3 Junho 2022

No atual estado de emergência que vigora no país, as autoridades de El Salvador cometeram milhares de detenções arbitrárias e violações do devido processo legal (due process), bem como tortura e maus-tratos, o que levou à morte de, pelo menos, 18 pessoas sob custódia do Estado, anunciou a Amnistia Internacional, na sequência de investigações sobre a crise no país.

O governo de Nayib Bukele declarou o estado de emergência a 27 de março, na sequência de um pico de homicídios, alegadamente cometidos por gangues. Este estado foi já prorrogado por duas vezes.

“Há três anos, encontrámo-nos com o presidente Nayib Bukele, altura em que ele se comprometeu a respeitar os direitos humanos. Mesmo assim, continua a falhar repetidamente com o seu compromisso desde esse momento”, revelou Erika Guevara-Rosas, diretora das Américas da Amnistia Internacional.

“As vítimas da violência dos gangues merecem justiça de forma urgente, que apenas pode ser assegurada através de investigações robustas e julgamentos justos que garantam um devido processo legal e uma sentença efetiva”.

“As vítimas da violência dos gangues merecem justiça de forma urgente, que apenas pode ser assegurada através de investigações robustas e julgamentos justos”

Erika Guevara-Rosas

Nas últimas semanas, uma equipa de resposta à crise da Amnistia Internacional documentou rigorosamente 28 casos de violações de direitos humanos que envolviam 34 pessoas, entrevistando as vítimas e suas famílias, organizações de direitos humanos, jornalistas, pessoas atualmente ou previamente envolvidas na administração da justiça e líderes comunitários. Além disso, a organização solicitou reuniões com várias autoridades, incluindo o presidente Nayib Bukele.

 

Detenção arbitrária, privação de liberdade ilegal e garantias judiciais

O estado de emergência, as recentes alterações ao Código Penal e ao Código de Processo Penal e a sua implementação neste contexto pelos Tribunais Especializados, pela Procuradoria-Geral e pelo Ministério Público, entre outros, limitaram os direitos de defesa, a presunção de inocência, o recurso judicial efetivo e o acesso a um juiz independente. O Direito Internacional dos Direitos Humanos, ao qual as autoridades salvadorenhas estão vinculadas, não permite que estes direitos sejam restringidos, mesmo em estado de emergência.

A Amnistia Internacional descobriu que milhares de pessoas estão a ser detidas sem que os requisitos legais sejam cumpridos, isto é, sem um mandato de captura administrativo ou judicial, sem detenções em flagrante delito, mas apenas  por serem percebidas pelas autoridades como “pessoas criminosas”que vêm assinaladas nos discursos estigmatizantes do governo – porque têm tatuagens, porque são acusadas por um terceiro de terem alegadas ligações a um gangue, porque estão relacionadas com alguém que pertence a um gangue, porque têm registo criminal anterior, ou simplesmente porque vivem numa área sob controlo de um gangue, que são precisamente as áreas com altos níveis de marginalização e que foram historicamente abandonadas pelo Estado.

Após serem detidas, as pessoas são privadas da sua liberdade e, durante as audiências judiciais, a maioria é acusada de pertença a “grupos ilegais”, um crime com pena de 20 a 30 anos de prisão. Durante a detenção e, antes de serem levados perante um juiz (o que normalmente acontece passados 15 dias de detenção, após a suspensão, como parte do estado de emergência, do período máximo constitucional de 72 horas de “detenção administrativa”), os detidos não têm normalmente contacto com o seu representante legal, nem mesmo imediatamente antes da audiência. Nas raras vezes em que o têm, é apenas por alguns minutos. Estas audiências, realizadas de forma sumária, podem ter até 500 pessoas acusadas de cada vez. Praticamente todos os acusados são objeto de acusação por parte da magistratura, mesmo na ausência de qualquer prova.

