10 Dezembro 2020

Em ano de crise pandémica à escala mundial, as desigualdades exacerbaram-se e as pessoas que já estavam em situação de maior vulnerabilidade foram ainda mais afetadas. Neste Dia Internacional dos Direitos Humanos, olhamos para este e outros problemas que têm marcado 2020, recordando-nos que, mais do que nunca, é preciso agir para, juntos e juntas, celebrarmos novas conquistas.

 

Portugal

O direito a uma habitação condigna ganhou ainda mais urgência, em contextos de confinamento, de distanciamento social e de necessidades de higiene sanitária devido à pandemia de COVID-19. As pessoas em situação mais precária viram-se com mais incertezas e, geralmente, com menos possibilidades de se protegerem em contexto laboral e de teletrabalho. Os refugiados e requerentes de asilo ficaram em situação de maior vulnerabilidade, com dificuldades adicionais de encontrar emprego e conseguirem prosseguir com a sua integração, para a qual têm no máximo 18 meses.

“Em Portugal, mais de dez mil famílias não têm habitação condigna. Para fazerem o confinamento, tiveram dificuldades muito superiores e em questões concretas. Por exemplo, a falta de eletricidade dificulta o armazenamento de alimentos e o acesso limitado a água pode ter impacto nas práticas de higiene tão importantes em tempos de pandemia”, aponta o diretor-executivo da Amnistia Internacional Portugal, Pedro A. Neto.

Com o confinamento e o maior isolamento social, também as mulheres e jovens vítimas de violência de género e de violência doméstica ficaram mais suscetíveis de sofrerem abusos. Por outro lado, os responsáveis tiveram maior facilidade de esconder e manter a impunidade.

A mutilação genital feminina, apesar de ser considerada crime, continua a ser uma prática. Este ano, em Portugal, foi levado pela primeira vez um caso a tribunal.

No nosso país, continuam a existir episódios de uso excessivo da força pelas autoridades. O caso de Ihor Homeniuk trouxe uma vez mais a descoberto a necessidade de reformas estruturais nas entidades estatais e forças de segurança.

Para Pedro A. Neto, o que aconteceu “é trágico” e, agora, é preciso que se faça justiça. “Há responsabilidade criminal, responsabilidade moral e responsabilidade política. Todas têm de ser apuradas”, sustenta o responsável.

“Um caso destes revela que não estamos plenamente num Estado de direito”, complementa o diretor-executivo da Amnistia Internacional Portugal, antes de acrescentar que é preciso “reformar estruturas”. “Uma série de casos isolados é um padrão, uma tendência”, alerta.

Portugal continua também a registar episódios de discriminação, racismo e de violência com estas motivações. Este ano, assistimos a vários, alguns mais mediáticos, como o caso do jogador de futebol Moussa Marega, que saiu de campo devido a insultos racistas. Mais recentemente, a escrita de frases em paredes de estabelecimentos de ensino. Todos temos pela frente um caminho ainda para fazer até que a discriminação e o racismo deixem de ser uma realidade.

 

COVID-19

A pandemia foi utilizada em alguns países da Europa, como por exemplo a Hungria, como desculpa para a restrição de liberdades de forma desproporcional e desadequada. Também neste país, o problema de longa data da desigualdade de género no mercado laboral foi agravado, com as mulheres a sofrerem níveis ainda mais altos de insegurança e discriminação.

“A pandemia colocou em causa, sobretudo, o acesso à saúde e direitos económicos, sociais e culturais. Em termos de direitos civis e políticos, houve muitas leis que passaram acoberto. Houve silenciamento da imprensa e da sociedade civil à sombra da pandemia”, denuncia Pedro A. Neto.

A vacina traz novos desafios, que são contíguos a esta ideia. Os países mais ricos já compraram doses em número suficiente para administrarem quase três vezes a sua população. No entanto, em 67 países, apenas uma em cada dez pessoas terá acesso à vacina, em 2021. Esta desigualdade ecoa problemas de falta de coordenação e cooperação internacional, mas também a falha em colocar os direitos humanos no centro das respostas e não o lucro económico. A Amnistia Internacional, em conjunto com outras organizações, está e continuará a apelar a que a tecnologia e a propriedade intelectual sobre as vacinas seja partilhada com a Organização Mundial de Saúde para que se possam produzir mais doses, de forma célere, com segurança e eficácia. Para que a vacina seja uma esperança para todas as pessoas e não mais um fator divisivo entre quem pode ou não pagar.

É também importante que todas as pessoas, em todos os países, tenham acesso à vacina, e que não seja apenas para cidadãos nacionais, independentemente da regularização da sua situação no país. Em muitos casos, pessoas refugiadas encontram-se numa espécie de limbo por falha nas respostas e nos mecanismos adequados, não podendo ser duplamente discriminados.

“O vírus não conhece fronteiras. Não vale a pena vacinar uns países e outros não. Os países mais ricos, que representam 14 por cento da população mundial, já fizeram reservas para vacinar os seus cidadãos várias vezes. Já 67 dos países menos ricos não conseguem comprá-las, até porque muitos vivem sufocados com dívidas a algumas dessas nações mais ricas”, constata Pedro A. Neto.

