perda de peso e de stress agudo provocado pela escassez de alimentos.

Numa cresce foi testemunhado que as crianças vão para a escola com apenas uma manga para o almoço, o que está a afetar profundamente a capacidade de aprendizagem.

A fome e o desespero estão também a pôr as pessoas em risco num país cujas elevadas taxas de violência policial são bem conhecidas. Jenny Ortiz, de 42 anos e mãe solteira de duas crianças, foi morta a tiro por um agente durante uma operação policial para controlar um numeroso grupo de pessoas que se tinham aglomerado junto a um armazém repleto de produtos alimentares em San Cristóbal, no estado de Táchira. A filha de Jenny Ortiz testemunhou à Amnistia Internacional que a mãe, ao ouvir os primeiros disparos, acorreu ao local para encontrar o filho, de 16 anos, que andava na rua com amigos.

“Não há razão nenhuma para as pessoas estarem a passar fome na Venezuela. Quer a escassez de alimentos se deva à incompetência das autoridades ou a indivíduos sem escrúpulos, é necessária ação urgente para garantir o direito à alimentação para todas as pessoas”, insta Erika Guevara-Rosas.

Falta de medicamentos

A crise económica, a dívida externa e as elevadas taxas de inflação traduzem-se em a Venezuela não conseguir importar medicamentos, nem a matéria-prima para os produzir, tão pouco outros equipamentos hospitalares essenciais. Numerosos profissionais de saúde reportaram aos investigadores da Amnistia Internacional que a falta de medicamentos está a ter um impacto devastador na sua capacidade de tratar os doentes e salvar vidas.

Médicos num hospital em Guarenas relataram que lhes falta frequentemente solução salina, antibióticos e medicamentos para o tratamento de epilepsia. Medicamentos para doenças que comportam risco de vida, incluindo cancro e o Vírus de Imunodeficiência Humana (VIH), também são muito difíceis de obter.

De acordo com a empresa venezuelana de sondagens Datanalisis, a escassez de alimentos e de medicamentos está estimada atualmente em 80%.

O professor universitário de 33 anos Javier contou à equipa da Amnistia Internacional como o pai, de 73 anos, que se encontrava numa clínica privada em San Cristóbal, foi enviado para casa a 23 de maio de 2016. Javier mostrou aos investigadores uma carta escrita pelo médico encarregue do caso, na qual este explicava que o idoso sofria de um estado avançado de cancro e que o hospital não dispunha do medicamento necessário, que não está disponível no país. O pai deste professor recebeu alta devido à falta de medicamentos e morreu alguns dias depois de regressar a casa.

Javier sofre de um problema cardíaco, que requer medicamentos que não existem atualmente na Venezuela. “Já só me restam 18 comprimidos. Não sei o que vou fazer quando acabarem. Na Venezuela estes comprimidos custam um pouco mais de cinco dólares [4,40€] para um mês inteiro, mas agora não os encontro em lado nenhum. Atualmente, se ficamos doentes na Venezuela, morremos. Não sei se vou estar vivo daqui a um mês”, desabafou, com as lágrimas a correrem-lhe pela cara.

Uso indevido do sistema judicial

A Venezuela tem algumas das mais violentas cidades no mundo inteiro – com uma taxa nacional de homicídios de 58 por cada cem mil habitantes, de acordo com os dados oficiais. Grupos locais, incluindo o Observatório Venezuelano de Violência, estimam que aquele índice é até mais alto, de 91/100 000.

E a proliferação de armas ilícitas de pequeno calibre agrava o problema.

Neste contexto, o sistema judicial da Venezuela tem sido responsabilizado por ser incapaz de refrear o crime violento e por, em vez disso, centrar recursos na criminalização daqueles que ousam fazer-se ouvir contra as políticas governamentais.

O sistema judicial no país tem vindo a ser questionado por falta de independência e de imparcialidade: por exemplo, os juízes não detêm os postos de forma permanente e podem ser afastados de funções em qualquer altura pelas autoridades, o que mina a função crucial que devem cumprir.

