16 Outubro 2023

 

  • A ordem do exército israelita para que o povo palestiniano se desloque para o sul da Faixa de Gaza pode equivaler a uma deslocação forçada
  • Durante o período dado aos palestinianos para que abandonassem as suas casas, o governo de Israel manteve os ataques, perpetuando medidas de punição coletiva

 

A ordem do exército israelita à população do norte de Gaza e da cidade de Gaza para que abandonem as suas casas e se desloquem para o sul da Faixa de Gaza não pode ser considerada um aviso efetivo. A Amnistia Internacional alerta que pode equivaler a uma deslocação forçada da população civil, que é uma violação do direito internacional humanitário.

O anúncio inicial, por parte do governo de Israel, dava 24 horas às pessoas para abandonarem o norte de Gaza “para sua segurança e proteção” – uma exigência impossível que até o porta-voz do exército israelita admitiu não poder ser implementada num só dia. O governo israelita acabou por alargar este prazo, atribuindo algumas horas adicionais.

Independentemente deste período estabelecido, Israel não pode tratar o norte de Gaza como uma zona de fogo aberto, fundamentando-se no facto de ter emitido esta ordem. As suas forças militares têm a obrigação de tomar todas as precauções possíveis para minimizar os danos causados a civis, onde quer que estes se encontrem em Gaza.

Independentemente deste período estabelecido, Israel não pode tratar o norte de Gaza como uma zona de fogo aberto, fundamentando-se no facto de ter emitido esta ordem

“Com esta ordem, as forças israelitas estão a fomentar a deslocação forçada em massa de mais de 1.1 milhões de pessoas da cidade de Gaza e de toda a região norte da Faixa de Gaza. Esta foi uma ordem que apavorou a população e deixou milhares de palestinianos deslocados internamente a dormir nas ruas, sem saber onde encontrar segurança ou para onde fugir. Ao mesmo tempo, o governo de Israel continuou os seus bombardeamentos de forma implacável, perpetuando medidas de punição coletiva. Esta ordem deve ser revogada imediatamente”, afirmou Agnès Callamard, secretária-geral da Amnistia Internacional.

A 13 de outubro, o Ministério da Saúde de Gaza estimava que mais de 1.500 pessoas tinham já morrido e mais de 6.600 ficado feridas nos ataques israelitas em Gaza desde o dia 7 de outubro. Os números atuais são já superiores e há famílias que procuram recuperar os corpos dos seus familiares, entre os escombros, pelas suas próprias mãos.

Estes bombardeamentos pelo governo de Israel aconteceram na sequência do ataque do Hamas e de outros grupos armados, a 7 de outubro, no qual dispararam rockets de forma indiscriminada, raptaram civis, fizeram reféns e executaram sumariamente civis no sul de Israel, matando pelo menos 1.200 pessoas e ferindo 3.436, de acordo com o Ministério da Saúde de Israel.

Por sua vez, desde o início das hostilidades, dos 2.2 milhões de habitantes de Gaza, já mais de 532.000 palestinianos foram deslocados internamente, conforme atesta o Gabinete de Coordenação dos Assuntos Humanitários da ONU – alguns deles duas vezes.

 

Família palestiniana inspecciona a destruição maciça causada pelos ataques aéreos israelitas no bairro de al-Rimal, na cidade de Gaza, a 10 de outubro de 2023. Fotografia de Majdi Fathi/NurPhoto via Getty Images

 

 

“Os aliados de Israel e os Estados doadores devem apelar urgentemente ao respeito do direito internacional humanitário e à proteção dos civis. A população em Gaza não deve ser usada como um “peão político” nem ver a sua vida desprezada de tal forma”.

“A população em Gaza não deve ser usada como um “peão político” nem ver a sua vida desprezada de tal forma”

Agnès Callamard

Entre as recomendações da Amnistia Internacional, Agnés Callamard acrescenta ainda que a “comunidade internacional deve abster-se de continuar a legitimar o bloqueio ilegal de Israel, que dura há 16 anos, e suspender imediatamente a transferência de armas que possam ser utilizadas para cometer ataques ilegais.

 

As dificuldades da deslocação forçada para sul de Gaza

Os civis palestinianos que tentam fugir para sul da Faixa de Gaza têm enfrentado grandes desafios. Há estradas gravemente danificadas pelos ataques aéreos israelitas, não há transportes públicos disponíveis e o combustível é escasso devido ao agravamento do bloqueio já existente pelo governo de Israel.

