6 Fevereiro 2020

Apesar de toda a retórica de reforma, as autoridades sauditas estão a utilizar o Tribunal Penal Especializado como uma arma para silenciar dissidentes. A denúncia consta de um novo relatório da Amnistia Internacional, que é acompanhado por uma campanha pela libertação, imediata e incondicional, de todos os defensores dos direitos humanos detidos no país.

“Todas as etapas do processo judicial estão contaminadas por violações de direitos humanos”

Heba Morayef, diretora regional para o Médio Oriente e o Norte de África da Amnistia Internacional

Em Muzzling critical voices: Politicized trials before Saudi Arabia’s Specialized Criminal Court (“O silenciar das vozes críticas: Julgamentos politizados do Tribunal Penal Especializado da Arábia Saudita”), a Amnistia Internacional documenta o impacto de processos judiciais contra vários cidadãos sauditas, como defensores dos direitos humanos, escritores, economistas, jornalistas, membros do clero, reformistas e ativistas políticos, incluindo da minoria xiita, que têm sofrido julgamentos injustos e condenações pesadas, como a pena de morte. Para justificar tudo isto, são citadas leis contraterrorismo e relacionadas com cibercrimes.

Documentos judiciais, declarações públicas do governo, legislação nacional, entrevistas com ativistas, advogados e pessoas que contactaram de perto com casos foram incluídos no relatório. A Amnistia Internacional escreveu às autoridades sauditas, no passado dia 12 de dezembro de 2019, e recebeu uma resposta da comissão de direitos humanos do país que apenas resumiu as leis nacionais e os procedimentos relevantes. Ou seja, não abordou diretamente as questões levantadas.

“O governo da Arábia Saudita utiliza o Tribunal Penal Especializado para criar uma falsa ideia de legalidade em torno da lei contraterrorismo para silenciar os críticos. Todas as etapas do processo judicial estão contaminadas por violações de direitos humanos, desde o impedimento de acesso a um advogado, até à detenção incomunicável e às condenações baseadas em confissões com recurso a tortura”, aponta a diretora regional para o Médio Oriente e o Norte de África da Amnistia Internacional, Heba Morayef.

A retórica que vigora desde a nomeação do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman contrasta com a realidade. Ainda que tenham sido implementadas reformas positivas no âmbito dos direitos das mulheres, as autoridades desencadearam uma intensa repressão a algumas das mais importantes defensoras de direitos humanos que há anos lutavam por essas mudanças. O mesmo aconteceu com outros cidadãos que promoveram campanhas semelhantes.

História de abusos

O Tribunal Penal Especializado foi criado em outubro de 2008 e, desde 2011, tem sido utilizado, de forma sistemática, para condenar pessoas envolvidas em atividades políticas pacíficas. Como? A lei saudita de contraterrorismo tem definições excessivamente amplas e vagas. Além disso, integra disposições que criminalizam a expressão pacífica de pontos de vista.

O novo relatório da Amnistia Internacional documenta 95 casos, a maioria de homens, que foram julgados, condenados ou cujo processo permanece no Tribunal Penal Especializado, desde 2011 até 2019. Atualmente, 52 pessoas cumprem longas penas de prisão que variam entre cinco a 30 anos.

Vários muçulmanos xiitas da Arábia Saudita, incluindo jovens julgados por “crimes” alegadamente cometidos quando tinham menos de 18 anos de idade, correm o risco iminente de execução, após julgamentos injustos. Pelo menos 28 sauditas pertencentes a essa minoria foram executados desde 2016, por ordem do Tribunal Penal Especializado, tendo por base “confissões” contaminadas por tortura.

Julgamentos injustos

A Amnistia Internacional analisou de perto oito julgamentos de 68 xiitas, a maioria acusada pela participação em protestos contra o governo, e de outras 27 pessoas, devido à expressão pacífica e ao ativismo pelos direitos humanos. Os arguidos acabaram condenados e, em muitos casos, à pena capital. Entre as acusações mais comuns estavam “desobediência ao governante”, “colocar em causa a integridade dos funcionários e do sistema judicial”, “incitamento à desordem através de manifestações” e “criação de organizações sem licença” – posições ou atividades protegidas pelo direito à liberdade de expressão, reunião e associação.

