20 Outubro 2021

por Samira Hamidi, Amnistia Internacional

Como mulher afegã e responsável de campanhas na organização internacional de direitos humanos Amnistia Internacional, nunca experienciei nada pior do que ver o meu país desmoronar-se. Ainda que me considere afortunada por permanecer fisicamente bem, a nível psicológico estou devastada pela ansiedade, incerteza, medo e raiva das últimas semanas.

Durante a guerra civil dos anos 90, vi o meu pai mudar constantemente de canal, entre a rádio e a televisão, ansioso pelos últimos desenvolvimentos. Agora, dou por mim a fazer o mesmo, de coração partido pela dor que este país, que tanto amo, está a viver, assim como pela devastação que ocorre, à medida que as vitórias, pelas quais as mulheres afegãs como eu trabalharam tão arduamente durante estas décadas, desaparecem diante dos meus olhos.

Os Estados Unidos da América (EUA) arrastaram uma guerra em nosso nome, mostraram pouco compromisso e sinceridade, e deixaram-nos a lutar no fogo do inferno, por nossa conta e risco. As mulheres e as raparigas jovens questionam o que o futuro lhes reserva, sem planos ou disposições tomadas pela comunidade internacional ou pelos EUA que garantam a sua segurança ou bem-estar.

 

As Mulheres como Construtoras da Nação 

Há duas décadas que o governo dos EUA tem falhado as suas promessas de apoiar o povo afegão durante a sua presença militar no meu país. Ainda assim, continuo a deparar-me com uma narrativa do governo americano que responsabiliza o meu povo. Estamos todos agrupados nos atos dos nossos líderes e as nossas ações são todas moldadas à luz de políticos como Ashraf Ghani. Um país de mais de 35 milhões de pessoas continua a ser pintado numa única pincelada, à medida que a realidade que enfrentamos e o Afeganistão que é interpretado estão dissociados um do outro, e todo o país sofre a punição pelos atos de uns poucos.

Dizem-me que o progresso das mulheres e raparigas na vida política, económica e social do país se deve aos Estados Unidos e que nos tornámos advogadas, médicas, juízes, professoras, engenheiras, atletas, ativistas, políticas, jornalistas, burocratas, empresárias e agentes da polícia, porque a América priorizou os nossos direitos humanos.

Isto é insultuoso para qualquer mulher e rapariga que tenha defendido os seus próprios direitos, colocando-se em risco por isso. De facto, antes de décadas de guerra, as mulheres e as raparigas ocupavam um espaço na sociedade muito semelhante ao dos Estados Unidos. Eram professoras, eram médicas, participavam na educação conjunta. Não podemos ser responsabilizadas pelas severas restrições que nos foram impostas durante o regime talibã, dado que o país sofreu uma guerra e nos foram negadas oportunidades no acesso aos nossos direitos humanos, como a educação e os cuidados de saúde.

As mulheres têm estado na linha da frente do trabalho de construção da nação que os EUA nunca avançaram. As mulheres afegãs são independentes e fizeram grandes progressos, mas agora, tememos que o passado se repita, quando vemos os talibãs tentarem privar-nos dos nossos direitos e expulsar-nos da esfera pública, uma vez mais.

As mulheres afegãs são independentes e fizeram grandes progressos, mas agora, tememos que o passado se repita, quando vemos os talibãs tentarem privar-nos dos nossos direitos e expulsar-nos da esfera pública, uma vez mais

Sentir-se encurralado no Afeganistão

Falei com a minha sobrinha de 14 anos na semana passada, que me disse que receava ser capaz de continuar a ir à escola. O seu medo está hoje no coração das mulheres e raparigas de todo o meu país. O sentimento de terror e incerteza permeia ao longo das nossas conversas, mesmo quando nos agarramos à esperança.

Neste momento, o meu desejo mais profundo é que as mulheres e raparigas jovens possam viver vidas normais e manter-se no controlo dos seus destinos. No entanto, o que vejo diante de mim é um grupo preparado e desejoso detomar novamente o controlo da vida das mulheres e raparigas, da forma mais rápida e bruta possível, sem planos para voltar a reconhecer as mulheres afegãs como uma parte igual da metade da população.

Uma mulher que conheço, que é membro do conselho provincial no norte do país, sente-se agora presa no Afeganistão, incapaz de ver um futuro para si e para as suas filhas. “Com as restrições impostas pelos talibãs, penso que não serei capaz de viver livremente”, relatou-me ela.

Durante 20 anos, esta mulher arriscou a sua vida a trabalhar pelos direitos humanos e pelos direitos das mulheres,apenas para se sentir traída durante uma retirada caótica do aeroporto de Cabul, que a deixou preocupada com a segurança das suas filhas. Ela e estas filhas são quem sustenta maioritariamente a família, uma vez que o seu marido se encontra doente.