Em quase todos os casos documentados pela Amnistia Internacional, as pessoas declararam existir momentos em que não sabiam onde estavam os seus familiares. Em pelo menos um caso, o desconhecimento do paradeiro do seu familiar persistia, o que pode constituir um desaparecimento forçado. Esta situação tem conduzido dezenas de familiares a interpor recursos perante a Câmara Constitucional para que a pessoa comparecesse perante um tribunal (habeas corpus). No entanto, até à data, as organizações de direitos humanos relataram que não houve qualquer progresso nestes processos.

Num destes casos, em abril, as autoridades prenderam uma mãe solteira e vendedora de comida, na sua casa, sem qualquer mandado de prisão ou busca, por alegações de que seria membro de um gangue. Na sua audiência judicial conjunta, com mais de 500 pessoas a serem julgadas simultaneamente, um Tribunal Especializado impôs-lhe uma ordem de prisão preventiva pelo crime de “pertença a um grupo ilegal”,apesar de não ter existido nenhuma prova apresentada nesse sentido, de acordo com a sua família. Anos antes, as autoridades já tinham prendido esta mulher sob a mesma acusação, espancando-a violentamentena prisão. Para além de não poderem provar as acusações, foi-lhe atribuída uma multa após a sua denúncia do comportamento das autoridades. Desde então, a mulher e os seus filhos foram deslocados à força, em resultado das constantes ameaças da polícia.

A filha desta mãe solteira relatou ainda que a polícia local voltou a sua casa e lhe apontou uma arma à cabeça, ameaçando-a de que seria a próxima. Em maio, a jovem foi presa pelos mesmos polícias que prenderam a sua mãe. A Amnistia Internacional documentou dois outros casos em que as prisões foram precedidas de situações em que as vítimas tinham denunciado o abuso policial às autoridades em anos anteriores.

“É alarmante ver como os três poderes do Estado, incluindo as instituições judiciárias, estão a atuar para processar milhares de pessoas de forma sumária, ilegal e indiscriminada. A prisão e a acusação sem o devido processo de mais de 35 mil pessoas em menos de três meses não teriam sido possíveis se as autoridades judiciais tivessem cumprido o seu mandato”, referiu Erika Guevara-Rosas.

 

O direito à vida e à integridade física

A Amnistia Internacional documentou também alguns casos de tortura e maus-tratos dentro de estabelecimentos prisionais. Os depoimentos recolhidos revelam o nível de controlo que os membros dos gangues exercem dentro das celas e a superlotação extrema, que resulta em violações do direito à vida e à integridade física. Até ao final de maio, a comunicação social de El Salvador informou que, devido ao aumento das prisões, 1,7% da população do país com mais de 18 anos estava detida, resultando em superlotação de mais de 250% da capacidade das prisões.

Num desses casos, um adolescente de 16 anos foi preso a 29 de abril por membros da polícia e do exército e ficou detido durante 13 dias, sendo acusado de pertencer a um grupo ilegal. Na primeira noite em que esteve encarcerado, foi acorrentado à parede e espancado pelas forças da autoridade. Mais tarde, acabou por ser transferido para um centro de detenção juvenil, onde membros de um gangue com quem dividia uma cela o torturaram repetidamente, esmurrando-o na cabeça e no rosto, pontapeando-o no peito, abdomen e pernas. O jovem revelou ainda que lhe atiraram um saco com urina à cabeça, sublinhando que os funcionários do centro de detenção juvenil sabiam e toleravam esses atos de tortura e maus-tratos.

A 28 de maio, pelo menos 18 pessoas teriam morrido sob custódia do estado durante o estado de emergência. Dadas as precárias condições dos estabelecimentos prisionais, há o receio de que o número de vítimas mortais possa aumentar nos próximos dias.

A Amnistia Internacional documentou a morte de William Alexander Galeas Gonzales, de 36 anos, que foi detido a 13 de abril com a sua mãe e a sua irmã, por supostas ligações a gangues. A 12 de maio, uma agência funerária visitou a família para anunciar a morte de William. Até ao momento, as autoridades não procederam à notificação oficial da sua morte. Segundo um documento do Instituto de Medicina Legal, o laudo pericial aponta para um edema pulmonar como causa da morte. No entanto, a família de William relatou que observou vários hematomas quando teve de reconhecer o corpo.

