12 Março 2019

Uma investigação da Amnistia Internacional revelou que crianças tão novas quanto os oito anos de idade foram violadas na cidade iemenita de Taiz. Os suspeitos perpetradores, incluindo membros das milícias apoiadas pela Coligação liderada pela Arábia Saudita, ainda estão por responsabilizar.

As famílias de quatro rapazes disseram à Amnistia Internacional que os seus filhos tinham sido sexualmente agredidos numa série de incidentes ao longo dos últimos oito meses. Em dois dos casos, as famílias alegaram que as pessoas responsáveis eram milicianos Islahi, apoiados pela Coligação liderada pela Arábia Saudita.

“Os testemunhos desoladores destes jovens sobreviventes e das suas famílias expõe como o conflito continuado tornou as crianças vulneráveis à exploração sexual numa cidade atormentada por fraca segurança e instituições. Estas vítimas e as suas famílias foram deixadas desprotegidas e sozinhas para enfrentarem o horrendo calvário do abuso sexual e das suas consequências”, disse Heba Morayef, Diretora Regional para o Médio Oriente e o Norte de África na Amnistia Internacional.

“As autoridades iemenitas têm que investigar minuciosamente estas alegações para assinalar que estes crimes não serão tolerados e para proteger as famílias das crianças de represálias. Os suspeitos, incluindo membros das forças combatentes e líderes comunitários em posições confiáveis, devem ser trazidos à justiça em julgamentos justos. A violação e agressão sexual cometidas no contexto de um conflito armado são crimes de guerra. Os comandantes que falharem em deter esses atos hediondos podem ser responsáveis por crimes de guerra.”

“Os testemunhos desoladores destes jovens sobreviventes e das suas famílias expõe como o conflito continuado tornou as crianças vulneráveis à exploração sexual numa cidade atormentada por fraca segurança e instituições. Estas vítimas e as suas famílias foram deixadas desprotegidas e sozinhas para enfrentarem o horrendo calvário do abuso sexual e das suas consequências”

Heba Morayef

A Amnistia Internacional documentou quatro casos de violência sexual, nomeadamente a violação de três crianças e uma tentativa de agressão sexual sobre uma quarta. Dois relatórios médicos vistos pela organização indicam, em dois dos sobreviventes, lesões no ânus que são consistentes com os seus testemunhos.

Até ao momento, um padrão de impunidade e represálias desencorajou as famílias de reportarem estes incidentes, especialmente desde que os suspeitos são apontados como sendo politicamente alinhados com as autoridades locais, controladas pela milícia Islahi. Enquanto dois suspeitos civis se encontram atualmente detidos aguardando julgamento relativamente a dois dos quatro casos, os suspeitos da milícia ainda não foram detidos nos dois outros casos. A Amnistia Internacional escreveu ao delegado do Ministério Público em Taiz procurando um comentário e clarificação, mas não recebeu resposta. Nos últimos meses, o sistema judicial – e as instituições iemenitas – foi reativado em partes do sul do país, gerindo um número modesto de casos.

As famílias enfrentaram uma variedade de obstáculos na denúncia destes incidentes às autoridades. De acordo com as famílias e com documentos revistos pela Amnistia Internacional, qualquer dos quatro casos foi denunciado diretamente ao Departamento de Investigações Criminais em Taiz. Embora o Departamento de Investigações Criminais tenha instruído um dos principais hospitais em Taiz para examinar os três sobreviventes de violação e emitir relatórios médicos, num caso o hospital falhou em cumprir essas ordens, apesar dos pedidos repetidos da mãe da vítima. Além disso, o hospital solicitou dinheiro para produzir o relatório, um pedido que a família não foi capaz de comportar.

Estes casos documentados pela Amnistia Internacional parecem não ser os únicos incidentes. Famílias e ativistas locais relataram pelo menos dois outros casos nos quais as famílias estão demasiado assustadas para falar, temendo represálias por parte das milícias locais, que são amplamente apoiadas pelos membros da Coligação liderada pela Arábia Saudita no Iémen. Duas das quatro famílias afetadas tiveram de relocalizar-se, receando represálias das milícias.

 

Ausência de responsabilização

Em dois dos quatro casos – uma violação e uma tentativa de agressão – as famílias alegaram que as pessoas responsáveis eram milicianos Islahi.

Um rapaz com 16 anos de idade que diz ter sido violado no final de Dezembro de 2018 por um miliciano Islahi, numa área da cidade de Taiz controlada pelos islamistas, disse à Amnistia Internacional:

“Ele ameaçou-me com a sua espingarda… começou a bater-me com a coronha da espingarda, pontapeou-me e empurrou-me contra a parede para tentar derrubar-me… depois, disse que queria violar-me. Então, eu comecei a chorar… e pedi-lhe que me considerasse como seu filho. Ele zangou-se ainda mais, e começou a bater-me mais… agarrou-me pelo pescoço e empurrou-me para o chão, e eu comecei a gritar e ele golpeou-me com a espingarda no pescoço e violou-me.”

