8 Outubro 2025

 

  • EUA usam ferramentas com IA para vigiar migrantes, refugiados e requerentes de asilo
  • Ferramentas monitorizam redes sociais e analisam sentimentos dos visados
  • Iniciativa “Catch and Revoke” intensifica revogações arbitrárias de vistos
  • Amnistia Internacional exorta Congresso dos EUA a tomar medidas para reforçar os seus mecanismos de supervisão e regulamentação

 

As autoridades dos EUA estão a usar ferramentas automatizadas de vigilância baseadas em inteligência artificial (IA) para visar deliberadamente cidadãos não americanos e representam riscos para aqueles que defendem os direitos palestinianos, afirmou a Amnistia Internacional, em reação à repressão ilegal em curso no país contra migrantes, refugiados e requerentes de asilo.

A Amnistia Internacional analisou documentação dos registos públicos do Departamento de Segurança Interna (DHS) e documentos de aquisição e avaliação de privacidade divulgados anteriormente, que mostram que as ferramentas de IA Babel X, fornecidas pela Babel Street, e Immigration OS da Palantir, têm capacidades automatizadas, que permitem a monitorização, vigilância e avaliação constantes e em massa de pessoas, muitas vezes com o objetivo de visar cidadãos não americanos. A investigação também expõe como estas ferramentas estão a ser utilizadas pelo governo dos EUA para rastrear migrantes, refugiados e requerentes de asilo e, em última análise, apresentam um alto risco de serem utilizadas como parte da iniciativa “Catch and Revoke” (Capturar e Revogar).

“É profundamente preocupante que o governo dos EUA esteja a implantar tecnologias invasivas baseadas em IA num contexto de agenda de deportação em massa e repressão à expressão pró-Palestina, levando a uma série de violações dos direitos humanos. Essas tecnologias permitem que as autoridades rastreiem e visem rapidamente estudantes internacionais e outros grupos migrantes marginalizados a uma escala e com um alcance sem precedentes. Isso levou a um padrão de detenções ilegais e deportações em massa, criando um clima de medo e exacerbando o ‘efeito inibidor’ para as comunidades migrantes e para os estudantes internacionais em escolas e universidades”, disse Erika Guevara-Rosas, diretora sénior de Investigação, Advocacia, Política e Campanhas da Amnistia Internacional.

A iniciativa repressiva do Departamento de Estado, impulsionada pela IA e denominada “Catch and Revoke” (Capturar e Revogar), combina monitorização das redes sociais, rastreamento do estatuto dos vistos e avaliações automatizadas de ameaças de indivíduos estrangeiros com vistos, incluindo estudantes internacionais. As ferramentas de IA fornecidas pela Babel Street e pela Palantir desempenham um papel fundamental na capacidade das autoridades norte-americanas de identificar pessoas, bem como o seu comportamento e movimentos, de forma mais rápida e em grande escala, para determinar se os seus vistos devem ser revogados.

A Babel X realiza análises de sentimentos, atribuindo um sentimento e uma intenção provável às publicações partilhadas por indivíduos com base no seu comportamento online, enquanto a Babel X e a ImmigrationOS podem realizar o reconhecimento de padrões e automatizar a análise de dados usando algoritmos. As ferramentas também agregam dados de várias fontes públicas e privadas, incluindo várias bases de dados governamentais.

“A iniciativa coerciva ‘Catch and Revoke’ (Capturar e Revogar), facilitada por tecnologias de IA, corre o risco de intensificar revogações arbitrárias e ilegais de vistos, detenções, deportações e violações de uma série de direitos humanos. Estes incluem os direitos à privacidade, liberdade de expressão e acesso à informação, liberdades de circulação, igualdade e não discriminação, e o direito à liberdade e ao protesto”

Erika Guevara-Rosas

O Babel X, por exemplo, é alegadamente utilizado para a análise alimentada por IA de plataformas de redes sociais para sinalizar conteúdo relacionado com “terrorismo”. Essas informações podem ser usadas pelas autoridades americanas para tomar uma decisão sobre a revogação do visto de um indivíduo. Se o Departamento de Estado determinar que o visto deve ser revogado, agentes do ICE são enviados dos escritórios locais para prender e deportar o indivíduo. As tecnologias probabilísticas usadas para tirar conclusões sobre as intenções dos indivíduos têm margens de erro enormes e, muitas vezes, podem ser discriminatórias e tendenciosas, podendo levar à falsa classificação de conteúdos pró-Palestina como antissemitas.

Os riscos para os direitos humanos de tais sistemas são bem conhecidos e de longa data. Durante o primeiro governo de Donald Trump, 55 grupos de direitos humanos (incluindo a Amnistia Internacional), bem como 54 especialistas em tecnologia, escreveram às autoridades para se oporem à introdução de um sistema automatizado semelhante de “verificação extrema”, alegando que seria ineficaz e, invariavelmente, levaria a violações do direito à não discriminação, à liberdade de expressão e a outros direitos humanos dos migrantes nos EUA.

