Para assinalar o Dia Internacional do Aborto Seguro, que se celebra este domingo, 28 de setembro, a especialista Fernanda Doz Costa fala sobre os perigos dos abortos inseguros, de algumas das pessoas que apoiou ao longo da vida e de ações simples e fáceis que podemos levar a cabo para garantir que pessoas em todo o mundo tenham acesso a abortos seguros. “A campanha da Amnistia Internacional visa tornar o aborto visível, protegido e sem estigmas, porque o silêncio apenas reforça a opressão e o estigma”, diz, em entrevista.
Fernanda Doz Costa licenciou-se em advocacia de direitos humanos na Argentina antes de se tornar diretora de Género, Justiça Racial e Direitos dos Refugiados da Amnistia Internacional.
Qual o seu papel na Amnistia Internacional e o que a levou a essa função?
Eu lidero o trabalho da Amnistia Internacional sobre género, justiça racial e direitos dos refugiados. A minha trajetória até esta função foi moldada pela experiência de ter crescido na Argentina durante a ditadura e de ter sido ativista durante os meus anos de faculdade de Direito, defendendo a justiça social e os direitos humanos.
Com formação em Direito, sempre me senti atraída pela interseção entre os quadros jurídicos e o ativismo — a forma como podemos usá-los para desafiar a injustiça e criar um mundo onde todos possam prosperar e desfrutar de direitos humanos plenos. Pode dizer-se que sempre levei a injustiça para o lado pessoal, e ingressar na Amnistia Internacional foi uma das minhas formas de resistir!
Quais as áreas que lhe interessam especialmente?
Tenho um interesse especial por justiça reprodutiva, igualdade de género e justiça racial. Também trabalhei muito com povos indígenas e, a par com o meu ativismo feminista, essas foram algumas das experiências de aprendizagem mais incríveis para mim.
Essas áreas estão profundamente interligadas. Quando falamos sobre direito ao aborto, não estamos a falar apenas sobre saúde. Estamos a falar sobre igualdade, dignidade e autonomia. O direito de acesso ao aborto e outros serviços de saúde reprodutiva não são um “luxo”, são direitos humanos básicos que afetam profundamente a qualidade de vida e o futuro das pessoas e dos seus entes queridos.
No meu país, como em muitos outros em todo o mundo, quem tem dinheiro sempre teve acesso ao aborto, seja ele legal ou não. É por isso que, para mim, essa é uma luta pela justiça social e económica.
O direito ao aborto é uma área importante do seu trabalho na Amnistia Internacional – porque é uma questão tão urgente?
O aborto é um direito humano. No entanto, em todo o mundo, as pessoas que procuram ou realizam abortos enfrentam a criminalização, estigma e violência. O facto de os nossos corpos e a nossa autonomia reprodutiva ainda serem objeto de debate por parte de líderes religiosos e políticos é um sinal claro de que o patriarcado molda as nossas vidas de forma muito profunda e que há muito trabalho a fazer.
Não há nenhum outro serviço de saúde, especialmente aqueles necessários aos homens, que tenha este nível de oposição organizada e financiada globalmente.
“O facto de os nossos corpos e a nossa autonomia reprodutiva ainda serem objeto de debate por parte de líderes religiosos e políticos é um sinal claro de que o patriarcado molda as nossas vidas de forma muito profunda e que há muito trabalho a fazer.”
Fernanda Doz Costa
A campanha da Amnistia Internacional visa tornar o aborto visível, protegido e sem estigmas, porque o silêncio apenas reforça a opressão e o estigma. O aborto é um serviço de saúde, e a saúde é um direito humano que está atualmente sob imensa ameaça a nível global. É por isso que a Amnistia Internacional está a dar prioridade a esta questão, e também porque a desigualdade estrutural está no centro do debate.
Quais são os estigmas que as pessoas enfrentam quando se trata de fazer um aborto?
