3 Junho 2015

 

Oficiais do Exército nigeriano, incluindo comandantes militares de elevada patente, têm de ser investigados pela sua participação, por terem sancionado ou nada terem feito para impedir a morte de mais de 8.000 pessoas que foram executadas, forçadas à fome, sufocadas e torturadas até à morte, segundo é apurado num novo relatório da Amnistia Internacional consolidado em várias missões de investigação e publicado esta quarta-feira, 3 de junho.

  • Crimes de guerra horríveis foram cometidos por militares na Nigéria, incluindo os casos de 8.000 pessoas que foram executadas, forçadas à fome, sufocadas, e torturadas até à morte;

  • Oficiais de altas patentes, identificados pela Amnistia Internacional, têm de ser investigados em relação a crimes de guerra e possíveis crimes contra a humanidade;

  • O novo Governo tem de garantir a proteção dos civis e pôr fim à cultura de impunidade que existe nas forças armadas nigerianas.

Alicerçada em vários anos de investigação e de análise de provas – em que se incluem relatórios e troca de correspondência militar que foram objeto de fugas de informação, assim como entrevistas a mais de 400 vítimas, testemunhas e oficiais das forças de segurança da Nigéria –, a organização de direitos humanos descreve detalhadamente uma série de crimes de guerra e possíveis crimes contra a humanidade cometidos pelos militares nigerianos no contexto da luta contra o grupo armado islamita Boko Haram no Nordeste do país.

Este novo relatório da Amnistia Internacional, intitulado “Stars on their shoulders. Blood on their hands: War crimes commited by the Nigerian military” (Divisas de estrelas nos ombros. Sangue nas mãos: os crimes de guerra cometidos pelo Exército da Nigéria), demonstra que desde março de 2011 mais de 7.000 homens jovens e rapazes morreram enquanto se encontravam sob detenção militar, e mais de 1.200 pessoas foram executadas sumariamente desde fevereiro de 2012.

A Amnistia Internacional apresenta neste relatório provas convincentes de que é necessária uma investigação às responsabilidades individuais e de comando de soldados e de oficiais na cadeia de liderança a nível médio e elevado na hierarquia do Exército nigeriano. O relatório detalha os papéis e possíveis responsabilidades criminais de pessoas na linha de comando – chegando até às chefias da Defesa e às chefias do Exército – e identifica nove entidades militares de topo que têm de ser investigadas pelas suas responsabilidades individuais e de comando nos crimes que foram cometidos.

“Estas provas repugnantes expõem como milhares de homens jovens e rapazes foram arbitrariamente detidos e deliberadamente mortos ou abandonados à morte sob detenção nas condições mais atrozes. O relatório fornece uma base sólida para que sejam feitas investigações a possíveis responsabilidades criminais de membros do Exército, incluindo alguns em elevadas posições na hierarquia”, frisa o secretário-geral da Amnistia Internacional, Salil Shetty. “É vital que seja feita uma investigação a estes crimes de guerra, mas este relatório não é apenas sobre a responsabilidade criminal de indivíduos: é também sobre a responsabilidade dos líderes da Nigéria em agirem de forma decisiva para acabar com a enraizada cultura de impunidade que existe dentro das forças armadas”, prossegue.

A Amnistia Internacional insta a Nigéria a garantir que são feitas investigações imediatas, independentes e eficazes aos seguintes oficiais militares por potencial responsabilidade individual ou de comando pelos crimes de guerra de assassinato, tortura e desaparecimento forçado que são detalhados neste relatório:

  • Major-general John A.H. Ewansiha

  • Major-general Obida T Ethnan

  • Major-general Ahmadu Mohammed

  • Brigadeiro-general Austin O. Edokpayi

  • Brigadeiro-general Rufus O. Bamigboye

A Amnistia Internacional urge a Nigéria também a assegurar investigações imediatas, independentes e eficazes aos seguintes comandantes militares de elevada patente pela sua potencial responsabilidade de comando nos crimes cometidos pelos seus subordinados. Estes oficiais terão sido responsáveis caso tenham tido conhecimento ou devessem ter tido conhecimento sobre a prática dos crimes de guerra cometidos e tenham falhado em tomar medidas adequadas para os evitar ou para garantir que os alegados perpetradores são julgados:

  • General Azubuike Ihejirika – chefe do Estado-Maior do Exército, de setembro de 2010 a janeiro de 2014

  • Almirante Ola Sa’ad Ibrahim – chefe do Estado-Maior da Defesa (equivalente a chefe do Estado-Maior das Forças Armadas), de outubro de 2012 a janeiro de 2014.

