12 Julho 2017

A horrível escala de mortes, de ferimentos e do sofrimento na população civil encurralada pelos combates na zona ocidental da cidade iraquiana de Mossul é revelada em novo relatório da Amnistia Internacional, publicado esta terça-feira, 11 de julho.

  • relatório expõe a escala de mortes, de ferimentos e do sofrimento causado aos civis apanhados no fogo-cruzado das forças beligerantes em Mossul
  • o grupo auto proclamado Estado Islâmico encurralou famílias inteiras em Mossul ocidental para as usar como escudos humanos
  • as forças iraquianas e a coligação liderada pelos Estados Unidos usaram armamento explosivo impreciso, provocando a morte de milhares de civis
  • algumas das violações de direitos humanos documentadas podem constituir crimes de guerra

Esta investigação da organização de direitos humanos documenta que o grupo autoproclamado Estado Islâmico (EI) deslocou civis de aldeias e de vilas vizinhas para as áreas de batalha, mantendo-os contra vontade nas casas e impedindo-os de fugirem, usando-os como escudos humanos. Simultaneamente, as forças iraquianas e da coligação militar liderada pelos Estados Unidos fracassaram na tomada das medidas necessárias para proteger a população civil, expondo as pessoas a terríveis barragens de fogo com armas que jamais deviam ser usadas em áreas civis densamente povoadas.

“At any cost: The civilian catastrophe in West Mosul, Iraq” (A qualquer custo: a catástrofe dos civis em Mossul ocidental, Iraque) documenta as hostilidades em Mossul ocidental entre janeiro e meados de maio de 2017. A equipa de investigação da Amnistia Internacional entrevistou 151 residentes naquela zona da cidade, peritos e analistas, e recolheu dados sobre 45 ataques no total, nos quais morreram pelo menos 426 civis e mais de 100 foram feridos, analisando nove em específico feitos pelas forças iraquianas e pela coligação liderada pelos EUA.

Comissão de investigação urgente

“A escala e a gravidade da perda de vidas civis durante a operação militar para retomar Mossul tem de ser reconhecida publicamente de imediato aos mais elevados níveis do Governo no Iraque e nos países que integram a coligação liderada pelos Estados Unidos”, exorta a diretora de Investigação da Amnistia Internacional para a região do Médio Oriente, Lynn Maalouf.

Esta perita da organização de direitos humanos frisa que “os horrores que as pessoas de Mossul testemunharam e o desprezo pela vida humana por todas as partes neste conflito não podem ficar impunes”. “Famílias inteiras foram destruídas, muitas delas continuam por enterrar, sob os escombros, hoje mesmo. As pessoas de Mossul merecem saber, da parte do seu Governo, de que haverá justiça e ressarcimento, para que o impacto lancinante desta operação seja devidamente tratado”, sustenta.

“Tem de ser criada imediatamente uma comissão independente, com a tarefa de garantir que em quaisquer casos em que existam provas credíveis de que ocorreram violações da lei internacional serão levadas a cabo investigações eficazes e as suas conclusões tornadas públicas”, explica ainda a diretora de Investigação da Amnistia Internacional para a região do Médio Oriente.

Desalojamentos forçados, execuções sumárias e uso de escudos humanos

Desde outubro de 2016, o EI tem imposto uma campanha sistemática de desalojamentos forçados, deslocando milhares de civis de vilas e aldeias vizinhas para as zonas territoriais que estavam sob controlo do grupo armado. O EI usou estes civis como escudos humanos.

“Abu Haidar” (nome fictício para proteção da testemunha), oriundo da povoação de Tel Arbeed, e que foi obrigado a ir para Mossul ocidental pelo EI, reportou à Amnistia Internacional: “[O EI] disse que tínhamos de partir ou seríamos mortos. Fomos trazidos para nos usarem como escudos humanos. Eles trouxeram-nos para que ficássemos entre eles e os mísseis. Isto tudo aconteceu mesmo antes de começar a operação de Mossul ocidental… quando as forças iraquianas avançaram, o EI recuou, e levou a maior parte dos civis”.

Para impedir os civis de fugirem para local seguro, o EI fechou as pessoas dentro das casas, bloqueando-lhes as portas e instalando explosivos armadilhados nas saídas, e matou sumariamente centenas se não mesmo milhares de pessoas que tentaram escapar-se.

“Mohsen” (também nome fictício), residente em Mossul, contou à equipa de investigação: “[O EI] chegou numa carrinha de caixa aberta, com um gerador na traseira, e então fecharam as portas… Fizeram isto à porta da nossa casa e, pior ainda, fizeram-no numa outra casa no nosso bairro onde estavam centenas de pessoas”.

