6 Fevereiro 2024

Nos últimos quatro meses, as forças israelitas perpetraram uma intensa onda de violência contra os palestinianos na Cisjordânia ocupada, marcada por sucessivas mortes arbitrárias, pelo uso de força letal sem necessidade ou de forma desproporcionada durante as manifestações e rusgas de detenção, e pela negação de assistência médica aos feridos. Num dos incidentes analisados pela Amnistia Internacional, as forças israelitas realizaram uma rusga disfarçadas de pessoal médico.

 

Números

  • Em 2023, foram mortos pelo menos 507 palestinianos na Cisjordânia (dos quais, pelo menos, 81 eram crianças), o que faz deste ano o mais mortífero para os palestinianos desde que o Gabinete de Coordenação dos Assuntos Humanitários das Nações Unidas (OCHA) começou a registar vítimas, em 2005.
  • Entre 7 de outubro e 31 de dezembro de 2023, 299 palestinianos foram mortos, o que representa um aumento de 50% em relação aos primeiros nove meses do ano. Em 2024, de 1 a 29 de janeiro, mais de 61 palestinianos (13 crianças) foram mortos, de acordo com dados do OCHA.

 

A investigação da Amnistia Internacional

A Amnistia Internacional investigou quatro casos emblemáticos em que as forças israelitas recorreram ilegalmente a força letal – três incidentes em outubro e um em novembro – que resultaram na morte de 20 palestinianos, entre os quais, sete crianças. Os investigadores da organização entrevistaram à distância 12 pessoas: dez delas eram testemunhas oculares, como socorristas e residentes locais. Na sua análise aos quatro incidentes de violência que servem de base à investigação, o Laboratório de Provas de Crise da Amnistia Internacional verificou 19 vídeos e quatro fotografias.

Para a sua investigação, a organização enviou também pedidos de informação sobre os quatro casos investigados à unidade de porta-vozes do exército israelita e ao Comandante do Distrito de Jerusalém, no dia 26 de novembro. Até à data de publicação deste artigo, não tinha sido dada qualquer resposta da sua parte. A Amnistia Internacional continua a investigar outros casos de uso excessivo da força durante operações de manutenção da ordem, tais como as repetidas rusgas e ataques em Jenin e Tulkarem, na zona norte da Cisjordânia ocupada.

“Enquanto prosseguem os bombardeamentos incessantes e as atrocidades na Faixa de Gaza, as forças israelitas atuaram com força letal e ilegal contra os palestinianos na Cisjordânia ocupada, contribuindo para sucessivas mortes e desrespeitando verdadeiramente o seu direito à vida. Estas mortes constituem uma violação flagrante do direito internacional em matéria de direitos humanos e têm sido cometidas com impunidade no contexto da manutenção do regime institucionalizado de opressão e domínio sistemático do Estado de Israel sobre os palestinianos”, esclareceErika Guevara-Rosas, diretora de Investigação Global, Advocacy e Política da Amnistia Internacional.

“As forças israelitas atuaram com força letal e ilegal contra os palestinianos na Cisjordânia ocupada, contribuindo para sucessivas mortes e desrespeitando verdadeiramente o seu direito à vida”

Erika Guevara-Rosas

Erika Guevara-Rosas revela ainda que as autoridades israelitas, incluindo o sistema judicial israelita, têm-se revelado vergonhosamente indisponíveis para garantir justiça às vítimas palestinianas: “Neste clima de quase total impunidade, um sistema de justiça internacional que se preze tem de intervir. O Procurador do Tribunal Penal Internacional deve investigar estas mortes e ferimentos como possíveis crimes de guerra (de homicídio premeditado e de causar intencionalmente grande sofrimento ou ferimentos graves). A situação nos Territórios Palestinianos Ocupados e em Israel é um teste decisivo para a legitimidade e a reputação do tribunal, que não se pode dar ao luxo de falhar”.

“A situação nos Territórios Palestinianos Ocupados e em Israel é um teste decisivo para a legitimidade e a reputação do Tribunal Penal Internacional, que não se pode dar ao luxo de falhar”

Erika Guevara-Rosas

Desde o dia 7 de outubro, em toda a Cisjordânia, o recurso à força ilegal por parte das autoridades israelitas durante as ‘operações de manutenção da ordem’ tem sido implacável, semeando o medo e a intimidação entre comunidades inteiras. Esta violência foi ainda utilizada para dispersar manifestações realizadas quer em solidariedade com a situação na Faixa de Gaza, quer para exigir a libertação de prisioneiros e detidos palestinianos. O Estado de Israel tem um historial bem documentado de utilização de força excessiva e frequentemente letal para silenciar a dissidência e aplicar o seu sistema de apartheid contra os palestinianos, o que conduz a um padrão histórico de mortes ilegais cometidas com impunidade.