O estigma manifesta-se de várias maneiras: vergonha, isolamento, medo do julgamento e até acusações criminais. Os profissionais de saúde são ostracizados, os ativistas pelos direitos ao aborto são ameaçados e as pessoas que procuram ou realizam abortos vistas como criminosas, por tomarem decisões sobre os seus próprios corpos ou por apoiarem aqueles que precisam de cuidados de saúde.
Este estigma é uma barreira poderosa ao acesso aos cuidados de saúde relacionados com o aborto e expõe ativistas, médicos, enfermeiros e pessoas que procuram cuidados de saúde a um stresse e discriminação imensos, que afetam o seu bem-estar físico e saúde mental a longo prazo.
Em muitos casos, esse estigma leva à negação de cuidados de saúde e à perda de vidas que poderiam ter sido salvas. Um exemplo disso é o caso da mãe de 28 anos, Josseli Barnica, que morreu no Texas, em 2024, depois de os médicos terem adiado o seu tratamento por medo da proibição estadual do aborto após seis semanas de gravidez. Como isso pode ser considerado “pró-vida”?
Qual é a situação do direito ao aborto em todo o mundo? Por exemplo, quais são os países menos progressistas? E quais os mais progressistas?
Estamos a ver um quadro misto. Países como a Argentina, México, Colômbia e França fizeram avanços históricos na descriminalização do aborto e na sua consagração na lei e na constituição. Por outro lado, El Salvador, Malta e partes dos EUA continuam a impor proibições totais ou quase totais. Na Namíbia, o aborto é severamente restringido e, em Marrocos, a criminalização do aborto leva a consequências devastadoras para mulheres, meninas e pessoas que podem engravidar. A luta continua, no entanto, em muitos países.
O que ajudou a promover o direito das pessoas ao aborto? O que o colocou em risco?
O progresso veio de movimentos feministas de base, defensores corajosos dos direitos humanos e solidariedade internacional. A Onda Verde na América Latina é um exemplo poderoso.
Mas retrocessos, como a decisão do Supremo Tribunal dos EUA de reverter o direito ao aborto, encorajaram as forças antiaborto, aumentaram o financiamento para campanhas regressivas, cortaram o apoio financeiro à saúde reprodutiva nos países mais necessitados e levaram à censura de informações sobre o aborto online.
“Retrocessos, como a decisão do Supremo Tribunal dos EUA de reverter o direito ao aborto, encorajaram as forças antiaborto, aumentaram o financiamento para campanhas regressivas, cortaram o apoio financeiro à saúde reprodutiva nos países mais necessitados e levaram à censura de informações sobre o aborto online.”
Fernanda Doz Costa
Na verdade, é sabido que não se pode “prevenir” o aborto, só se pode torná-lo inseguro e perigoso quando se proíbe. Portanto, essa campanha contra os direitos só levará a mais sofrimento humano e perda de vidas.
Há alguma história de pessoas a quem tenha sido negado o aborto e que a tenha afetado?
Uma que se destaca é o caso de Belén. Uma mulher que foi acusada de homicídio qualificado depois de ter um aborto espontâneo num hospital público em Tucumán, Argentina, em 2014. Belén, como era conhecida, acabou por ser libertada da prisão em 2017 e absolvida de todas as acusações pouco tempo depois.
O caso gerou grande indignação por parte das pessoas, tanto na Argentina como em todo o mundo, e acabou por contribuir para que a Argentina legalizasse o aborto no final de 2020.
A história de Belén é um forte lembrete do que está em jogo.
Há alguma história de mulheres que tenha apoiado e que tenha ficado gravada na sua memória?
De facto. A história de Vannesa Rosales, uma professora na Venezuela que ajudou uma sobrevivente de violação de 13 anos a ter acesso a um aborto seguro, é profundamente comovente. Vanessa foi presa e acusada de ajudar no acesso ao aborto, mas manteve-se firme no seu compromisso com a justiça. Após uma poderosa campanha de apoio, foi libertada da prisão a 21 de julho de 2021, após passar nove meses detida, seis dos quais em prisão domiciliária. A sua coragem, juntamente com o apoio global que recebeu, mostra o poder da solidariedade.