“A iniciativa coerciva ‘Catch and Revoke’, facilitada por tecnologias de IA, corre o risco de intensificar revogações arbitrárias e ilegais de vistos, detenções, deportações e violações de vários direitos humanos. Entre estes, incluem-se os direitos à privacidade, liberdade de expressão e acesso à informação, liberdades de circulação, igualdade e não discriminação, e o direito à liberdade e ao protesto”, afirmou Erika Guevara-Rosas.

A Amnistia Internacional analisou documentos de aquisição, contratos e respostas à Lei da Liberdade de Informação (FOIA) a pedidos anteriores de outras organizações, relacionados com todos os projetos de IA publicamente conhecidos e atualmente implementados pelo Departamento de Segurança Interna dos EUA (DHS), Proteção Alfandegária e Fronteiras (CBP) e Imigração e Alfândega (ICE). De acordo com o site da CBP, a ICE e a CBP hospedam atualmente pelo menos 80 projetos de IA.

 

Babel X da Babel Street

De acordo com os documentos analisados, o Babel X tem sido utilizado pela CBP desde, pelo menos, 2019A tecnologia pode recolher grandes quantidades de dados a partir de um único identificador, como o nome, e-mail ou número de telefone de uma pessoa. Também pode aceder a publicações nas redes sociais, endereços IP, histórico profissional e IDs exclusivos gerados para publicidade em aplicações móveis, que podem ser usados para rastrear a localização do dispositivo. O Babel X permite a monitorização abrangente de vários grupos, incluindo cidadãos americanos e não americanos e residentes permanentes, mas foi encarregue, especificamente, de monitorizar refugiados e requerentes de asilo, conforme divulgado na própria Análise de Limite de Privacidade do CBP para o Babel X.

O Babel X está atualmente listado na página de projetos de IA ativos da CBP como “uma ferramenta adquirida comercialmente, que ajuda a CBP a compilar informações de redes sociais e de código aberto, sobre viajantes que podem estar sujeitos a uma triagem adicional por potencial violação das leis que a CBP está autorizada a aplicar ou administrar”.

Em fevereiro de 2025, o vice-presidente sénior de risco da Babel Street publicou um artigo promovendo o uso de OSINT habilitado para IA para combater e encontrar “conteúdo relacionado com terrorismo” para interceção e segurança nas fronteiras, e para encontrar “grupos radicalizados” e indivíduos, utilizando pesquisas por palavras-chave em grandes bancos de dados de documentos, artigos de notícias e media online.

A Babel Street utiliza “pesquisa persistente”para monitorizar continuamente qualquer informação nova que apareça online relativa a um indivíduo, ou noutras bases de dados governamentais, mesmo após ter sido efetuada uma pesquisa inicial. Ao automatizar, tanto a sinalização como a recolha de grandes quantidades de dados, de forma persistente, sobre indivíduos sinalizados, a Babel X corre o risco de tornar os indivíduos suspeitos por defeito e sujeitá-los ao risco de revogação de vistos, detenção e deportação.

 

Immigration OS da Palantir

Em abril de 2025, o ICE concedeu à Palantir um contrato de 30 milhões de dólares (cerca de 25,5 milhões de euros) para rastrear “auto-deportações” e identificar casos prioritários de deportação, particularmente aqueles que excederam o prazo de permanência do visto. No mesmo mês, a 404 Media divulgou uma mensagem do Slack (interno), enviada pelo diretor de tecnologia da Palantir: “nas últimas semanas, criámos um protótipo de um novo conjunto de integrações de dados e fluxos de trabalho com o ICE” e acrescentou: “O foco da nova administração em aproveitar os dados para impulsionar as operações de fiscalização acelerou esses esforços”.

O sistema, conhecido como Immigration Lifecycle Operating System (Immigration OS), é uma atualização do sistema Integrated Case Management (ICM) da Palantir, já utilizado pelo ICE desde 2014.

O ICM permite que o pessoal do ICE crie um arquivo eletrónico, que organiza e vincula todos os registos e documentos associados a uma investigação específica [relacionada com a imigração], para que sejam facilmente acessíveis a partir de um único local. Também permite que o pessoal vincule registos a várias investigações, a fim de estabelecer conexões entre os casos, e possibilita o acesso a uma vasta gama de dados pessoais de agências e autoridades policiais dos EUA.