  • Marechal da Força Aérea Alex Sabundu Badeh – chefe do Estado-Maior da Defesa (equivalente a chefe do Estado-Maior das Forças Armadas), de janeiro 2014 ao momento presente

  • General Ken Minimah – chefe do Estado-Maior do Exército, de janeiro de 2014 ao momento presente

Mortes em larga escala sob custódia das forças de segurança

Em resposta aos ataques do grupo armado islamita no Nordeste da Nigéria, os militares nigerianos prenderam pelo menos 20.000 homens jovens e rapazes desde 2009, alguns mesmo crianças com não mais do que nove anos.

Na maior parte dos casos estas pessoas foram detidas arbitrariamente, frequentemente apenas com base na palavra de um único informador secreto e não identificado. Na esmagadora maioria foram detidos em operações “de triagem” ou em raides militares de “cerco e busca”, durante as quais as forças de segurança reúnem centenas de homens para identificar possíveis membros do Boko Haram. Praticamente nenhuma das pessoas detidas nestas operações é levada a tribunal, e todas foram mantidas presas sem as imperativas garantias para que não sejam alvo de execuções sumárias, tortura e outros maus-tratos.

Aqueles que são detidos pelas forças de segurança nigerianas ficam em regime de incomunicabilidade em celas extremamente sobrelotadas e sem ventilação, sem instalações sanitárias e com muito pouca comida e água potável. Muitos são submetidos a tortura e milhares morreram devido a maus-tratos e às condições totalmente deploráveis em que são mantidos presos. Um antigo detido testemunhou à Amnistia Internacional: “Tudo o que sei é que assim que se é preso pelos soldados e levado para Giwa [onde se localiza um dos quartéis militares no estado de Kaduna], a nossa vida acaba ali”.

Um oficial de elevada patente do Exército nigeriano entregou à Amnistia Internacional uma lista com os nomes de 683 detidos que morreram sob custódia militar entre outubro de 2012 e fevereiro de 2013. A organização de direitos humanos obteve também provas de que em 2013 mais de 4.700 corpos foram entregues numa casa mortuária vindos de uma das instalações de detenção no quartel de Giwa. Só em junho de 2013, mais de 1.400 cadáveres foram entregues naquela funerária vindos daquela prisão.

Um antigo detido que passou quatro meses sob custódia dos militares descreveu a sua chegada ao quartel: “Os soldados disseram-nos ‘Bem-vindos à vossa casa da morte. Bem-vindos ao sítio onde vão morrer’”. Apenas 11 dos 122 homens com os quais foi detido sobreviveram.

Morrer à fome, de desidratação, das doenças

Os investigadores da Amnistia Internacional viram durante esta missão corpos esqueléticos nas funerárias na Nigéria, e um antigo detido em Giwa contou à equipa da organização que cerca de 300 pessoas que se encontravam na mesma cela que ele morreram depois de lhes ser negada água durante dois dias. “Às vezes bebíamos a urina uns dos outros, mas até a urina nem sempre se conseguia obter”.

As provas recolhidas junto de antigos detidos e testemunhas são corroboradas também por fontes militares de topo. Um oficial nigeriano reportou à Amnistia Internacional que os centros de detenção não recebem dinheiro suficiente para comprar os alimentos necessários e que os detidos no complexo militar de Giwa são “deliberadamente submetidos à fome”.

As doenças estão por todo o lado nos centros de detenção, incluindo possíveis surtos de cólera. Um polícia alocado a uma prisão conhecida como “Casa de Descanso”, em Potiskum, no estado de Yobe, contou à Amnistia Internacional que mais de 500 corpos foram queimados dentro e em redor do complexo. “Eles não levam os detidos aos hospitais caso fiquem doentes, nem para as funerárias quando morrem”, asseverou esta testemunha.

Celas sobrelotadas e mortes por asfixia

A sobrelotação nas instalações militares de Giwa e nos centros de detenção em Damaturu era tão elevada que centenas de detidos se encontravam amontoados em pequenas celas onde tinham de dormir no chão à vez, até mesmo de se sentarem à vez, devido à falta de espaço.