 

Direitos da criança e do adolescente

Segundo dados do Instituto Salvadorenho para o Desenvolvimento Integral da Criança e do Adolescente, entre 27 de março e 17 de maio, pelo menos 1190 jovens com menos de 18 anos foram detidos e mantidos em centros de detenção juvenil. A maioria deles foi acusada de pertencer a grupos ilegais ou organizações terroristas.

A Amnistia Internacional relatou o caso de dois primos, de 14 e 15 anos, detidos a 26 de abril enquanto brincavam do lado de fora da sua casa, em Ilopango. As famílias dos jovens revelaram que a polícia os acusou de “parecerem criminosos”, não apresentando uma justificação para a detenção dos jovens. Desde então, as mães não conseguem estabelecer contacto com os filhos e têm poucas informações sobre os processos criminais que os mesmos enfrentam, lamentando que o advogado de defesa designado pelo Estado lhes tenha dado muito pouca informação sobre o caso, argumentando mal em nome dos seus filhos no decorrer da audiência judicial.

 

Jornalistas, defensores dos direitos humanos e funcionários judiciais

A Amnistia Internacional conversou com cinco jornalistas salvadorenhos, três dos quais tiveram que mudar de casa ou deixar o país por causa do assédio do Estado ou de terceiros. Dois declararam ter informações fidedignas ​​sobre possíveis investigações criminais contra eles como forma de retaliação.

Durante o estado de emergência, não só foram aprovadas alterações à lei que colocam em risco de criminalização as pessoas que denunciam o fenómeno dos gangues e potenciais penas até 15 anos de prisão, como também os funcionários públicos e os meios de comunicação do Estado acusaram jornalistas e investigadores de terem ligações com gangues, na tentativa de os impedir de realizarem o seu trabalho.

A 11 de abril, o presidente Bukele tuitou que Juan Martínez, investigador e antropólogo especializado em questões de violência e gangues, era “lixo”, após uma entrevista na qual expressou a sua opinião sobre o fenómeno dos gangues no país. Juan Martinez disse à Amnistia Internacional que as autoridades estão a tentar silenciar o jornalismo, além de desacreditarem peças recentes de jornalismo de investigação que apontam para a existência de negociações secretas entre o governo e os gangues. Horas depois de o presidente Bukele ter denegrido publicamente Juan Martínez, o diretor dos Serviços Prisionais do Estado acusou os jornalistas do jornal El Faro de serem terroristas e mensageiros de gangues e mercenários.

Da mesma forma, outros funcionários públicos acusaram as organizações de direitos humanos de apoiar o crime cometido por gangues. Além disso, a Rede Salvadorenha de Defensores de Direitos Humanos registou a prisão de seis líderes comunitários do município de Jiquilisco, em Usulután, no contexto do estado de emergência. As autoridades colocaram-nos em prisão domiciliária, sem apresentarem razão para a sua detenção e, posteriormente, foram acusados ​​de ligações a gangues.

Num outro caso, a Amnistia Internacional documentou a detenção de quatro sindicalistas, incluindo Dolores Almendares, que trabalha no Município de Cuscatancingo e é secretária-geral do sindicato SETRAMUC, sendo presa a 6 de maio, enquanto estava de licença médica com uma lesão no braço. Acabou por ser indiciada e colocada em prisão preventiva, acusada de pertencer a um grupo ilegal, mas a sua família e colegas sindicais acreditam que a prisão pode estar ligada à sua ação na defesa pelos direitos dos trabalhadores.

Além disso, a Amnistia Internacional conversou com dois ex-funcionários judiciais e um juiz em exercício, que detalhou os ataques à independência judicial sofridos pelos envolvidos na administração da justiça, incluindo reprimendas e apelos de funcionários judiciais de alto nível, exigindo que não absolvam os acusados durante o estado de emergência e que imponham a prisão preventiva como regra geral.

Artigos Relacionados