“Ele ameaçou-me com a sua espingarda… começou a bater-me com a coronha da espingarda, pontapeou-me e empurrou-me contra a parede para tentar derrubar-me… depois, disse que queria violar-me. Então, eu comecei a chorar… e pedi-lhe que me considerasse como seu filho. Ele zangou-se ainda mais, e começou a bater-me mais… agarrou-me pelo pescoço e empurrou-me para o chão, e eu comecei a gritar e ele golpeou-me com a espingarda no pescoço e violou-me.”

Rapaz de 16 anos, vítima de violação

A mãe do rapaz descreveu a noite em que o seu filho regressou a casa após o incidente:

“Quando ele chegou naquela noite, foi direto para a casa de banho. Depois, quando saiu, eu perguntei-lhe o que tinha acontecido, e ele não me dizia. Então, começou a chorar, e eu também.

“Sentámo-nos junto um do outro durante três dias, ambos incapazes de comer, beber ou dormir… o seu estado psicológico estava muito fraco devido ao susto, e a sua tez parecia amarela e esgotada… ele ficou simplesmente ali sentado a olhar para o espaço. Depois disso, ão conseguiu sentar-se nem ir à casa de banho durante três dias.”

A mãe denunciou a violação ao Departamento de Investigações Criminais de Taiz, que emitiu uma ordem, vista pela Amnistia Internacional, para que o médico forense emitisse um relatório. O médico, que trabalha num hospital sob o controlo do grupo Islah, recusou.

Depois, o hospital solicitou dinheiro para produzir o relatório, mas ela não tinha capacidade para o pagar antecipadamente. Ela disse que pagaria aquando da entrega do relatório, mas este nunca foi completado.

“O médico disse-me que não havia nada de errado com o meu filho e que não produziria um relatório. Naquele momento, eu comecei a gritar-lhe, ‘Não temes Deus?’”

Segundo outro testemunho, em Julho de 2018, um militante Islahi tentou agredir sexualmente um rapaz com 12 anos de idade em Taiz, mas o rapaz escapou.

© Amnesty International

Um parente do rapaz disse à Amnistia Internacional que ele foi ludibriado por um miliciano para entregar um pacote na casa de um vizinho, e que depois o miliciano o seguiu e atacou:

“Ele levou-o para o seu quarto e atirou-o para cima da cama, e atirou a espingarda para o seu lado… começou a ameaçá-lo e disse-lhe que se ele gritasse ou berrasse, usaria a arma carregada… Então, ele [o miliciano] foi fechar a porta do quarto e começou a despir-se… naquele momento, o rapazinho assustou-se, pegou na arma e abateu o homem para se defender… Depois, fugiu.”

Subsequentemente, o agressor faleceu. A família reportou o incidente às autoridades locais, mas não recebeu qualquer proteção. Dois dias depois, foi atacada em sua casa por milicianos pertencentes ao mesmo grupo que o agressor. Três membros da família ficaram feridos, requerendo cirurgia, e uma pessoa foi morta em confrontos.

As autoridades locais mantiveram o rapaz de 12 anos, o seu pai e dois irmãos sob detenção voluntária durante duas semanas após o ataque, para os proteger de retaliações adicionais.

 

Vulneráveis a agressão

Noutro caso, a mãe de um rapaz de oito anos de idade disse à Amnistia Internacional que o seu filho foi violado numa mesquita local pelo filho de um imã Ishali e o seu amigo em, pelo menos, duas ocasiões distintas entre Junho e Outubro de 2018. Ela explicou que o comportamento do seu filho começou a mudar e que ele estava frequentemente em lágrimas.

“O meu filho disse-me que [o filho do Imã] o encerrou nos lavabos da mesquita e lhe tapou a boca com a mão, asfixiando-o, e começou a despi-lo… Depois de ter terminado com ele, deixou outro tipo entrar e aproveitar-se também do meu filho”, disse ela.

Segundo os relatórios médicos examinados pela Amnistia Internacional, desde então o rapaz de oito anos tem sofrido de mobilidade reduzida, falta de concentração e uma concussão em resultado de repetidas agressões e espancamentos.

A sua mãe disse à Amnistia Internacional que, anteriormente, ele era excelente na escola, mas após a agressão não conseguia segurar uma caneta ou escrever. Ela explicou que atualmente ele sofre de distúrbios do sono e tem tendência a chorar e gritar descontroladamente.