A nova versão do Immigration OS tem as seguintes características:

  • Racionalização da seleção e detenção de indivíduos com base nas prioridades do ICE, com foco em organizações criminosas transnacionais, criminosos violentos e pessoas que excederam o prazo de validade do visto⁠⁠.
  • Monitorização em tempo real da auto-deportação e integração com sistemas de priorização para informar a política e a alocação de recursos.
  • Gestão de imigração de ponta a ponta, desde a identificação até a remoção, com foco na eficiência da deportação.

O Immigration OS automatiza um processo já consideravelmente falível e irresponsável, que tem um historial de desconsiderar o processo e os direitos humanos, tornando-o mais obscuro e reforçado.

Durante o primeiro mandato de Trump, em 2020, a Amnistia Internacional escreveu à Palantir sobre os seus processos de ‘due diligence’ em direitos humanos. Em resposta, a Palantir reconheceu que tinha “(…) recusado propositadamente assumir contratos com [as Operações de Execução e Remoção do ICE] e a CBP sob a atual [então] administração, porque partilhamos a preocupação da vossa organização com as potenciais violações graves dos direitos humanos contra migrantes, refugiados e requerentes de asilo na fronteira entre os EUA e o México e os riscos de uma aplicação desproporcionada da lei de imigração dentro dos EUA”.

 

Um Estado que tudo vê

A 8 de março de 2025, o governo dos EUA deteve ilegalmente Mahmoud Khalil, um ex-aluno de pós-graduação da Universidade de Columbia, que atuava como porta-voz dos manifestantes do campus e é residente permanente nos EUA. O Presidente Trump declarou que era “a primeira prisão de muitas que viriam”. Pouco depois, nove estudantes estrangeiros que participaram em protestos ou se manifestaram contra o genocídio de Israel em Gaza viram os seus vistos ou estatuto de residência revogados. Mahmoud Khalil foi libertado a 20 de junho da custódia do ICE.

Noutro caso documentado, uma estudante de doutoramento turca da Universidade Tufts, Rumeysa Ozturk, foi intercetada perto de sua casa por seis agentes de imigração à paisana e colocada num carro sem identificação. Os agentes recusaram identificar-se até ela ser detida. A única ofensa aparente foi coescrever um artigo de opinião a criticar a falta de resposta da sua escola às exigências dos estudantes em relação a Gaza. Um porta-voz do DHS afirmou, mais tarde, que ela “se tinha envolvido em atividades de apoio ao Hamas”, sem apresentar qualquer prova.

Uma estudante de doutoramento turca da Universidade Tufts, Rumeysa Ozturk, foi intercetada perto de sua casa por seis agentes de imigração à paisana e colocada num carro sem identificação. A única ofensa aparente foi coescrever um artigo de opinião a criticar a falta de resposta da sua escola às exigências dos estudantes em relação a Gaza.

Embora o governo dos EUA tenha o poder discricionário de negar e revogar vistos a requerentes, não pode fazê-lo de forma a violar os direitos protegidos pela Constituição dos EUA e pelo direito internacional, em matéria de direitos humanos, o que inclui os direitos à liberdade de expressão e ao devido processo legal.

As táticas repressivas da atual administração e a revogação sumária do estatuto de imigração das pessoas demonstram um total desrespeito pelos direitos humanos de liberdade de expressão e de reunião pacífica. Representam uma violação flagrante do direito à igualdade e à não discriminação, com os titulares de vistos e de asilo explícitamente visados pelos sistemas baseados em IA.

A 10 de julho de 2025, a Amnistia Internacional contactou a Palantir Technologies e a Babel Street para obter os seus comentários acerca das suas conclusões. A Babel Street não respondeu. A Palantir Technologies respondeu a 24 de julho de 2025, afirmando que o seu produto não foi usado para alimentar o esforço “Catch & Revoke” (Capturar e Revogar) do governo, que é uma iniciativa do Departamento de Estado, e esclareceu que a Palantir foi contratada pelo Departamento de Segurança Interna dos EUA (ICE) e que não visava especificamente estudantes manifestantes, nem os seus produtos alimentavam aplicações da lei de imigração que violavam direitos.

A Palantir confirmou que a recente expansão do ICM (apelidado “Immigration OS”) “[…] inclui trabalho que serve diretamente a missão [da Operação de Execução e Remoção] e confirmou que isso incluía as seguintes capacidades: (a) Priorização e direcionamento de operações de execução, (b) Rastreamento de auto-deportação e (c) Operações do ciclo de vida da imigração”.

Embora os contratos da Babel Street e da Palantir sejam com a CBP e a ICE, respetivamente, as Operações de Execução e Remoção (ERO) da ICE gerem todos os aspetos dos processos de aplicação da lei de imigração, incluindo “a identificação, prisão, detenção e remoção de estrangeiros”.