As casernas do quartel de Giwa – que não foi construído para funcionar como um centro de detenção – chegaram a ter mais de 2.000 detidos.

“Centenas de pessoas foram mortas enquanto estavam detidas, ou [pelos soldados] a tiro ou por asfixia”, revelou um oficial militar à Amnistia Internacional, descrevendo as condições do centro de detenção Setor Alfa (conhecido localmente como “Guantánamo”). A equipa da organização de direitos humanos confirmou que num só dia, a 19 de junho de 2013, morreram 47 detidos por asfixia, em resultado da falta de ventilação nas celas.

Fumigações

Para combater a propagação de doenças e eliminar o mau-cheiro, as celas são fumigadas com químicos com regularidade. Estas fumigações terão provocado a morte de muitos detidos que se encontravam em celas deficientemente ventiladas.

Um oficial colocado no complexo militar de Giwa declarou à Amnistia Internacional: “Há muitos suspeitos de serem do Boko Haram que morrem por causa das fumigações. Eles fumigam as celas com as substâncias químicas usadas para matar mosquitos. São químicos muito fortes. É muito perigoso”.

Tortura

A Amnistia Internacional recebeu relatos consistentes e provas de vídeo de práticas de tortura por parte de militares nigerianos no momento de detenções assim como após estas. Antigos detidos e fontes militares de topo descreveram que pessoas detidas sob custódia das forças de segurança foram torturadas até à morte com frequência, dependuradas em troncos sobre fogueiras acesas, atiradas para poços fundos ou interrogadas enquanto eram agredidas com bastões elétricos.

Estes testemunhos e indícios são consistentes com os padrões de generalizada tortura e maus-tratos documentados pela Amnistia Internacional na Nigéria ao longo de vários anos, e denunciados mais recentemente no relatório “Welcome to hellfire: Torture and other ill-treatment in Nigeria (Bem-vindos ao inferno: Tortura e outros maus-tratos na Nigéria), publicado em setembro de 2014.

Execuções extrajudiciais

Mais de 1.200 pessoas foram ilegalmente mortas pelos militares e milícias aliadas no Nordeste da Nigéria. O caso mais grave documentado pela Amnistia Internacional nesta investigação ocorreu a 14 de março de 2014, quando os militares executaram sumariamente mais de 640 detidos que tinham fugido do complexo de Giwa após um ataque do Boko Haram ao quartel.

Muitas destas execuções parecem ser feitas como vingança em consequência de ataques do grupo armado islamita. Um oficial militar disse à Amnistia Internacional que estas mortes são comuns. “[Os soldados] vão ao sítio mais próximo e matam todos os que são jovens… As pessoas que são mortas podem ser inocentes e nem terem armas nenhumas”, descreveu.

Numa operação chamada “de limpeza” que se seguiu a um ataque do Boko Haram a Baga a 16 de abril de 2013, os militares “transferiram as agressões contra a comunidade”, contou à Amnistia Internacional um oficial militar. Pelo menos 185 pessoas foram mortas.

Os detidos sob custódia militar são também frequentemente executados sumariamente. Um oficial colocado no quartel de Giwa disse aos investigadores da Amnistia Internacional que desde o final de 2014 são muito poucos os suspeitos que sequer acabam por ser levados para detenção, antes são imediatamente mortos. Este relato foi confirmado por vários defensores de direitos humanos e testemunhas no terreno.

Comandantes de topo sabiam que os crimes estavam a acontecer

Oficiais das mais elevadas patentes e nos mais altos níveis de comando na hierarquia militar da Nigéria – incluindo o chefe do Estado-Maior do Exército e o chefe do Estado-Maior da Defesa – eram regularmente informados das operações levadas a cabo no Nordeste da Nigéria.

As provas obtidas pela Amnistia Internacional indicam que os líderes militares de topo sabiam, ou tinham de saber, da natureza e da escala dos crimes que estavam a ser cometidos. Documentos militares internos demonstram que aquelas chefias recebiam informação atualizada sobre as elevadas taxas de morte de detidos através de relatórios de campo apresentados diariamente, e de cartas e relatórios de avaliação enviados pelos comandantes no terreno para o Quartel-general da Defesa e para o Quartel-general do Exército.