“Estes abusos horrendos ilustram como as crianças estão crescentemente vulneráveis durante conflitos armados nos quais as instituições e os mecanismos de proteção colapsam, criando frequentemente um vazio onde o abuso e a exploração podem prosperar. Isto é exacerbado pela ausência do estado de direito no Iémen. Quaisquer demoras em levar perante a justiça os perpetradores destes ataques conduzem ao risco de que mais crianças sejam visadas”

Heba Morayef

A Amnistia Internacional também falou com o pai de um rapaz de 13 anos que diz que ele foi violado pelos mesmos dois homens, na mesma mesquita.

“Estes abusos horrendos ilustram como as crianças estão crescentemente vulneráveis durante conflitos armados nos quais as instituições e os mecanismos de proteção colapsam, criando frequentemente um vazio onde o abuso e a exploração podem prosperar. Isto é exacerbado pela ausência do estado de direito no Iémen. Quaisquer demoras em levar perante a justiça os perpetradores destes ataques conduzem ao risco de que mais crianças sejam visadas”, disse Heba Morayef.

“As autoridades iemenitas, apoiadas pelas organizações humanitárias que trabalham no país, devem também com urgência providenciar apoio, cuidados médicos e apoio psicossocial às vítimas e às suas famílias.”

Como noutras situações de conflito, a violência sexual permanece pouco denunciada no Iémen. A dificuldade de verificação dos casos resulta do estigma e medo associados ao tema. Não existem números recentes ou publicamente disponíveis sobre violência sexual contra crianças. Contudo, o relatório do Fundo de População das Nações Unidas estima que 60 000 mulheres estão em risco de violência sexual, incluindo violação. A violência sexual contra rapazes e homens em conflitos armados é comum, mas é pouco denunciada, segundo a ONU.

 

Apelos à responsabilização

Nos últimos meses, o sistema judicial e as instituições iemenitas, que não tinham funcionado durante anos, foram reativadas em partes do sul do país, gerindo um número modesto de casos.

Segundo a família deste rapaz de 12 anos, os milicianos não foram detidos pelo ataque subsequente, e a família teve de relocalizar-se fora de Taiz devido ao receio de represálias, encerrando o seu negócio familiar. Da mesma forma, ninguém foi detido em ligação com a violação do rapaz de 16 anos, e o alegado perpetrador – um miliciano – continua em fuga. Entretanto, dois civis suspeitos estão atualmente detidos aguardando julgamento relativamente aos dois casos remanescentes.

“Devem existir investigações céleres, minuciosas, independentes e imparciais de todos estes casos. Qualquer pessoa contra a qual existam provas admissíveis suficientes deve ser acusada num julgamento justo, sem recurso à pena de morte e a outras punições cruéis, desumanas ou degradantes”, disse Heba Morayef.

A lei iemenita prevê o uso da pena capital contra culpados de violência sexual. A Amnistia Internacional opõe-se à pena de morte em todos os casos, sem exceção.

A Convenção dos Direitos da Criança, ratificada pelo Iémen em 1991, obriga os Estados Partes a assumirem todas as medidas adequadas à proteção das crianças relativamente a todas as formas de violência física ou mental, incluindo abuso sexual.

© MOHAMMED HUWAIS/AFP/Getty Images

Contexto

Desde 2015, de forma intermitente, Taiz testemunhou fortes combates, que se intensificaram durante 2018, entre forças Houthi e uma amálgama de forças anti-Houthi, leais à Coligação e ao governo iemenita.

Quatro anos de conflito levaram à proliferação de milícias do lado da Coligação e do governo iemenita, sendo as principais filiadas ao Islah, apoiado pelos sauditas, ou a grupos Salafistas. Embora nominalmente estejam do mesmo lado do conflito, estas milícias têm agendas concorrentes, e lutam entre si com frequência.

Uma investigação recente da Amnistia Internacional destacou o risco de desvio ilícito de armas de membros da Coligação para milícias irresponsabilizáveis – como acontece com os grupos em Taiz – acusadas de crimes de guerra e de outras violações graves. A organização está a apelar a todos os estados que suspendam imediatamente as transferências de armas para membros de todas as partes em conflito no Iémen.

Desde 2015, a Amnistia Internacional e outras organizações documentaram o impacto do arrastar do conflito armado em Taiz, incluindo bombardeamentos indiscriminados por parte das forças Houthi, bem como por outras milícias, que causaram centenas de baixas. Cercada pelas forças Houthi há quase quatro anos, a cidade de Taiz permanece um desastre humanitário. A Amnistia Internacional documentou previamente restrições arbitrárias impostas pelos Houthi sobre fornecimentos médicos essenciais e sobre o movimento de civis e dos respetivos bens.

A Amnistia Internacional também documentou como forças alinhadas com a Coligação e o governo iemenita assediaram e intimidaram pessoal hospitalar e colocaram civis em perigo ao colocarem combatentes e posições militares perto de instalações médicas, particularmente durante combates no final de 2016. Pelo menos três hospitais foram encerrados devido a ameaças contra o seu pessoal.

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