Os protestos contra o Governo que eclodiram por todo o país em 2014 irromperam em confrontos dos manifestantes com as forças de segurança, do que resultaram 43 mortos, numerosos feridos e dezenas de pessoas foram detidas. Até à data, foram abertas apenas duas investigações a esta vaga de violência e nenhum agente da polícia foi penalizado pelo uso excessivo de força.

Advogados que defendem alguns dos ativistas presos reportaram à Amnistia Internacional que, dois anos passados desde as detenções, muitas destas pessoas permanecem nas prisões junto de criminosos violentos sem jamais terem sido condenadas por qualquer crime. Em alguns casos, os advogados e familiares dos arguidos foram intimidados e perseguidos na tentativa de os impedir de defenderem publicamente a sua libertação.

Rosmit Mantilla, deputado da oposição no Parlamento venezuelano e ativista dos direitos da comunidade lésbica, gay, bissexual, transgénero e intersexual (LGBTI) – e prisioneiro de consciência da Amnistia Internacional – foi detido em 2014. Deduziram-lhe acusações de incitamento à desordem pública, intimidação, obstrução de via pública, fogo-posto, comportamento violento danoso e conspiração para cometer ato criminoso, no contexto dos protestos contra o Governo que ocorreram entre fevereiro e julho de 2014.

O julgamento de Rosmit Mantilla baseou-se tão só nas declarações feitas por um indivíduo não identificado, o qual alegou que o deputado e ativista recebera fundos para financiar as manifestações. Não foi apresentada nenhuma prova objetiva em tribunal e os direitos de Rosmit Mantilla a um julgamento justo e à observação dos trâmites processuais foram violados.

Advogados que representam pessoas presas no contexto de casos politicamente motivados também criticaram os atrasos excessivos nos processos dos seus clientes e os obstáculos com que deparam e que visam impedi-los de levar a cabo uma representação legal eficiente – incluindo sendo barrados de aceder aos processos judiciais dos clientes, de os visitar na prisão e de ter acesso a todas as provas reunidas contra eles.

“A Venezuela tem um sistema judicial cuja independência e imparcialidade são fortemente postas em causa. As autoridades têm de garantir que o sistema de justiça no país não é usado indevidamente para perseguir ou intimidar ativistas e defensores de direitos humanos, e têm de libertar imediata e incondicionalmente todos os prisioneiros de consciência”, exorta Erika Guevara-Rosas.

A advogada Raquel Sánchez, que representa vários manifestantes presos, tem sido alvo de uma campanha intensa de intimidação e de ataques que têm por objetivo parar o trabalho que faz. Mais recentemente, na noite de 6 de junho, três homens encapuzados atacaram-na brutalmente e ao advogado Oscar Alfredo Ríos Santos quando viajavam juntos de carro. Os atacantes partiram um dos vidros do veículo, no que Raquel Sánchez sofreu ferimentos na cabeça.

O país não possui uma estrutura legal e institucional para proteger eficazmente os defensores de direitos humanos, incluindo jornalistas, advogados e juízes, os quais são ameaçados e cujas vidas ficam em risco devido à profissão que desempenham.

“O Governo do Presidente [Nicolás] Maduro e a Assembleia Nacional têm de encetar imediatamente um diálogo consistente para encontrarem formas eficientes de resolver as necessidades urgentes da população na Venezuela, incluindo chegarem a acordo sobre um sistema para solicitarem cooperação internacional. O diálogo tem de assentar no respeito total e na proteção dos direitos humanos de todos os cidadãos na Venezuela sem nenhuma discriminação”, reitera a diretora da Amnistia Internacional para a região das Américas.

Erika Guevara-Rosas frisa ainda que “as autoridades têm de reconhecer e respeitar urgentemente o trabalho legítimo dos defensores de direitos humanos, advogados e jornalistas, e promover a existência de uma estrutura legal e institucional que os proteja de forma eficiente, assim como garantir que estes profissionais conseguem desempenhar o seu trabalho num clima seguro e propício ao exercício dessas atividades”.

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