 

Três balas disparadas sem piedade 

Desde 7 de outubro, as forças israelitas intensificaram as rusgas, realizando-as quase diariamente em toda a Cisjordânia ocupada, no que descrevem como “operações de busca e detenção”. Mais de 54% dos 4.382 palestinianos feridos na Cisjordânia foram feridos durante estas operações, segundo a OCHA.

Num dos casos investigado pela Amnistia Internacional, as forças militares e a polícia fronteiriça israelitas recorreram a força excessiva durante uma incursão de 30 horas no campo de refugiados de Nour Shams, em Tulkarem, a 19 de outubro. Os residentes contaram à Amnistia Internacional que, durante a operação, os soldados israelitas invadiram mais de 40 casas residenciais, destruindo objetos pessoais e abrindo buracos nas paredes para instalar postos de atiradores furtivos. A água e a eletricidade do campo foram cortadas e os soldados utilizaram bulldozers para destruir estradas públicas, redes de eletricidade e infraestruturas de água.

Nesta operação, foram mortas 13 pessoas (seis crianças, quatro das quais com menos de 16 anos) e presas 15. De acordo com fontes militares israelitas citadas nos meios de comunicação social, um agente da polícia de fronteira israelita foi morto e nove ficaram feridos depois de um engenho explosivo improvisado ter sido lançado contra eles por palestinianos.

Taha Mahamid, de apenas 15 anos, está entre os palestinianos mortos durante o ataque. As forças israelitas mataram-no a tiro em frente à sua casa, quando Taha saiu para verificar se os soldados tinham já abandonado a zona. O jovem estava desarmado e não representava qualquer ameaça para os soldados quando foi alvejado. Um vídeo filmado por uma das suas irmãs e verificado pelo Laboratório de Provas de Crise da Amnistia Internacional mostra Taha a caminhar na rua, a espreitar para verificar a presença de soldados e depois a cair à porta de casa, após o som de três tiros.

Fatima, irmã de Taha, partilhou à Amnistia Internacional: “Não lhe deram qualquer hipótese. Num instante, o meu irmão foi eliminado. Foram disparadas três balas sem qualquer piedade. A primeira atingiu-o na perna. A segunda, no estômago. A terceira, no olho. Não houve confrontos… não houve conflito”.

“Num instante, o meu irmão foi eliminado. Foram disparadas três balas sem qualquer piedade”

Relato da irmã da vítima

Uma testemunha ocular contou ainda à Amnistia Internacional que, quando Ibrahim Mahamid, o pai de Taha, tentou levar o filho ferido para um local seguro, as forças israelitas dispararam sobre ele pelas costas. Um vídeo verificado, filmado por uma das irmãs de Taha, mostra o seu pai deitado no chão ao lado de Taha, antes de se afastar a coxear. Fatima Mahamid acrescentou: “O meu pai levantou as mãos, mostrando-lhes [aos soldados] que não tinha nada escondido, que só queria levar o seu filho. Eles atingiram-no com uma bala e o meu pai caiu ao lado de Taha”.

Ibrahim Mahamid sofreu graves lesões nos órgãos internos e teve de ser levado para os cuidados intensivos. Nem Taha, nem Ibrahim, constituíam uma ameaça para as forças de segurança ou para qualquer outra pessoa quando foram baleados. Este uso desnecessário de força letal deve ser investigado como possível crime de guerra por homicídio premeditado e por causar intencionalmente grande sofrimento ou ferimentos graves.

Doze horas após o assassinato de Taha, militares israelitas invadiram a casa da sua família e trancaram os seus familiares num quarto, incluindo três crianças pequenas, sob a supervisão de um soldado durante cerca de dez horas. Uma testemunha disse que os soldados revistaram a casa, espancaram um membro da família e um deles foi visto a urinar na soleira da porta.

Em vídeos verificados pela Amnistia Internacional, veem-se bulldozers militares israelitas a destruir as ruas estreitas do campo de refugiados de Nour Shams. Além disso, um vídeo publicado pela Sociedade do Crescente Vermelho Palestiniano e verificado pela Amnistia Internacional mostra os extensos danos numa estrada no interior do campo de refugiados de Nour Shams, que dificulta a circulação médica para apoio aos feridos.