Os investigadores da organização de direitos humanos viram numerosos pedidos e alertas enviados por comandantes no terreno no Nordeste da Nigéria para o Quartel-general da Defesa reportando sobre o aumento no número de mortes sob custódia militar e sobre os perigos de fumigação das celas, e pedindo a transferência de detidos.

Além disto, outros relatórios enviados para o Quartel-general da Defesa, pedindo avaliações das instalações militares e a “autenticação de dados”, destacam também as taxas de mortes e avisam que a sobrelotação estava a provocar graves problemas de saúde podendo conduzir a “uma epidemia”.

A Amnistia Internacional verificou o conhecimento destas informações por parte das chefias assim como a ausência de ação junto de várias fontes, incluindo entrevistas com oficiais militares. Uma fonte militar garantiu que “as pessoas no topo [da hierarquia militar] viram-no mas recusaram-se a fazer fosse o que fosse”.

Ação necessária

“Apesar de terem sido informados das taxas de mortes de detidos e das condições de detenção, os responsáveis militares nigerianos falharam de forma consistente em tomarem as medidas necessárias. Aqueles que chefiavam as instalações de detenção, assim como os seus comandantes nos quartéis-generais do Exército e da Defesa, têm de ser investigados”, insta Salil Shetty.

O secretário-geral da Amnistia Internacional frisa ainda que “há anos que as autoridades da Nigéria desvalorizam as acusações de abusos de direitos humanos cometidos pelos militares”. “Mas não podem repudiar os seus próprios documentos internos. Não podem ignorar os depoimentos de testemunhas nem o que é contado por elevados escalões militares. E não podem negar a existência de corpos mutilados e esqueléticos amontoados nas casas mortuárias e despejados em valas comuns”, prossegue.

Por isso, a Amnistia Internacional “insta o recém-eleito Presidente [da Nigéria, Muhammadu] Buhari a pôr fim à cultura de impunidade que tem vindo a arruinar a Nigéria, e urge a União Africana e a comunidade internacional a dar apoio e encorajar a que tais esforços sejam feitos”, reitera Salil Shetty. “É urgente que o Presidente lance uma investigação imediata e imparcial aos crimes detalhados neste relatório da Amnistia Internacional e que haja responsabilização de todos os envolvidos, independentemente da sua patente ou posição na hierarquia. Só então haverá justiça para os mortos e seus familiares”, remata.

Contextualização:

Entre 2013 e 2015, investigadores da Amnistia Internacional fizeram seis missões no terreno no Nordeste da Nigéria e uma no Norte dos Camarões.

Este relatório baseia-se em 412 entrevistas com vítimas, seus familiares, testemunhas oculares, ativistas de direitos humanos, médicos, jornalistas, advogados e fontes militares. A Amnistia Internacional analisou também mais de 90 vídeos e numerosas fotografias.

A organização de direitos humanos partilhou repetidas vezes o conteúdo das suas investigações com as autoridades nigerianas. A Amnistia Internacional teve dezenas de reuniões com autoridades governamentais e escreveu 57 cartas às autoridades federais e estaduais, partilhando resultados das pesquisas, expressando preocupações sobre as violações de direitos humanos que estavam a ser praticadas e pedindo informação e ações específicas por parte das autoridades – como o lançamento de investigações imediatas e imparciais.

As respostas dadas pelo Governo estão indicadas nas seções relevantes deste relatório.

A Amnistia Internacional partilhou os resultados das suas investigações e as provas relevantes também com o gabinete do Procurador-geral do Tribunal Penal Internacional (TPI). A organização submeteu ainda ao TPI uma lista de nomes de oficiais militares que devem ser investigados pelo seu possível envolvimento nos crimes cometidos, ao abrigo da lei internacional, e pelas graves violações de direitos humanos documentadas neste relatório.

O relatório “Stars on their shoulders. Blood on their hands: War crimes commited by the Nigerian military” segue-se a outros publicados pela Amnistia Internacional sobre violações de direitos humanos cometidos no contexto do conflito no Nordeste da Nigéria. O anterior mais recente, intitulado ‘Our job is to shoot, slaughter and kill’: Boko Haram’s reign of terror” (“O nosso trabalho é disparar, massacrar e matar”: o reino de terror do Boko Haram), foi publicado a 14 de abril de 2015.

A reter: Os factos e os números do terror na Nigéria

 

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