28 Agosto 2020

As autoridades egípcias devem parar imediatamente com a repressão às influenciadoras do TikTok, acusadas de forma absurda de “indecência” e “violação de princípios e valores familiares”, aponta a Amnistia Internacional. Mulheres que denunciaram casos de agressão sexual, violações do seu direito à privacidade e abuso online estão entre as visadas por novas táticas repressivas utilizadas para controlar o espaço digital.

“Em vez de controlar as mulheres no espaço online, o governo deve priorizar a investigação dos casos de violência sexual e de género”

Lynn Maalouf, diretora interina para o Médio Oriente e Norte da África da Amnistia Internacional

Desde abril, foram detidas dez influenciadoras do TikTok, acusadas de violarem uma lei draconiana de crimes cibernéticos e outras disposições legais excessivamente vagas relacionadas com “decência” e “incitação à imoralidade”. As mulheres ​​têm muitos seguidores nas redes sociais, variando de centenas de milhares a milhões. Quatro já foram condenadas a penas de prisão entre dois e três anos, bem como ao pagamento de pesadas multas. As restantes seis aguardam julgamento.

Através de entrevistas, a advogados e familiares, e da análise às investigações do Ministério Público e de documentos judiciais de cinco casos, a Amnistia Internacional revela novos detalhes arrepiantes.

“Uma influenciadora nas redes sociais fez um direto online com o rosto pisado, implorando ao Estado que acusasse os homens que ela acusou de violação sexual. Juntamente com os seus agressores, ela foi detida e as suas declarações usadas para acusá-la de ‘incitar a libertinagem’ e ‘violar os princípios e valores familiares’”, explica a diretora interina para o Médio Oriente e Norte da África da Amnistia Internacional, Lynn Maalouf.

“Em vez de controlar as mulheres no espaço online, o governo deve priorizar a investigação dos casos de violência sexual e de género”, prossegue a mesma responsável, exigindo que sejam tomadas “medidas reais” para combater o problema “na lei e na prática”.

Em pelo menos dois casos, os tribunais usaram fotos privadas, que tinham sido utilizadas para chantagem, como “prova”. Antes, as mulheres denunciaram estes factos à polícia.

“As autoridades egípcias devem libertar imediata e incondicionalmente todas as influenciadoras do TikTok e retirar as acusações ultrajantes que recaem sobre elas”

Lynn Maalouf, diretora interina para o Médio Oriente e Norte da África da Amnistia Internacional

No dia 29 de abril, após as primeiras detenções de influenciadoras do TikTok, o Ministério Público do Egito emitiu uma declaração “reafirmando o compromisso de continuar a lutar contra crimes vergonhosos que violam os princípios e valores da sociedade”. A 2 de maio, alertou novamente que o país estava a proteger a “nova fronteira cibernética […] alvo de abusos pelas forças do mal”.

Acusadas por mostrarem “encantos”

Desde junho, os tribunais egípcios condenaram Manar Samy e Sama El-Masry a três anos de prisão, e Hanin Hossam e Mawada el-Adham a dois anos de prisão, sob acusações vagas, como “violação de princípios e valores familiares” e incitamento à “indecência” e “libertinagem”. As datas dos recursos estão agendadas para as próximas semanas. Seis outras mulheres aguardam julgamento por acusações semelhantes.

De acordo com os processos, as sentenças e os depoimentos de advogados, as mulheres estão a ser punidas pela maneira como se vestem, agem, “influenciam” o público em geral nas redes sociais e ganham dinheiro online. Os julgamentos aconteceram depois de queixas de homens alegadamente indignados com estes comportamentos e investigações de um departamento do Ministério do Interior.

“Criminalizar as mulheres pelo exercício destes direitos não só infringe o direito internacional, mas também perpetua uma cultura de desigualdade”

Lynn Maalouf, diretora interina para o Médio Oriente e Norte da África da Amnistia Internacional

Num dos casos, os tribunais usaram uma foto em fato de banho de Sama el-Masry, que faz dança do ventre, como prova para condená-la por publicar vídeos e fotos que “mostravam os seus encantos” e por fazer “expressões e movimentos sexualmente sugestivos”.

“As autoridades egípcias devem libertar imediata e incondicionalmente todas as influenciadoras do TikTok e retirar as acusações ultrajantes que recaem sobre elas. Além disso, devem revogar ou alterar todas as leis que restringem a autonomia corporal, o direito à privacidade e à liberdade de expressão e crença em nome da ‘moralidade’ ou ‘decência’”, afirma Lynn Maalouf.

“Criminalizar as mulheres pelo exercício destes direitos não só infringe o direito internacional, mas também perpetua uma cultura de desigualdade e violência”, remata.