 

Uso excessivo da força contra manifestantes palestinianos

Desde 7 de outubro, têm sido frequentes as manifestações de solidariedade para com os palestinianos da Faixa de Gaza em toda a Cisjordânia ocupada. Ainda que maioritariamente pacíficas, alguns manifestantes foram vistos a atirar pedras em resposta à presença ou à intervenção forçada das forças israelitas.

O recurso à força letal por parte das autoridades israelitas, na sequência do arremesso de pedras por parte dos jovens, é contrário ao direito à vida consagrado na legislação internacional em matéria de direitos humanos e nas normas internacionais que regulam o uso da força no policiamento. Este tipo de força para aplicação da lei só pode ser utilizado quando existe uma ameaça iminente à vida.

A 13 de outubro, em Tulkarem, numa das principais entradas da cidade, duas testemunhas oculares descreveram à Amnistia Internacional como as forças israelitas que se encontravam numa torre de vigia militar e no telhado de uma casa próxima começaram a disparar contra uma multidão de pelo menos 80 palestinianos desarmados que se manifestavam pacificamente em solidariedade com o povo na Faixa de Gaza.

Dois jornalistas que se encontravam no local foram entrevistados, separadamente, pela Amnistia Internacional, confirmando que viram as autoridades dispersar a multidão com gás lacrimogéneo e, pouco depois, a dispararem munições reais contra as pessoas sem tiros de aviso prévio. Ambos viram quatro pessoas serem baleadas e feridas quando tentavam fugir. Poucos minutos depois, as forças israelitas também dispararam na direção dos jornalistas, apesar dos dois estarem devidamente identificados com coletes típicos da imprensa. Os jornalistas acabaram por se esconder atrás de um muro, juntamente com três crianças, e tiveram de aí permanecer por duas horas, enquanto a operação prosseguia. Durante este tempo, uma das jornalistas viu também outro manifestante ser baleado na cabeça.

Num outro incidente, a 27 de novembro, as forças israelitas recorreram a força excessiva contra uma multidão de palestinianos em Beitunia, perto de Ramallah. O grupo tinha-se reunido para saudar os prisioneiros libertados da prisão de Ofer, no âmbito do acordo entre o Estado de Israel e o Hamas durante a pausa humanitária temporária na Faixa de Gaza. Várias testemunhas descreveram à Amnistia Internacional a forma como os militares israelitas intercalaram disparos com munições reais e balas de borracha contra a multidão e lançaram gás lacrimogéneo através de drones. As testemunhas também relataram que as forças israelitas recorreram a um bulldozer militar e conduziram jipes militares contra os palestinianos.

As forças israelitas recorreram a um bulldozer militar e conduziram jipes militares contra os palestinianos

Uma testemunha ocular viu o residente Yassine Al-Asmar ser baleado no peito, enquanto permanecia no meio da multidão, tendo explicado à Amnistia Internacional que as ambulâncias não conseguiram chegar até ao jovem palestiniano devido aos disparos contínuos das forças israelitas. Foram os seus amigos que o conseguiram levar para um hospital em Ramallah, onde veio a falecer.

O Laboratório de Provas de Crise da Amnistia Internacional verificou vídeos que mostram alguns manifestantes a atirar pedras e a queimar pneus naquela zona. Há um vídeo que mostra igualmente uma pessoa a atirar um cocktail Molotov a um bulldozer. No entanto, ao abrigo do direito internacional, atirar pedras ou queimar pneus não justifica uma resposta das forças de segurança que envolva o uso de armas de fogo. Este comportamento por parte das autoridades contra pessoas que não estejam a representar uma ameaça iminente é proibido.

 

“Vi os disparos contra a ambulância”

A obstrução da assistência médica por parte das forças israelitas durante as operações nos Territórios Palestinianos Ocupados (TPO) é uma prática de rotina que a Amnistia Internacional documentou durante anos e que faz parte do sistema de apartheid do Estado de Israel sobre os palestinianos. Nos termos do direito internacional, as forças israelitas têm a obrigação de garantir que qualquer pessoa ferida pela sua atuação violenta tenha acesso a tratamento médico.

A Amnistia Internacional investigou cinco ocasiões em que as forças israelitas dificultaram ou impediram que as pessoas gravemente feridas em manifestações e ataques recebessem assistência médica essencial. Também dispararam contra palestinianos que tentavam ajudar os feridos, incluindo médicos que lhes prestavam assistência.

