- Novo site interativo da Amnistia Internacional documenta o uso indevido de gás lacrimogénio pelas forças de segurança
- Análise de quase 80 eventos em 22 países e territórios
- Utilização continua a ser uma realidade em cidades norte-americanas, Hong Kong ou Paris
O sombrio e mal regulamentado comércio de gás lacrimogéneo está a alimentar violações de direitos humanos da polícia contra manifestantes pacíficos à escala global, denuncia a Amnistia Internacional, no dia em que lança um novo site interativo sobre o uso indevido deste agente de controlo de tumultos. Tear Gas: An investigation (“Gás lacrimogéneo: Uma investigação”) documenta dezenas de casos em todo o mundo, que geralmente acabaram com feridos graves ou mortes.
Sam Dubberley, Amnistia Internacional“Documentámos como as polícias estão a usar o gás lacrimogéneo de uma maneira que nunca deveria ser utilizado, muitas vezes em grandes quantidades contra manifestantes pacíficos”
Hoje, o site é especialmente relevante, já que se assinala um ano que a polícia de Hong Kong começou a utilizar gás lacrimogéneo contra manifestações pacíficas, num padrão que se estendeu durante vários meses e foi agora renovado. Em dezenas de cidades dos Estados Unidos da América (EUA), as forças de segurança também têm dispersado protestos com recurso a esta substância.
“Geralmente, as forças de segurança levam-nos a acreditar que o gás lacrimogéneo é uma maneira ‘segura’ de dispersar multidões violentas, evitando o recurso a armas mais perigosas. Mas a nossa análise prova que as polícias estão a fazer um uso indevido em larga escala”, indica o chefe do Evidence Lab da equipa de Resposta a Crises da Amnistia Internacional, Sam Dubberley.
“Documentámos como as polícias estão a usar o gás lacrimogéneo de uma maneira que nunca deveria ser utilizado, muitas vezes em grandes quantidades contra manifestantes pacíficos ou através de disparos dos projéteis diretamente contra as pessoas, causando ferimentos e mortes”, explica o mesmo responsável.
Investigação em código aberto
Polícia de Hong Kong lança gás lacrimogéneo sobre manifestantes, na Chinese University (CUHK), em novembro de 2019. © DALE DE LA REY/AFP/Getty Images
No último ano, o Evidence Lab da Amnistia Internacional analisou o uso indevido de gás lacrimogéneo em todo o mundo, principalmente a partir de vídeos partilhados em plataformas como Facebook, YouTube e Twitter. Através de métodos de investigação em código aberto, a organização verificou perto de 500 gravações e destacou quase 80 eventos ocorridos em 22 países e territórios, confirmando a sua localização, data e validade. Este trabalho foi realizado pelo Digital Verification Corps da Amnistia Internacional: uma rede de estudantes de seis universidades de quatro continentes com formação em procura e verificação de conteúdos em redes sociais.
Juntamente com entrevistas aos próprios manifestantes, a análise expõe uma tendência global perturbadora de uso generalizado e ilegal do gás lacrimogéneo. No novo site, pode ser visto um vídeo feito em colaboração com a SITU Research, que analisa as características deste agente, explica o funcionamento interno das munições e mostra como o mau uso pode mutilar e matar pessoas.
Os perigos do uso indevido
Fotografia tirada pela Amnistia Internacional Turquia. © Amnistia Internacional
Há casos de gás lacrimogéneo lançado de veículos e drones, dentro de um autocarro escolar, num cortejo fúnebre, em hospitais, edifícios residenciais, estações de metro, centros comerciais e até em ruas praticamente vazias. As forças de segurança também dispararam munições diretamente contra pessoas, provocando, por vezes, mortes. Participantes de manifestações pelo clima, estudantes do secundário, equipas médicas, jornalistas, migrantes e defensores dos direitos humanos, como membros do movimento Bring Back Our Girls da Nigéria estão entre os visados.
Um dos vídeos mostra como a polícia da cidade de Filadélfia, nos EUA, no passado dia 1 de junho, disparou repetidamente gás lacrimogéneo contra dezenas de manifestantes presos numa zona íngreme junto a uma autoestrada, sem possibilidade de fuga segura. Médicos em Omdurman, nos arredores de Cartum, capital do Sudão, disseram à Amnistia Internacional que militares e forças de segurança invadiram uma sala de urgência de um hospital, no ano passado, enchendo-a de gases nocivos e ferindo dez doentes.