“Se o rei e o príncipe herdeiro quiserem demonstrar seriedade em relação às reformas, devem, como primeiro passo, libertar imediata e incondicionalmente todos os prisioneiros de consciência”

Heba Morayef, diretora regional para o Médio Oriente e o Norte de África da Amnistia Internacional

Todos os arguidos nos julgamentos analisados não tiveram acesso a um advogado, desde a detenção até aos interrogatórios. A apreciação dos recursos tem sido feita à porta fechada, sem a presença ou participação dos condenados e dos seus advogados.

Críticos amordaçados

Os 11 fundadores da Associação dos Direitos Civis e Políticos da Arábia Saudita (conhecida pelo acrónimo ACPRA) foram julgados e condenados, nos últimos anos, devido ao trabalho em prol dos direitos humanos.

Mohammad al-Otaibi, membro fundador da União dos Direitos Humanos, foi condenado a 14 anos de prisão por acusações relacionadas com a tentativa de formar uma organização independente de direitos humanos. Atualmente, enfrenta outro processo por, alegadamente, ter estabelecido contacto com organizações internacionais e procurar asilo político.

Salman al-Awda, um clérigo reformista preso em setembro de 2017, pode ser executado por exercer, de forma pacífica, os direitos à liberdade de expressão e de associação.

O preço da dissidência na província Oriental

Desde 2011, mais de 100 muçulmanos xiitas foram julgados pelo Tribunal Penal Especializado, por críticas pacíficas ao governo, em discursos ou nas redes sociais, e à participação em protestos antigovernamentais. As acusações eram vagas e variadas, desde a organização e o apoio às manifestações, até ao suposto envolvimento em ataques violentos e espionagem para o Irão.

A 2 de janeiro de 2016, as autoridades anunciaram a execução de um clérigo xiita, Nimr al-Nimr, conhecido pela posição crítica em relação ao governo. A notícia provocou novos protestos na província Oriental. Em julho de 2017, Youssuf al-Muhsikhass, que foi condenado à morte após um julgamento injusto, também foi executado, à semelhança de outros três xiitas. Em abril de 2019, decorreu uma execução em massa de 37 homens, a maioria xiita.

Outras condenações e execuções abrangeram vários jovens por crimes cometidos quando eram menores de idade. Em muitos casos, a decisão seguiu-se a “confissões” sob tortura ou coerção.

O que pedimos

A Amnistia Internacional exige a libertação, imediata e incondicional, de todos os prisioneiros de consciência, bem como reformas fundamentais no Tribunal Penal Especializado, com o intuito de garantir julgamentos justos e a proteção dos acusados ​​de detenções arbitrárias, tortura e outros maus-tratos.

Devem ser realizadas investigações independentes sobre as alegações de tortura ou outros maus-tratos sob custódia e as vítimas têm de ter direito à reparação – nestes casos ou noutros em que sejam provadas violações de direitos humanos às mãos de funcionários do Estado ou por aqueles que agem em seu nome.

“Se o rei e o príncipe herdeiro quiserem demonstrar seriedade em relação às reformas, devem, como primeiro passo, libertar imediata e incondicionalmente todos os prisioneiros de consciência, garantir que as suas convicções e sentenças sejam anuladas, e declarar uma moratória oficial em todas as execuções com vista a abolir a pena de morte”, resume Heba Morayef.

Em março e setembro de 2019, o Conselho de Direitos Humanos da ONU adotou declarações conjuntas sem precedentes sobre a Arábia Saudita, estabelecendo uma série de parâmetros para reformas urgentes de direitos humanos. Até agora, nada disso foi cumprido.

Os membros do Conselho de Direitos Humanos da ONU devem garantir o escrutínio, apoiando o estabelecimento de um mecanismo de monitorização e elaboração de relatórios sobre a Arábia Saudita.

Recursos

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