A 10 de outubro, em Ein Al-Lozeh (um bairro de Silwan, em Jerusalém Oriental ocupada), houve confrontos entre os palestinianos e a polícia fronteiriça israelita, onde a população recorreu a foguetes para se defender, enquanto as autoridades israelitas usaram munições reais. O Laboratório de Provas de Crise da organização verificou três vídeos a partir de ângulos diferentes, que mostram os foguetes a atingir um carro da polícia. Foi nesta altura que a Polícia de Fronteiras israelita baleou Abd Al-Rahman Faraj, um jovem palestiniano. Pouco depois, outro jovem, Ali Abbasi, tentou levar Abd Al-Rahman Faraj para um local seguro, quando foi morto com um tiro na cabeça pelas mesmas autoridades, de acordo com uma testemunha ocular que falou sob condição de anonimato por razões de segurança. Esta mesma testemunha revelou que as forças israelitas deixaram as vítimas a sangrar no chão durante mais de uma hora. No fim, os seus corpos foram recolhidos por uma ambulância militar israelita, não tendo sido ainda entregues às respetivas famílias.

As forças israelitas deixaram as vítimas a sangrar no chão durante mais de uma hora. No fim, os seus corpos foram recolhidos por uma ambulância militar israelita, não tendo sido ainda entregues às respetivas famílias

 

Um soldado israelita gesticula para uma ambulância do Crescente Vermelho palestiniano à entrada do campo de refugiados de Tulkarem, na Cisjordânia ocupada, a 17 de janeiro de 2024, durante uma operação militar. (Foto de MARCO LONGARI / AFP)

 

Ainda em Tulkarem, numa manifestação a 13 de outubro, testemunhas oculares afirmaram que um homem palestiniano foi atingido pelas forças israelitas numa perna, enquanto andava de bicicleta, acrescentando que os paramédicos que procuraram ajudá-lo foram impedidos: “Ele estava a gritar. Um dos elementos da ambulância tentou movê-lo para lhe salvar a vida, mas o atirador israelita continuou a disparar. Vi com os meus próprios olhos os paramédicos e a ambulância serem alvejados pelas forças israelitas”.

“Vi com os meus próprios olhos os paramédicos e a ambulância serem alvejados pelas forças israelitas”

Relato de uma testemunha ocular

Por sua vez, a 9 de novembro, no campo de refugiados de Jenin, os militares israelitas tiveram o mesmo comportamento letal para com os paramédicos. Uma outra testemunha ocular confirmou como as forças israelitas atingiram Sabreen Obeidi, uma paramédica da Sociedade do Crescente Vermelho Palestiniano, na zona lombar, quando esta se encontrava dentro de uma ambulância. Outras duas ambulâncias da mesma organização foram igualmente baleadas, como provam as imagens de vídeo de uma câmara instalada no interior de uma delas, que foram posteriormente verificadas pelo Laboratório de Provas de Crise da Amnistia Internacional.

O direito internacional exige a proteção dos doentes, feridos e trabalhadores de saúde que lhes prestam a devida assistência. A obstrução do acesso a tratamento médico viola o direito à saúde, o direito à segurança da pessoa, o direito a não ser sujeito a tortura e a tratamentos cruéis, desumanos e degradantes.

 

As normas jurídicas internacionais

Na Cisjordânia ocupada, incluindo a região de Jerusalém Oriental, o Estado de Israel é a potência ocupante e as suas ações estão vinculadas, para além da Quarta Convenção de Genebra e da lei de ocupação, pelo direito internacional em matéria de direitos humanos.

No policiamento de manifestações e no desempenho de outras funções de aplicação da lei na Cisjordânia, como as chamadas operações de busca e detenção, as forças israelitas devem respeitar os direitos humanos, nomeadamente os direitos à vida e à segurança das pessoas e os direitos à liberdade de expressão e de reunião pacífica, tendo como fundamento o respeito pelos Princípios Básicos das Nações Unidas sobre a Utilização da Força e de Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei.

Estas normas proíbem o uso da força por parte dos funcionários responsáveis pela aplicação da lei, exceto quando estritamente necessário e na medida requerida para o cumprimento do seu dever. Exigem também que as armas de fogo só possam ser utilizadas como último recurso – quando absolutamente indispensáveis para que os militares ou a polícia se protejam a si próprios, ou a outros, contra a ameaça iminente de morte ou de ferimentos graves. Os assassinatos intencionais de pessoas constituem violações graves da Quarta Convenção de Genebra e são considerados crimes de guerra.

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