 

Conflitos armados

Situações de conflito, como as que se vivem no Iémen, na Síria ou na Etiópia, colocam as pessoas em risco de sobrevivência. Em Moçambique, vive-se uma grave crise humanitária na província de Cabo Delgado provocada por um grupo armado e pela resposta das autoridades. O número de deslocados já chega a 500 mil.

Um pouco por todo o mundo, migrantes, refugiados e requerentes de asilo encontram barreiras porque os Estados não cumprem as suas obrigações ao abrigo do Direito Internacional. Na Ásia, centenas de milhares de pessoas rohingya continuam sem quaisquer direitos e, recentemente, as autoridades do Bangladesh concluíram um plano para transferir algumas comunidades para uma ilha remota do Golfo de Bengala, que ainda não foi declarada segura para habitação.

Na Europa, propõe-se um novo pacto sobre migração e asilo que não só não traz resposta a muitos dos problemas reais das pessoas que procuram a sua segurança, como tenta varrer o problema, descurando-se da sua responsabilidade com a desculpa de uma melhor agilização dos processos em países como a Líbia ou a Turquia.

“Em primeiro lugar, são necessárias rotas legais e seguras. Há pessoas que pagaram a traficantes para fazerem travessias perigosas, quando poderiam ter viajado em segurança, com o apoio das Nações Unidas. Em segundo lugar, a responsabilidade de acolhimento deve ser partilhada”, enumera o diretor-executivo da Amnistia Internacional Portugal.

Ativistas, defensores dos direitos humanos e organizações da sociedade civil que ajudam pessoas em perigo no Mediterrâneo arriscam-se a enfrentar processos e acusações na justiça, como foi o caso da tripulação do Iuventa – caso mais conhecido porque entre os membros da tripulação se encontrava o português Miguel Duarte.

A criminalização da solidariedade liga-nos também a um outro tema, do discurso de ódio, divisivo e de extremos. Este continuou a crescer e com a pandemia procurou mesmo ganhar terreno em algumas situações, mas nunca conseguiu trazer respostas efetivas.

 

Justiça climática

Contrariamente ao que seria expectável, mesmo com a pandemia, o clima e o nosso planeta continuam a degradar-se a um ritmo galopante. Este foi o ano em que se chegou à maior área desflorestada na Amazónia desde 2008. Foram 11.088km2, entre agosto de 2019 e julho de 2020. É neste contexto que vemos também acontecerem os mais graves e devastadores incêndios na Amazónia, onde se contaram cerca de 63 mil fogos detetados, entre janeiro e 31 de agosto.

Ligado com a proteção dos ecossistemas, dos quais também fazemos parte, está o perigo constante em que se encontram os ativistas ambientais e de direitos humanos. O sul do continente americano, e em especial a Colômbia, continua a ser a zona do mundo mais perigosa para estas pessoas. Frequentemente, são atacadas, perseguidas e mesmo mortas.

 

Repressão e desinformação

Noutros locais do mundo, as defensoras e os defensores dos direitos humanos viram a sua vida em risco e foram detidos ou vítimas da repressão brutal das autoridades. São exemplos recentes os jovens mais conhecidos do movimento pró-democracia que participaram nos protestos pacíficos em Hong Kong, no último ano.

No Vietname, as autoridades continuam a reprimir a liberdade de expressão e a intimidar e perseguir ativistas e defensores dos direitos humanos. Um relatório da Amnistia Internacional mostra como as “gigantes Big Tech”, em especial o Facebook e a Google, são coniventes com o regime e restringem os conteúdos online que expressem dissidência ou que são considerados ataques ao Estado.

A relação entre a tecnologia e os direitos humanos é outra questão marcante de 2020. Desde a privacidade de todas e todos nós, até à proteção de que faz uso de plataformas digitais para o seu ativismo e para a defesa dos direitos humanos. Por outro lado, o ano prosseguiu com mais desinformação, “notícias falsas” e discurso de ódio ou discriminatório nas redes sociais. A Amnistia Internacional mostrou como as medidas tomadas pelo Twitter para proteger as mulheres da violência e dos abusos online, apesar das repetidas promessas, continua a não ser suficiente.

O relatório vem no seguimento de uma investigação de 2018 que demonstrava que mulheres de minorias étnicas ou religiosas, castas marginalizadas, lésbicas, bissexuais ou transgénero, pessoas não-binárias e com deficiência eram desproporcionalmente alvo de ataques e abusos verbais naquela rede. As empresas tecnológicas têm de compreender a sua responsabilidade e as suas obrigações a todos os níveis, na sociedade e em especial na manutenção e garantia dos direitos humanos em qualquer ocasião.

 

Racismo

A morte de George Floyd às mãos de um agente nos Estados Unidos da América chocou o mundo e desencadeou um novo grito de mobilização pela justiça racial e pela reforma da polícia, no país e noutros pontos do mundo. Milhares de protestos e contraprotestos pacíficos foram surgindo, mas muitos acabaram com mais violência policial. Em resposta a este debate, pedimos (e foram alcançadas algumas) reformas estruturais, como leis que proíbem o recurso a estrangulamento.

“O racismo vai-se desconstruindo. Enquanto houver uma ponta de racismo, devemos atuar”, garante Pedro A. Neto.

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