Quais as barreiras mais inesperadas que as pessoas enfrentam quando se trata de fazer um aborto?
Mesmo quando legal, o acesso pode ser prejudicado por períodos de espera, aconselhamento obrigatório, autorizações de terceiros ou requisitos de denúncia policial. A objeção de consciência/recusa de atendimento por parte dos prestadores de saúde restringe a disponibilidade, na prática, como foi observado durante o nosso trabalho na África do Sul.
A censura digital e a desinformação nas principais plataformas limitam a orientação confiável. O estigma, bem como as pressões religiosas e sociais, impedem as pessoas de procurar atendimento. A distância, o custo, a falta de privacidade e infraestruturas deficientes, especialmente em áreas rurais, restringem ainda mais o acesso. Onde os serviços são bloqueados, as pessoas muitas vezes recorrem a métodos inseguros, causando danos maternos evitáveis.
Uma das barreiras mais negligenciadas é a censura online. Plataformas de redes sociais como a Meta e o TikTok estão a remover conteúdos relacionados ao aborto, tornando mais difícil às pessoas acederem a informações que salvam vidas.
Uma das barreiras mais negligenciadas é a censura online. Plataformas de redes sociais como a Meta e o TikTok estão a remover conteúdos relacionados ao aborto, tornando mais difícil às pessoas acederem a informações que salvam vidas.”
Fernanda Doz Costa
Como as pessoas podem apoiar o direito ao aborto?
Partilhando informações precisas, desafiando o estigma e apoiando os defensores do aborto no seu país. Escrevendo uma canção ou uma peça de teatro sobre o direito ao aborto. Usando um pin pró-escolha ou colando um autocolante pró-escolha no carro ou no computador portátil. Cada ação conta.
Há muitas maneiras de ajudar. Participem em campanhas locais lideradas pela Amnistia Internacional na Polónia, Marrocos, EUA, Serra Leoa, Irlanda do Norte e noutros locais. Entrem em contacto com os nossos colegas e juntem-se à luta. Assinem esta petição para proteger o direito ao acesso ao aborto nos EUA. Saibam mais sobre como apoiar ativistas de direitos humanos que defendem o direito ao aborto.
Também podem partilhar informações precisas e desafiar mitos para reduzir o estigma, envolver-se em “advocacy” por meio de petições, campanhas e contato direto com decisores (em África, visar parlamentares tem funcionado em países como o Maláui), e pressionar plataformas tecnológicas para manter conteúdo confiável e localizado acessível.
Como a sua formação em direito tem apoiado o seu papel na Amnistia Internacional?
O direito dá-me as ferramentas para analisar sistemas de opressão e defender a mudança. Ajuda-nos a responsabilizar os governos, a elaborar recomendações políticas e a enquadrar o direito ao aborto como um direito humano. Mas não se trata apenas de conhecimentos jurídicos — trata-se de usar a lei para amplificar vozes e desmantelar a injustiça.
Como relaxa depois de lidar com assuntos pesados?
Encontro consolo na comunidade e na solidariedade coletiva — conectando-me com colegas, amigos e ativistas que partilham os meus valores e a minha missão. Também reservo tempo para a natureza, música e leitura. É importante recarregar as energias, porque a luta pelos direitos humanos é uma maratona, não uma corrida de velocidade.
O que a Amnistia Internacional está a fazer para apoiar o direito das pessoas ao aborto?
Estamos a realizar uma campanha global chamada “1000 maneiras de apoiar o direito ao aborto”, defendendo o direito ao aborto em países importantes como a Serra Leoa, Polónia, EUA, Marrocos e Irlanda do Norte. Estamos a publicar relatórios, lançar podcasts, apoiar defensores do direito ao aborto e pressionar por reformas legais. O nosso objetivo é criar um ambiente propício onde o aborto seja seguro, legal e acessível para todos.
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