Descreveu-me a réstia de esperança e sonhos que muitas mulheres no Afeganistão agora guardam: “gostaria de me mudar para um país onde as minhas filhas pudessem completar a sua educação e encontrar formas de ainda trabalhar para o Afeganistão. Já deixei a minha casa, as minhas esperanças, as minhas aspirações, os sonhos que tinha para realizar na minha província, assim como 30 anos de bens. Tudo o que me resta são os meus quatro filhos e quero certificar-me de que têm a vida livre que merecem”.

 

Comunidade Internacional falha para com o Afeganistão

É fácil dizer agora que o que foi feito não se pode apagar, e que nada mais pode ser feito, quer pelos Estados Unidos quer pela comunidade internacional. Entre nós, também nós nos sentimos desmoralizados na conclusão da saídados EUA, incapazes de confiar na comunidade internacional ou de acreditar que os nossos riscos serão levados a sério e as nossas vidas consideradas importantes.

Uma palestrante na província de Ghazni contou-me este fim de semana: “Não sei que obstáculos me esperam, mas sei que serei prejudicada se for deixada de fora. Todas as pessoas têm medo e estão preocupadas com o seu futuro. Perdemos os nossos empregos. Não temos salários. Nós, mulheres, somos especificamente convidadas a ficar em casa. Conheço muitas mulheres que são o ganha-pão das suas famílias. Que devem elas fazer? Como é que as suas famílias irão sobreviver? Estou preocupada com uma catástrofe humana diferente de todas as anteriores e, mesmo assim, o governo americano ainda não reconhece a realidade que enfrentamos, o que me deixadesapontada”.

A comunidade internacional tem falhado ao meu país e ao meu povo em cada curva, uma vez que a saída do Afeganistão não foi nem digna nem humana. Essas evacuações deveriam ter acontecido de forma humana. O prazo de 31 de agosto necessitava de ter sido prolongado. Mas já não tenho energia para me deter no que deveria ter acontecido.

A comunidade internacional tem falhado ao meu país e ao meu povo em cada curva, uma vez que a saída do Afeganistão não foi nem digna nem humana

Estou agora mais preocupada com as pessoas que a comunidade internacional não considerou como suficientemente importantes para serem evacuadas. Preocupam-me todas as mulheres afegãs que, neste momento,estão em grave risco nas províncias do país, com ameaças às suas vidas continuamente negligenciadas. Centenas de mulheres têm vindo a marchar pelas ruas de Cabul para defender os seus direitos e ter visibilidade. Em vez de respeitarem os seus direitos, têm sido alvo de retaliações por parte dos talibãs, esmagadas por uma força que, receamos, continue a cimentar brutalmente o poder.

 

Pressão sobre o Governo dos EUA

Durante quase duas décadas, os presidentes dos EUA, tanto republicanos como democratas, reivindicaram ser promotores dos direitos das mulheres afegãs, e como esta Casa Branca continua a reivindicar que não traz verdades para as mulheres e raparigas do Afeganistão, o que eu quero que os leitores nos Estados Unidos saibam, acima de tudo, é que conheço pessoalmente dezenas de mulheres ativistas, jornalistas, defensoras de direitos humanos que querem partir e que, no entanto, continuam presas.

A dolorosa verdade é que a evacuação dos EUA não ajudou as mulheres em risco, não salvou vidas, não ajudou aquelas que o governo americano sabe que ainda estão em perigo, e pior, ficámos sem qualquer apoio, apesar dos prémios e das distinções que outrora nos foram concedidas.

Há décadas que a humanidade tem estado ausente das políticas relativas ao nosso povo. Apesar de não vermos a responsabilização pelo que temos sofrido, as vidas e o futuro de milhares de mulheres e raparigas em risco ainda podem ser resgatadas. Os leitores ainda podem pressionar o seu governo a dar-nos as boas-vindas aos seus países enquanto procuramos as vidas e os direitos no estrangeiro que temos perseguido no nosso país: o direito à educação, o direito à saúde, o direito à liberdade de expressão.

Embora tenhamos as mesmas esperanças e as mesmas reivindicações aos nossos direitos humanos que aqueles que vivem nos Estados Unidos têm, receamos ser mortos, juntamente com as nossas famílias, a menos que Washington nos reconheça, veja a nossa humanidade, e nos forneça os recursos e apoio que justamente merecemos de um governo que colocou as nossas próprias vidas em grande risco.

Os leitores têm a oportunidade de pressionar o governo dos EUA a explicar porque fomos traídos e porque fomos deixados para trás e de acelerar o que pode realmente ser-nos entregue agora: programas de vistos, acolhimento e reinstalação de refugiados, benefícios de residência. Os governos precisam de ver agora, mais do que nunca, que o nosso abandono será simplesmente inaceitável.

Artigo publicado originalmente a 20 de setembro de 2021 no The Globe Post

 

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