A ICE é o braço operacional encarregado de implementar as decisões tomadas por todas as agências dos EUA envolvidas na gestão da migração, incluindo o Departamento de Estado. Por outras palavras, o ICE desempenha um papel fundamental na aplicação da política de “Captura e Revogação” por meio de táticas agressivas de rastreamento e detenção, mesmo que a política, como um todo, esteja a ser implementada pelo Departamento de Estado. Estas respostas não abordam, fundamentalmente, as preocupações levantadas por esta investigação – que as tecnologias da Palantir e da Babel Street correm o risco de contribuir para violações dos direitos humanos contra migrantes como resultado dos seus contratos com agências federais de aplicação da lei de imigração.

“Sistemas como o Babel X e o Immigration OS desempenham um papel fundamental na capacidade da administração dos EUA de executar as suas táticas repressivas, facilitando decisões automatizadas rápidas, que levaram a deportações em massa realizadas com uma velocidade sem precedentes, o que não permite o devido processo legal adequado e representa riscos significativos para os direitos humanos de todos os imigrantes, incluindo estudantes que não são cidadãos dos EUA”, disse Erika Guevara Rosas.

“Sistemas como o Babel X e o Immigration OS desempenham um papel fundamental na capacidade da administração dos EUA de executar as suas táticas repressivas, facilitando decisões automatizadas rápidas, que levaram a deportações em massa”

Erika Guevara-Rosas

Dada a relação anterior da Palantir e da Babel Street com o governo dos EUA e a intenção pública da administração Trump de se envolver em deportações em massa, estas empresas poderiam ter previsto razoavelmente o risco de danos em todo o país e reconsiderado a celebração destes contratos, para abordar esses riscos de acordo com os padrões internacionais de direitos humanos.

Se a Palantir e a Babel Street tivessem realizado adequadamente a devida diligência em matéria de direitos humanos e cumprido as suas responsabilidades em matéria de direitos humanos em 2025, estas empresas poderiam e deveriam ter recusado igualmente participar nestes esforços de deportação em massa. Ao fornecer esta tecnologia sem salvaguardas adequadas, empresas como a Babel Street e a Palantir correm o risco de contribuir para as violações dos direitos humanos relacionadas com estes esforços.

A Amnistia Internacional reconhece a importância de exercer influência, sempre que possível, em qualquer relação comercial que envolva direitos humanos. É de extrema importância que as empresas não causem, contribuam ou estejam diretamente ligadas a violações dos direitos humanos.

“A utilização daquela tecnologia no contexto corre o risco de alimentar a capacidade do governo Trump para tomar decisões arbitrárias, para deportar pessoas marginalizadas por capricho e em grande número, com acesso limitado ou nenhum acesso ao devido processo legal. Não devemos esquecer que esses sistemas estão agora nas mãos de um governo que já enviou pessoas para uma prisão cruel em El Salvador com base na presunção de que podem cometer crimes no futuro”, disse Erika Guevara-Rosas.

“Além disso, a precariedade dos vistos, especialmente para grupos marginalizados como alguns estudantes internacionais, não pode ser ignorada. A Palantir e a Babel Street devem conduzir e publicar as conclusões completas dos processos de ‘due diligence’ em direitos humanos. A menos que a Palantir e a Babel Street possam demonstrar que podem usar a sua influência como fornecedores para evitar as graves consequências para os direitos humanos decorrentes das políticas dos seus clientes, estas empresas devem cessar imediatamente o seu trabalho com a administração dos EUA relacionado com a aplicação da lei de imigração.”

A Amnistia Internacional também está a exortar o Congresso dos EUA a tomar medidas para reforçar os seus mecanismos de supervisão e regulamentação, a fim de garantir que estas empresas tecnológicas não contribuam para violações dos direitos humanos.

 

Contexto

A 27 de março, o Secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, anunciou que tinha revogado os vistos de, pelo menos, 300 estudantes e visitantes desde janeiro.

Relatórios mais recentes indicam que, pelo menos 1.800 e até 4.000 estudantes, viram os seus vistos revogados. Muitos dos estudantes afetados afirmam que nunca participaram em protestos e nunca receberam notificação da revogação, embora alguns possam ter tido alguma interação com as autoridades policiais durante as suas estadias, mesmo por motivos menores, como uma multa de trânsito. De acordo com uma ação judicial movida em nome de dois estudantes na Califórnia, os estudantes foram alvo porque eram de origem africana, árabe, asiática, do Médio Oriente e muçulmana.

A Amnistia Internacional já documentou anteriormente o uso do ICM da Palantir pelo ICE para executar políticas prejudiciais contra migrantes e requerentes de asilo, e destacou o alto risco que a Palantir tenha contribuído para violações dos direitos humanos através da forma como a tecnologia da empresa facilitou historicamente as operações do ICE.

 

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