Tratadas como criminosas

A influenciadora Menna Abdelaziz, de apenas 18 anos, fez um direto no Instagram, a 22 de maio, com um apelo por ajuda. Com o rosto pisado, disse ter sido violada, espancada e filmada sem consentimento. A Amnistia Internacional sabe que, antes, a jovem tentou denunciar o crime na esquadra de Talbiya, no Cairo, mas os agentes da polícia encaminharam-na para outro posto, uma vez que o incidente ocorreu numa jurisdição geográfica diferente.

No dia 26 de maio, forças de segurança detiveram Menna Abdelaziz e seis homens acusados ​​de a terem atacado. De acordo com o seu advogado, os procuradores realizaram um interrogatório que durou quase oito horas e basearam-se nas declarações dos suspeitos para acusá-la de “violar os princípios e valores familiares”, e “incitamento à libertinagem”.

“Acusar uma vítima de agressão sexual que pede ajuda publicamente é uma injustiça chocante que pode desencorajar outras pessoas a falar e denunciar tais casos”

Lynn Maalouf, diretora interina para o Médio Oriente e Norte da África da Amnistia Internacional

Os procuradores culpam as vítimas de violência sexual por “partilharem” publicamente os relatos de “agressão indecente”, em vez de relatá-los, de forma confidencial, às forças de segurança.

Atualmente, Menna Abdelaziz está num abrigo governamental para vítimas de violência, mas permanece sob investigação. A Amnistia Internacional já manifestou preocupação em relação ao funcionamento destas instalações, incluindo a imposição de restrições à liberdade de movimento.

“Acusar uma vítima de agressão sexual que pede ajuda publicamente é uma injustiça chocante que pode desencorajar outras pessoas a falar e denunciar tais casos. Em vez disso, as autoridades devem garantir que as mulheres tenham acesso a soluções adequadas e oportunas, incluindo acesso a cuidados médicos e aconselhamento psicológico, e realizar investigações completas e imparciais sobre os crimes cometidos contra elas”, advoga Lynn Maalouf. 

Provas com base em fotos privadas

A 15 de maio, as forças de segurança detiveram a influenciadora Mawada el-Adham e os procuradores acusaram-na de vários crimes, incluindo “violação de princípios e valores familiares”. De acordo com o processo consultado pela Amnistia Internacional, foram apresentadas 17 fotografias descritas como “indecentes”.

Mawada el-Adham alegou que as imagens foram retiradas do seu telemóvel, roubado em maio do ano passado. Na altura, relatou o incidente às autoridades, mas, em vez de investigar, a polícia apenas questionou a razão de ter tirado essas fotos a si mesma.

Os procuradores também apresentaram imagens privadas da atriz e modelo Manar Samy como prova de acusação em tribunal. A Amnistia Internacional sabe que foi apresentada uma queixa em 2018 contra o seu ex-marido, por ter tornado públicas fotografias íntimas tiradas quando estavam casados, para chantageá-la e obter a custódia da filha. No passado dia 29 de julho, esta mulher foi condenada a três anos de prisão e a uma multa de 300 mil EGP (cerca de 19 mil dólares americanos). Agora, encontra-se em liberdade sob fiança. 

Independência financeira como risco

A investigação da Amnistia Internacional indica que os processos judiciais estavam em parte relacionados com a popularidade das mulheres nas redes sociais, bem como com a sua capacidade de serem independentes financeiramente através do TikTok e de outras plataformas.

Por exemplo, a análise à sentença de Hanin Hossam mostra que foi repreendida por ganhar “popularidade nas plataformas de redes sociais e influenciar jovens raparigas”. Além disso, enfrenta acusações de envolvimento em “tráfico de seres humanos” devido a um vídeo no Instagram em que encorajou mulheres com mais de 18 anos a postar vídeos na aplicação Likee, que gera rendimentos com base no número de visualizações. A Amnistia Internacional analisou os conteúdos e não encontrou nenhuma evidência fidedigna que a ligasse a qualquer crime internacionalmente reconhecido.

O advogado de Manar Samy disse à Amnistia Internacional que o mandado de prisão emitido à sua cliente foi baseado numa queixa apresentada por outro advogado que descreveu os seus vídeos de dança como “indecentes” e tendo o objetivo de “atrair atenção e ganhar dinheiro”. No caso de Menna Abdelaziz, o Ministério Público afirmou numa nota que as difíceis circunstâncias sociais levaram-na, “com a sua falta de experiência, competência e personalidade fraca, a buscar a fama através de todos os meios”.

Contexto

Nos últimos anos, as defensoras dos direitos humanos das mulheres têm pedido reformas abrangentes, na lei e na prática, para lidar com a violência sexual e de género, incluindo a garantia de confidencialidade e segurança de vítimas e testemunhas para incentivar a denúncia dos casos. A 8 de julho, foi aprovada uma alteração processual que permite aos procuradores ocultar a identidade das vítimas e informações pessoais nos processos que envolvem violência sexual.

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