Um outro morador, “Hasan”, descreveu ter visto o EI a pendurar em postes de eletricidade os corpos de pessoas que tinham tentado fugir. “Não tínhamos nenhumas opções. Se ficássemos, morríamos nas nossas casas por causa dos combates. Se tentássemos escapar eles apanhavam-nos, matavam-nos e penduravam-nos nos postes elétricos como aviso para os outros. Quatro vizinhos meus foram apanhados a tentarem fugir e vi-os depois dependurados dos postes. Ficaram ali dias a fio. Eles penduravam às 15 a 50 pessoas nos postes”.

O medo de serem mortos pelo grupo armado nas tentativas de fuga resultou em muitos civis terem de esperar mesmo até ao momento em que os combates atingiram o auge nos locais onde estavam. Aí, quando os combatentes do EI estavam ocupados nos embates, a população civil fugia bem pelo meio das frentes de batalha para alcançar a posição das forças iraquianas.

Ataques ilegais e uso de armas explosivas imprecisas

“Quando as forças iraquianas chegaram, os morteiros e os mísseis chegaram com eles”, recordou “Mohsen”.

Uma vez que o EI estava a forçar a população civil a estar nas zonas de combate e a impedir as pessoas de fugirem, as áreas territoriais controladas pelo grupo armado ficaram cada vez mais sobrelotadas de civis conforme as batalhas se intensificaram. As forças iraquianas e a coligação liderada pelos EUA fracassaram em adaptar as suas táticas de combate àquela realidade e continuaram a usar armamento explosivo impreciso com impacto em extensas áreas em ambientes urbanos densamente povoados.

“O uso de pessoas como escudos humanos pelo EI não diminui a obrigação legal das forças pró-Governo [iraquiano] de protegerem os civis. Os estrategas militares deviam ter tido cuidados extra na forma como usaram as suas armas, para garantir que estes ataques não seriam ilegais”, sublinha Lynn Maalouf.

A Amnistia Internacional documentou um padrão de ataques em que a coligação liderada pelos Estados Unidos e as forças iraquianas parecem não ter atingido os alvos militares pretendidos, em vez disso tento causado a morte e ferimentos a civis e destruindo ou danificando estruturas civis. Em alguns casos, estas mortes e ferimentos de civis parecem ter resultado de uma escolha de armas que foi desadequada às circunstâncias ou de um fracasso em tomar as precauções necessárias para confirmar que o alvo visado era militar.

Até em ataques que parecem ter atingido o alvo militar pretendido, o recurso ao que parece ter sido armamento escusadamente poderoso ou o falhanço em tomar as precauções precisas causaram uma desnecessária perda de vidas civis. Por exemplo, a 17 de março de 2017, um raide aéreo norte-americano sobre o bairro de Al-Jadida, em Mossul, com o objetivo de neutralizar dois atiradores furtivos do EI, matou pelo menos 105 civis.

Independentemente de terem ocorrido explosões secundárias – como foi sustentado pelo Departamento de Estado norte-americano –, devia ter sido óbvio para os responsáveis que os riscos para os civis, de ser utilizada uma bomba com mais de 220kg, eram claramente excessivos em relação à prevista vantagem militar que dela resultaria.

Mohamed, do bairro de Al-Tenak, em Mossul ocidental, reportou à equipa de investigação da Amnistia Internacional: “Os ataques tinham como alvo os atiradores furtivos. Num deles foi destruída uma casa por completo, de dois andares. Eles bombardeavam dia e noite. Atingiram tantas casas. Quando uma casa era atingida, as duas ao lado também ficavam destruídas. Mataram tantas pessoas”.

“As forças iraquianas e os membros da coligação liderada pelos EUA têm de garantir que a luta contra o EI – não apenas nos combates em Mossul mas em outras batalhas no Iraque e na Síria – é travada de forma que seja consistente com a lei e os padrões internacionais. Os países envolvidos nos combates têm não apenas de focar-se nos aspetos militares do conflito mas também em providenciar, em conjunção, os recursos necessários para aliviar o sofrimento terrível dos civis encurralados pelas batalhas e submetidos a abusos pelo EI”, remata a diretora de Investigação da Amnistia Internacional para a região do Médio Oriente.

  • 50 milhões

    50 milhões

    Pela primeira vez desde a II Guerra Mundial, mais de 50 milhões de pessoas foram obrigadas a abandonar as suas casas. A maior parte devido a conflitos armados. (ACNUR, 2014)
  • 12,2 milhões

    12,2 milhões

    No final de 2014, 12,2 milhões de sírios – mais de metade da população do país – dependiam de ajuda humanitária. (UNOCHA)

Artigos Relacionados