Relato de um médico do Sudão“Os soldados dispararam gás lacrimogéneo e fogo real dentro do hospital. Depois, alguns foram para a urgência e dispararam quatro munições de gás lacrimogéneo. Graças a Deus, só uma explodiu”
Um cartucho foi disparado para baixo da cama de um paciente cardíaco de 70 anos. Dez minutos depois, morreu.
Outro vídeo mostra como um cartucho de gás lacrimogéneo perfura um escudo de madeira improvisado utilizado por um manifestante na Venezuela para se defender da carga policial. Por centímetros, o homem poderia ter sido vítima de um ferimento fatal.
Na nova investigação, a Amnistia Internacional documentou várias formas de abusos no uso de gás lacrimogéneo pelas forças de segurança:
- Disparos em espaços confinados;
- Diretamente contra pessoas;
- Em quantidades excessivas;
- Durante protestos pacíficos;
- Visando grupos que podem ser menos capazes de fugir ou mais suscetíveis aos seus efeitos, como crianças, idosos e pessoas com deficiência.
O site inclui entrevistas em vídeo com vários analistas externos – desde um médico de um serviço de urgência a especialistas em policiamento, negócios e direitos humanos – sobre as razões do gás lacrimogéneo ser tão prejudicial quando é usado incorretamente.
A Amnistia Internacional une-se ao Relator Especial da ONU sobre Tortura para equiparar o uso de gás lacrimogéneo, em certas situações, como o equivalente a tortura ou outros maus-tratos.
Comércio mal regulado
Manifestantes pelo clima dispersados com gás lacrimogéneo pela polícia francesa, em setembro de 2019. © ZAKARIA ABDELKAFI/AFP/Getty Images
Apesar do uso indevido generalizado, não há regulamentos internacionais acordados sobre o comércio de gás lacrimogéneo e outros agentes de controlo de tumultos. Poucos Estados fornecem informações públicas sobre a quantidade e o destino das exportações, dificultando a supervisão independente.
A Amnistia Internacional e a Omega Research Foundation têm defendido, há mais de duas décadas, um maior controlo sobre a produção, o uso e o comércio de gás lacrimogéneo e outras armas menos letais. Como resultado, a ONU e órgãos regionais como a União Europeia e o Conselho da Europa reconheceram a necessidade de regular a exportação de armas menos letais.
Patrick Wilcken, Amnistia Internacional“Parte da solução também passa por um maior escrutínio do comércio global pouco regulamentado”
Depois de ações de advocacia de alto nível de mais de 60 Estados da Alliance for Torture-Free Trade, que é apoiada pela Amnistia Internacional e pela Omega Research Foundation, a ONU está a estudar o potencial desenvolvimento de controlos comerciais internacionais sobre armas menos letais e outros produtos para impedir a sua utilização em atos de tortura, outros maus-tratos e na aplicação de penas de morte. A Amnistia Internacional e a Omega Research Foundation estão agora a pressionar para que essas medidas incluam o gás lacrimogéneo e outros agentes de controlo de tumultos.
“Parte do problema com o gás lacrimogéneo é simplesmente o facto de algumas forças policiais não entenderem como e quando pode ser usado legalmente, enquanto outras optam por ignorar essa orientação e algumas fazem uso deste como uma autêntica arma”, afirma Patrick Wilcken, investigador da Amnistia Internacional para a área do Controlo de Armas e Direitos Humanos.
“Mas parte da solução também passa por um maior escrutínio do comércio global pouco regulamentado”, conclui.
Países e territórios analisados:
Bolívia, Chile, Colômbia, República Democrática do Congo, Equador, França, Guiné, Hong Kong, Honduras, Haiti, Índia (região de Caxemira), Iraque, Irão, Quénia, Líbano, Nigéria, Israel-TPO, Sudão, Turquia, EUA (incluindo a fronteira EUA/México), Venezuela e Zimbabué.
Fabricantes:
Cavim; Condor Non-Lethal Technologies; DJI*; Falken; PepperBall; The Safariland Group; Tippmann Sports LLC. A Amnistia Internacional contactou todas as empresas, mas só uma respondeu.