“Uma viagem de uma hora pareceu-me de 30 anos. Tivemos de mudar de rota muitas vezes… Toda a gente a correr para salvar a vida, é uma situação para lá do horror. As crianças choram e estão aterrorizadas”, relata à Amnistia internacional um residente do norte de Gaza.

Por sua vez, um trabalhador humanitário em Gaza revela a sua preocupação para com os doentes e feridos: “Eles [exército israelita] têm de me explicar como é que podemos desocupar os hospitais com doentes nas unidades de cuidados intensivos e todos os feridos dos recentes ataques. É um disparate, é impossível”.

Devido à destruição das estradas e à falta de combustível, as equipas de salvamento não conseguem chegar a zonas do norte de Gaza para desenterrar centenas de corpos ainda presos debaixo dos escombros.

“Estamos a tentar retirar os corpos, o que resta deles. Corpos de crianças, com as nossas próprias mãos. Os bulldozers não conseguem chegar a esta região zona para remover os escombros. Estou aqui há três dias desde o bombardeamento, 19 membros da minha família morreram e só consegui recuperar o corpo da minha nora e o ombro do meu filho”, disse à Amnistia Internacional Fawzi Naffar, sobrevivente de um ataque aéreo por parte do governo israelita ao bairro de Sheikh Radwan, na cidade de Gaza, que matou pelo menos 40 civis.

“Estou aqui há três dias desde o bombardeamento, 19 membros da minha família morreram e só consegui recuperar o corpo da minha nora e o ombro do meu filho”

relato de Fawzi Naffar, sobrevivente

A Amnistia Internacional investigou e documentou ainda como várias famílias palestinianas fugiram das suas casas para locais que pensavam ser mais seguros, mas que acabaram por ser bombardeados também. A organização falou com um homem que abandonou Beit Hanoun a pé com a sua família na madrugada de 8 de outubro para procurar abrigo numa escola gerida pela UNRWA em Jabalia. Mais tarde, o seu filho de 19 anos foi morto num ataque numa rua do mercado em Jabalia, quando ia comprar pão para a família.

Entre a comunidade deslocada encontram-se pessoas com deficiência e com doenças crónicas. A Amnistia Internacional falou com mulheres e raparigas com deficiência que fugiram a pé das suas casas. Caminharam durante horas, sob o medo constante dos bombardeamentos, para se refugiarem nas escolas geridas pela UNRWA no norte de Gaza. Não conseguem fazer a longa viagem a pé até ao sul de Gaza, onde muitos abrigos já atingiram a sua capacidade máxima. Também a proteção destes civis deve ser uma prioridade.

 

Medo de uma “segunda Nakba”

A maioria da população de Gaza é descendente de refugiados que foram deslocados ou forçados a fugir das suas casas durante o conflito de 1947-49. Nesta altura, mais de 750.000 palestinianos foram deslocados à força das suas cidades e aldeias – um conflito referido pelos palestinianos como a Nakba.

Atualmente, ainda que muitos palestinianos no norte de Gaza estejam a tentar fugir, outros partilharam à Amnistia Internacional que estão a optar por ficar com receio de que isto se torne uma “segunda Nakba”, uma vez que o trauma geracional da deslocação está gravado nas memórias coletivas de muitos habitantes de Gaza.

“Os nossos pais foram expulsos das suas casas em 1948, durante a Nakba. Mais tarde, perdemos a nossa habitação, que foi destruída na ofensiva de agosto de 2022. Foi reconstruída para ser novamente destruída… Durante toda a nossa vida, tudo o que conhecemos é uma série de deslocações”, relatou Munir Radwan, professor universitário.

Outro residente de Gaza referiu à Amnistia Internacional: “Fomos dormir em 2023 e acordámos em 1948”.

“Fomos dormir em 2023 e acordámos em 1948”

relato de um residente de Gaza

“A comunidade internacional não pode ficar em silêncio enquanto as forças israelitas expulsam mais de um milhão de palestinianos das suas casas de forma ilegal. A deslocação forçada de civis de Gaza por parte do governo de Israel deve ser terminada imediatamente”, afirmou Agnès Callamard.

A Amnistia Internacional apela ao governo de Israel e a todos os grupos armados palestinianos para que protejam os civis a todos os custos, em conformidade com as suas obrigações à luz do direito internacional humanitário. Alerta ainda que os grupos armados palestinianos devem libertar imediatamente todos os reféns civis e abster-se de disparar rockets indiscriminados contra Israel. Por fim, recorda que o governo de Israel deve respeitar os princípios do direito internacional, como os princípios da proporcionalidade e da distinção, abstendo-se de punições coletivas, retaliações e deslocações.

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